A
origem poderia
ser uma porção de filmes. Como filme-de-golpe, em
que o
charme está na inteligência dos bandidos,
há
muitas falhas humanas e cálculos equivocados,
além de
uma estratégia banal para o alcance do objetivo: basta um
slogan publicitário (aquela coisa do
“seja você
mesmo”) para Cilian Murphy solenemente se reconciliar com o
pai
– a imagem do pai, melhor dizendo
– e renunciar a
metade de sua fortuna. Como filme de ação,
há
somente uma exaustiva e desnecessariamente complexa “corrida
contra o tempo”. Como filme-tese, não se
problematiza,
só expõe o problema, e de forma chantagista.
Há
talvez alguma aridez, o que é sintomático em um
filme
agnóstico e pessimista, mas não como
princípio
estético. Finalmente como veículo para seu
elenco, o
casal principal de Leonardo DiCaprio e Marion Cotillard simplesmente
repete seus papéis mais recentes, os últimos
filmes de
Scorsese e Inimigos públicos e Nine,
respectivamente. O que A origem é,
é um
filme-instalação.
Instala-se
(no sentido
da arte contemporânea) um artifício criativo (no
caso,
uma “máquina dos sonhos”) no
espaço
banalizado do presente e capaz de proporcionar uma narrativa. Talvez
essa máquina seja do futuro ou de uma dimensão
paralela
à nossa realidade, mas isso não interessa
– a
ficção aqui não abre portas para
embarcarmos em
um mundo de outras leis e novas descobertas, ela realiza o movimento
inverso, pegando a “descoberta” e regressando
à
realidade. A origem está arraigado ao
nosso tempo, só
que “enriquecido” pelo artifício
criativo. O
convívio pode ser forçado, mas busca se adequar
ao
espaço à sua volta – uma
instalação,
repito, não uma ficção.
Agnosticismo,
simplesmente? O agnosticismo pode ser interessante, mesmo no reino
fantástico. Um cineasta agnóstico retiraria o
ponto de
vista narrativo do personagem que imerge na
ficção
(pois é ele quem geralmente capacita o espectador a crer
naquele mundo) e, então, trabalharia como um
repórter,
em busca de uma prova de materialidade, de algo que não pode
se transcender – este seria mais ou menos o caso de
Buñuel,
Jacques Tourneur ou Michael Mann. De qualquer forma, esse cineasta
agnóstico não deixa de problematizar a sua
ficção.
Ele se pergunta “como eu me adéquo a essa
realidade?”.
Não é o caso de Nolan. Seu “elemento
fantástico”
faz a narrativa se movimentar, estimula milhões de
peripécias,
desvenda uma série de caminhos... A máquina dos
sonhos
é um mote. E um mote serve para se adequar a qualquer
realidade, então a questão não
é como
ele se adéqua a realidade. Não se trata
de
problematizar, mas de propagar a problematização!
O
desfecho de A origem exemplifica bem o enunciado:
afirma-se um
problema (e um problema realmente estrutural do filme) sem cogitar
possíveis soluções; ou seja, mesmo
diante de uma
questão extrema ao universo representado, isso
não é
problematizado, só exposto. Na verdade, o desfecho
é só
mais uma das situações que este mote pode nos
oferecer.
E a
hipótese de
uma máquina dos sonhos talvez possa ser ilustrativa e muito
bem aplicada à matemática pura ou à
mecânica
quântica – por sinal, a propaganda da
indústria
cinematográfica deixou de ser militarista para ser
plenamente
cientificista e teórica – mas, ao cinema,
derivou-se
somente a única ferramenta dramática com a qual
Nolan
parece ser capaz de lidar e que preenche inteiramente a segunda
metade de A origem: a “corrida contra o
tempo”.
Essa ferramenta simples e bastante conhecida se complexifica por
princípios acumulativos (os diferentes níveis da
“corrida”) e pela plasticidade dos efeitos visuais
(a van
em queda livre como leitura pop dos Relógios
moles
do Dalí – mas já não era
assim desde, pelo
menos, Matrix?), maneira de Nolan de tornar essa
pobre
dramaticidade proporcional à
grandiloqüência com a
qual ele se sente confortável. Uma
grandiloqüência
que tem pouca, ou talvez nenhuma, relação com a
ebulição dramática, mas que atravessa
e
contamina todas as cenas. Trata-se de uma profusão de
imagens
que ultrapassam a exigência narrativa e que, nas suas
sobreposições e desdobramentos infinitos, nos
dariam
algo a mais em troca do que só uns insights
filosóficos
e pessoas sempre com muita pressa. Está aí, nesta
“produção de imagens”, nesta
aglomeração
vertiginosa, a dissimulação da
ficção
pela prepotência demiúrgica.
Foi
aí que eu me
lembrei de Chris Marker, que, em Sem Sol, decide
começar
com a imagem granulada de umas crianças em uma
planície
da Islândia e uma narração que diz ter
achado “a
imagem da felicidade”. A origem,
curiosamente, tem
imagens muito parecidas dos filhos do personagem de DiCaprio, em uma
atmosfera idílica que lhe é interditada. Em
ambos, a
vagueza da imagem é legitimada pela
abstração do
sentimento (e um sentimento sempre evocado, jamais encarnado). E,
é
a partir dessa vagueza, que se junta imagens não por
conseqüência ou por
comparação, mas por se
assemelharem tautologicamente. É preciso enxergar comodidade
nestas imagens anônimas, cujo sentido só existe a
partir
de um agente decifrador. Cinema experimental e industrial, tanto faz
– a promiscuidade de imagens é a mesma.
João Gabriel Paixão
Agosto de 2010
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