Quando
Ross (Sylvester Stallone) e Christmas (Jason Statham) pousam seu
avião na ilha de Vilena e são perguntados sobre o
que
transportam, eles respondem sem pestanejar: “animais
ameaçados
de extinção”. Não poderia
haver comentário
mais explícito sobre o que os astros deste filme representam
hoje. Além de marginalizados do star
system do
cinema de ação, eles estão calejados,
marcados,
combalidos. Stallone desde o nascimento, quando uma
complicação
no parto lhe valeu aquela boca torta que todo mundo conhece. A
própria musculatura anabolizada é uma
aberração
que Schwarzenegger disfarça dentro de um terno, mas que
Stallone coloca em evidência cobrindo-a de tatuagens.
São
corpos que carecem de sutileza. A orelha deformada do lutador de
vale-tudo Randy Couture chega a render um diálogo inteiro em
que ela é o assunto principal. O personagem de Couture, que
freqüenta psicanalista entre um serviço e outro,
revela
nesse diálogo um dos grandes motes do filme: como viver com sua
feiúra, com seus enxertos, com sua carcaça
anacrônica,
fora de moda. O que fazer quando o elefante branco é seu
próprio corpo? O estúdio de tatuagens onde eles
se
reúnem é uma galeria de frankensteins, um reduto
dos
renegados. Jason Statham, cujo rosto é liso demais comparado
com os outros, sofre em contrapartida uma ferida sentimental
incurável (sua menina o troca por um idiota).
Ninguém
passa ileso nesse filme.
A
imagem mais recorrente em Os
Mercenários,
ou pelo menos a mais marcante, é um plano
fechadíssimo
no rosto de algum dos atores. Se Stallone, Dolph Lundgren, Jet Li,
Mickey Rourke e cia aparecem com os poros tão à
mostra,
é porque o filme quer salientar cicatrizes, machucados,
seqüelas, rugas, cirurgias plásticas. Em uma
palavra:
desfigurações. Os close-ups de Os
Mercenários
são
uma mistura inusitada de Francis Bacon e John Cassavetes.
O
enredo acompanha o anacronismo do elenco: Vilena é uma ilha
fictícia na América do Sul onde um ex-agente da
CIA se
uniu a um ditador local para transformar a republiqueta numa grande
plantação de cocaína. O
micro-país não
é metáfora de nada, não adianta ficar
buscando
interpretações geopolíticas para o
filme, pois o
assunto é outro. Apesar do prólogo (piratas
somalis
seqüestram um navio e fazem seus tripulantes de
reféns,
situação totalmente atual e
plausível), o filme
não tem intenção de dialogar com
“temas do
momento”. Os Mercenários fala de um mundo em que os regimes políticos não
têm
mais significado. Ross volta à ilha para salvar a garota,
não
para libertar o povo. Stallone não acorre às
justificativas do antigo cinema republicano. Da mesma forma que em
Rambo IV ele ignorava
os principais conflitos do mapa-múndi atual e se enfurnava nas
selvas da Birmânia, em Os
Mercenários ele pega um cenário qualquer do repertório
convencional do filme de ação e desenvolve a
partir
dele suas reais preocupações
artísticas, como um
pintor do século quinze ou dezesseis se apropriaria de uma
cena bíblica para imprimir-lhe sua
interpretação
particular, seu traço, sua cor.
O
vilão Eric Roberts é genial ao dizer que esse
plot
constituído por uma filha idealista que vira as costas ao
pai
tirano, ou por um homem ressentido que trai seu ex-melhor amigo,
não
passa de “Shakespeare ruim” (o humor desse fime é muitas vezes desconcertante). Assim sendo, Mickey
Rourke
até se sente à vontade para arriscar um
monólogo
e contar, com imensa tristeza, de que modo aniquilou o que restava de
“humano” dentro dele. A cena é boa.
Não há
“Shakespeare ruim” que derrube um grande ator,
sobretudo
se ele é também um wrestler.
Por
falar nisso,
Stallone tem uma longa seqüência de luta com um
grandalhão. Ele apanha um bocado e nós, que o
conhecemos desde Rocky – Um Lutador,
aguardamos pelo
momento em que, mesmo tendo quase ido a nocaute, ele se
recuperará
e ganhará a luta. Só que desta vez não
é
bem assim, e Sly leva a pior. Seus amigos chegam e
perguntam o que aconteceu, ele não eufemiza:
“Levei uma
surra”. É de uma honestidade pungente, vale mais que muitos socos. No meio dessa mesma seqüência de
briga,
ocorre um dos planos mais impressionantes do filme: os soldados da
ilha são espatifados pela poderosa arma de um dos
mercenários.
Corpos explodindo, sangue jorrando. A ação
é
mostrada através de um sobre-enquadramento que acentua seu impacto e
destaca o efeito duplamente
violento e cômico buscado. Uma imagem atordoante que rapidamente se converte numa pequena gag de humor negro
(passado o choque inicial, vem uma zombaria imanente à cena,
tudo em questão de poucos segundos).
No
final do primeiro
Rambo, na cena da redenção do herói,
ele conta
ao Coronel Trautman a história de um amigo combatente que
foi
buscar umas cervejas e morreu desintegrado por uma bomba (algo
assim). Os pedaços do amigo voaram para tudo quanto
é
lado, alguns caíram em cima de Rambo, que afirma
não
conseguir tirar aquela cena da cabeça, aquele trauma que
resume sua existência destroçada. Em Rambo
IV,
essa imagem que assombrava o personagem voltou, foi devolvida ao
mundo como uma erupção de violência:
todos os
pedaços de carne que haviam voado em cima de Rambo num
passado
remoto foram multiplicados por mil e atirados pelos ares
indiscriminadamente. John Rambo não fazia mais sua
sessão
de análise num diálogo com o pai/criador
Trautman: a
catarse se convertia num espetáculo de puro caos
sanguinolento.
Os
Mercenários
parte daí. Não
é
um filme de ação, é um filme de
porrada. Um
filme de ação requer uma mise
en scène
dos movimentos completamente diferente dessa explosão de
forças que vemos aqui. A decupagem de Stallone
não
descreve a ação: ela intensifica os golpes. O plano
é
um choque de forças, estilhaços,
faíscas, uma
impactante dinâmica de dilaceramento e costura dos
cenários,
de amputação e imediato reimplante dos corpos. A
violência do filme
é
intolerável. Não é cool como a de
Tarantino, não
é cartunesca como a dos irmãos Coen. É
força
bruta. Stallone filma as forças. Sensibilidades mais
delicadas sairão correndo, como quem foge de um monstro.
Tudo
se resume magnificamente no plano final: uma faca atirada com toda
violência na direção do espectador. Obra-prima.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Agosto de 2010
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