Duas
tramas se
sobrepõem em Ilha do Medo: uma trama de
mistério
que envolve dois investigadores federais procurando pistas de uma
mulher que desapareceu numa prisão psiquiátrica
de
segurança máxima, localizada numa ilha permeada
de
segredos; e uma trama subjetiva de um homem que presenciou horrores
na guerra, depois perdeu a esposa, depois sofreu com o alcoolismo e
agora tenta lidar com seus traumas. Scorsese une os dois fios
narrativos numa ficção paranóica
à moda
antiga, movida por teorias conspiratórias, fumaça
de
cigarros, vilões de sotaque
germânico,
enredo psicanalítico etc.
Ilha
do Medo
repete a mão pesada dos filmes recentes de Scorsese. Mas
aqui
não é a montagem de Thelma Schoonmaker a
principal
responsável pelo mau acabamento de algumas partes: seu
trabalho foi preciso desta vez. A fotografia de Robert Richardson, em
compensação, tem vários momentos de
muito mau
gosto, sobretudo nos flash-backs de
cor estridente e luz hiper-exposta de Teddy (Leonardo DiCaprio) com
sua esposa: para mostrar o estado agonizante de um mundo
–
o da classe média americana dos anos 1950 – que
era
vendido como sinônimo de conforto, amenidade,
perfeição,
Scorsese e Richardson exageraram na dose e saturaram ao
máximo
os tons pastéis das roupas e dos interiores das casas,
sublinhando o apodrecimento que estava por trás da imagem do
bem-estar numa estratégia visual um tanto pobre. A trilha
sonora também entra rasgando e martela os acordes de
suspense
nos nossos ouvidos até cansar, mas o efeito
dramático
obtido é muito mais interessante que o da fotografia.
Scorsese
tem algumas
posturas curiosas para um diretor veterano. Ele lida com algumas
referências cinéfilas como se ainda fosse um
novato. Na
cena em que Teddy explode o carro de um dos psiquiatras, por exemplo,
há um plano claramente tarkovskiano que consiste num
travelling lateral em câmera lentíssima, com a
mulher e
a filha de Teddy à frente do carro, memória e
presente
condensados no mesmo bloco de espaço-tempo. É
como se
Scorsese tivesse acabado de ver Nostalgia pela
primeira vez
quando rodou aquele plano.
Ressalvas
à
parte, Ilha do Medo é ponto alto na
filmografia
de Scorsese. Não é um filme que guarda um grande
segredo para revelar ao final, pois a narrativa joga o tempo todo com
a possibilidade de ser o produto distorcido da mente do personagem em
que ancora seu ponto de vista. A ilha é transformada num
labirinto mental onde a realidade se confunde à sua
projeção
imaginária. O presídio é uma
espécie de
tópica psíquica desse personagem. Cada
porção
do espaço representaria uma localidade da mente (a
lúgubre
e assustadora ala C, por exemplo, seria o lugar em que ficam
trancafiados os traumas mais difíceis de superar).
No
meio desse thriller
psicológico B, Scorsese mostra o pesadelo de um homem
–
e, por tabela, de uma nação – que
testemunhou os
campos de concentração e voltou da Segunda
Guerra,
voltou para casa achando que já tinha
visto o ápice
do horror e que o mundo já tinha sido livrado do Mal, mas de
repente viu um horror ainda maior acontecendo na sua própria
casa, na sua própria família. E enlouqueceu. A
fantasia
policialesca que Teddy cria é apenas a
projeção
amenizada da realidade aterrorizante. É a lógica
da
projeção em sua origem mesma: a pessoa lida com
perturbações internas como se elas viessem do
exterior,
pois assim pode usar os mecanismos de defesa que já conhece
(nosso corpo foi preparado para enfrentar as ameaças
exteriores, mas não para enfrentar a si mesmo). E o
mecanismo
de defesa que esse homem americano do pós-guerra conhece, no
caso, é a guerra ao inimigo externo. Teddy não
estava
preparado ainda para enfrentar a nova realidade que se lhe apresenta,
e que inclui um novo tipo de violência.
O
filme de alguma
maneira me lembra o primeiro longa de Peter Bogdanovich, Na
Mira
da Morte, no qual há aquele paralelismo entre o
terror
vitoriano, fantasioso, distante no tempo, com Boris Karloff no papel
principal, que já não encontra
correspondência
com o grande público e está restrito ao circuito
dos
drive-ins, e o novo terror, real, de um cara que compra armas, mata a própria família e depois sai por aí
matando
aleatoriamente. É a mesma sobreposição
de
ficções que o Scorsese filmou, embora a
estratégia
tenha sido totalmente outra.
Ilha
do Medo é
ainda um filme fulleriano, na medida em que apresenta o Mal e o
fascismo como forças que se imiscuem em qualquer
situação
onde encontrem brecha. Se em Agonia
e Glória o vilão tem nome e seus
horrores se
mostram a olho nu, em Cão Branco, filme
que Fuller fez
em seguida, trata-se do mesmo inimigo, o fascismo, mas ele
já
é uma força, uma pulsão, um instinto
de maldade,
de racismo, de extermínio. O mal se internaliza no
inconsciente. Ilha do Medo
aborda, ainda que
transversalmente
e não frontalmente como Fuller, a
transição de
um estado do Mal para o outro, criando uma idéia meio
abstrata
do que seria um verdadeiro vilão do filme. Ele pode ser o mal
inconsciente, mas pode também estar camuflado nos saberes
institucionais, nas estruturas invisíveis do poder. Outro dado
fulleriano do filme é o ambiente de loucura em que se instala – a loucura como aquilo que se embrenha nas
falhas do real – e que remete principalmente a Shock Corridor.
Esse ambiente é capaz de deixar qualquer um perturbado.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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