ILHA DO MEDO
Martin Scorsese, Shutter Island, EUA, 2010

Duas tramas se sobrepõem em Ilha do Medo: uma trama de mistério que envolve dois investigadores federais procurando pistas de uma mulher que desapareceu numa prisão psiquiátrica de segurança máxima, localizada numa ilha permeada de segredos; e uma trama subjetiva de um homem que presenciou horrores na guerra, depois perdeu a esposa, depois sofreu com o alcoolismo e agora tenta lidar com seus traumas. Scorsese une os dois fios narrativos numa ficção paranóica à moda antiga, movida por teorias conspiratórias, fumaça de cigarros, vilões de sotaque germânico, enredo psicanalítico etc.

Ilha do Medo repete a mão pesada dos filmes recentes de Scorsese. Mas aqui não é a montagem de Thelma Schoonmaker a principal responsável pelo mau acabamento de algumas partes: seu trabalho foi preciso desta vez. A fotografia de Robert Richardson, em compensação, tem vários momentos de muito mau gosto, sobretudo nos flash-backs de cor estridente e luz hiper-exposta de Teddy (Leonardo DiCaprio) com sua esposa: para mostrar o estado agonizante de um mundo – o da classe média americana dos anos 1950 – que era vendido como sinônimo de conforto, amenidade, perfeição, Scorsese e Richardson exageraram na dose e saturaram ao máximo os tons pastéis das roupas e dos interiores das casas, sublinhando o apodrecimento que estava por trás da imagem do bem-estar numa estratégia visual um tanto pobre. A trilha sonora também entra rasgando e martela os acordes de suspense nos nossos ouvidos até cansar, mas o efeito dramático obtido é muito mais interessante que o da fotografia.

Scorsese tem algumas posturas curiosas para um diretor veterano. Ele lida com algumas referências cinéfilas como se ainda fosse um novato. Na cena em que Teddy explode o carro de um dos psiquiatras, por exemplo, há um plano claramente tarkovskiano que consiste num travelling lateral em câmera lentíssima, com a mulher e a filha de Teddy à frente do carro, memória e presente condensados no mesmo bloco de espaço-tempo. É como se Scorsese tivesse acabado de ver Nostalgia pela primeira vez quando rodou aquele plano.

Ressalvas à parte, Ilha do Medo é ponto alto na filmografia de Scorsese. Não é um filme que guarda um grande segredo para revelar ao final, pois a narrativa joga o tempo todo com a possibilidade de ser o produto distorcido da mente do personagem em que ancora seu ponto de vista. A ilha é transformada num labirinto mental onde a realidade se confunde à sua projeção imaginária. O presídio é uma espécie de tópica psíquica desse personagem. Cada porção do espaço representaria uma localidade da mente (a lúgubre e assustadora ala C, por exemplo, seria o lugar em que ficam trancafiados os traumas mais difíceis de superar).

No meio desse thriller psicológico B, Scorsese mostra o pesadelo de um homem – e, por tabela, de uma nação – que testemunhou os campos de concentração e voltou da Segunda Guerra, voltou para casa achando que já tinha visto o ápice do horror e que o mundo já tinha sido livrado do Mal, mas de repente viu um horror ainda maior acontecendo na sua própria casa, na sua própria família. E enlouqueceu. A fantasia policialesca que Teddy cria é apenas a projeção amenizada da realidade aterrorizante. É a lógica da projeção em sua origem mesma: a pessoa lida com perturbações internas como se elas viessem do exterior, pois assim pode usar os mecanismos de defesa que já conhece (nosso corpo foi preparado para enfrentar as ameaças exteriores, mas não para enfrentar a si mesmo). E o mecanismo de defesa que esse homem americano do pós-guerra conhece, no caso, é a guerra ao inimigo externo. Teddy não estava preparado ainda para enfrentar a nova realidade que se lhe apresenta, e que inclui um novo tipo de violência.

O filme de alguma maneira me lembra o primeiro longa de Peter Bogdanovich, Na Mira da Morte, no qual há aquele paralelismo entre o terror vitoriano, fantasioso, distante no tempo, com Boris Karloff no papel principal, que já não encontra correspondência com o grande público e está restrito ao circuito dos drive-ins, e o novo terror, real, de um cara que compra armas, mata a própria família e depois sai por aí matando aleatoriamente. É a mesma sobreposição de ficções que o Scorsese filmou, embora a estratégia tenha sido totalmente outra.

Ilha do Medo é ainda um filme fulleriano, na medida em que apresenta o Mal e o fascismo como forças que se imiscuem em qualquer situação onde encontrem brecha. Se em Agonia e Glória o vilão tem nome e seus horrores se mostram a olho nu, em Cão Branco, filme que Fuller fez em seguida, trata-se do mesmo inimigo, o fascismo, mas ele já é uma força, uma pulsão, um instinto de maldade, de racismo, de extermínio. O mal se internaliza no inconsciente. Ilha do Medo aborda, ainda que transversalmente e não frontalmente como Fuller, a transição de um estado do Mal para o outro, criando uma idéia meio abstrata do que seria um verdadeiro vilão do filme. Ele pode ser o mal inconsciente, mas pode também estar camuflado nos saberes institucionais, nas estruturas invisíveis do poder. Outro dado fulleriano do filme é o ambiente de loucura em que se instala – a loucura como aquilo que se embrenha nas falhas do real – e que remete principalmente a Shock Corridor. Esse ambiente é capaz de deixar qualquer um perturbado.

Luiz Carlos Oliveira Jr.