OS MERCENÁRIOS
Sylvester Stallone, The Expendables, EUA, 2010

Quando Ross (Sylvester Stallone) e Christmas (Jason Statham) pousam seu avião na ilha de Vilena e são perguntados sobre o que transportam, eles respondem sem pestanejar: “animais ameaçados de extinção”. Não poderia haver comentário mais explícito sobre o que os astros deste filme representam hoje. Além de marginalizados do star system do cinema de ação, eles estão calejados, marcados, combalidos. Stallone desde o nascimento, quando uma complicação no parto lhe valeu aquela boca torta que todo mundo conhece. A própria musculatura anabolizada é uma aberração que Schwarzenegger disfarça dentro de um terno, mas que Stallone coloca em evidência cobrindo-a de tatuagens. São corpos que carecem de sutileza. A orelha deformada do lutador de vale-tudo Randy Couture chega a render um diálogo inteiro em que ela é o assunto principal. O personagem de Couture, que freqüenta psicanalista entre um serviço e outro, revela nesse diálogo um dos grandes motes do filme: como viver com sua feiúra, com seus enxertos, com sua carcaça anacrônica, fora de moda. O que fazer quando o elefante branco é seu próprio corpo? O estúdio de tatuagens onde eles se reúnem é uma galeria de frankensteins, um reduto dos renegados. Jason Statham, cujo rosto é liso demais comparado com os outros, sofre em contrapartida uma ferida sentimental incurável (sua menina o troca por um idiota). Ninguém passa ileso nesse filme.

A imagem mais recorrente em Os Mercenários, ou pelo menos a mais marcante, é um plano fechadíssimo no rosto de algum dos atores. Se Stallone, Dolph Lundgren, Jet Li, Mickey Rourke e cia aparecem com os poros tão à mostra, é porque o filme quer salientar cicatrizes, machucados, seqüelas, rugas, cirurgias plásticas. Em uma palavra: desfigurações. Os close-ups de Os Mercenários são uma mistura inusitada de Francis Bacon e John Cassavetes.

O enredo acompanha o anacronismo do elenco: Vilena é uma ilha fictícia na América do Sul onde um ex-agente da CIA se uniu a um ditador local para transformar a republiqueta numa grande plantação de cocaína. O micro-país não é metáfora de nada, não adianta ficar buscando interpretações geopolíticas para o filme, pois o assunto é outro. Apesar do prólogo (piratas somalis seqüestram um navio e fazem seus tripulantes de reféns, situação totalmente atual e plausível), o filme não tem intenção de dialogar com “temas do momento”. Os Mercenários fala de um mundo em que os regimes políticos não têm mais significado. Ross volta à ilha para salvar a garota, não para libertar o povo. Stallone não acorre às justificativas do antigo cinema republicano. Da mesma forma que em Rambo IV ele ignorava os principais conflitos do mapa-múndi atual e se enfurnava nas selvas da Birmânia, em Os Mercenários ele pega um cenário qualquer do repertório convencional do filme de ação e desenvolve a partir dele suas reais preocupações artísticas, como um pintor do século quinze ou dezesseis se apropriaria de uma cena bíblica para imprimir-lhe sua interpretação particular, seu traço, sua cor.

O vilão Eric Roberts é genial ao dizer que esse plot constituído por uma filha idealista que vira as costas ao pai tirano, ou por um homem ressentido que trai seu ex-melhor amigo, não passa de “Shakespeare ruim” (o humor desse fime é muitas vezes desconcertante). Assim sendo, Mickey Rourke até se sente à vontade para arriscar um monólogo e contar, com imensa tristeza, de que modo aniquilou o que restava de “humano” dentro dele. A cena é boa. Não há “Shakespeare ruim” que derrube um grande ator, sobretudo se ele é também um wrestler.

Por falar nisso, Stallone tem uma longa seqüência de luta com um grandalhão. Ele apanha um bocado e nós, que o conhecemos desde Rocky – Um Lutador, aguardamos pelo momento em que, mesmo tendo quase ido a nocaute, ele se recuperará e ganhará a luta. Só que desta vez não é bem assim, e Sly leva a pior. Seus amigos chegam e perguntam o que aconteceu, ele não eufemiza: “Levei uma surra”. É de uma honestidade pungente, vale mais que muitos socos. No meio dessa mesma seqüência de briga, ocorre um dos planos mais impressionantes do filme: os soldados da ilha são espatifados pela poderosa arma de um dos mercenários. Corpos explodindo, sangue jorrando. A ação é mostrada através de um sobre-enquadramento que acentua seu impacto e destaca o efeito duplamente violento e cômico buscado. Uma imagem atordoante que rapidamente se converte numa pequena gag de humor negro (passado o choque inicial, vem uma zombaria imanente à cena, tudo em questão de poucos segundos).

No final do primeiro Rambo, na cena da redenção do herói, ele conta ao Coronel Trautman a história de um amigo combatente que foi buscar umas cervejas e morreu desintegrado por uma bomba (algo assim). Os pedaços do amigo voaram para tudo quanto é lado, alguns caíram em cima de Rambo, que afirma não conseguir tirar aquela cena da cabeça, aquele trauma que resume sua existência destroçada. Em Rambo IV, essa imagem que assombrava o personagem voltou, foi devolvida ao mundo como uma erupção de violência: todos os pedaços de carne que haviam voado em cima de Rambo num passado remoto foram multiplicados por mil e atirados pelos ares indiscriminadamente. John Rambo não fazia mais sua sessão de análise num diálogo com o pai/criador Trautman: a catarse se convertia num espetáculo de puro caos sanguinolento.

Os Mercenários parte daí. Não é um filme de ação, é um filme de porrada. Um filme de ação requer uma mise en scène dos movimentos completamente diferente dessa explosão de forças que vemos aqui. A decupagem de Stallone não descreve a ação: ela intensifica os golpes. O plano é um choque de forças, estilhaços, faíscas, uma impactante dinâmica de dilaceramento e costura dos cenários, de amputação e imediato reimplante dos corpos. A violência do filme é intolerável. Não é cool como a de Tarantino, não é cartunesca como a dos irmãos Coen. É força bruta. Stallone filma as forças. Sensibilidades mais delicadas sairão correndo, como quem foge de um monstro. Tudo se resume magnificamente no plano final: uma faca atirada com toda violência na direção do espectador. Obra-prima.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


 Agosto de 2010