Tim
Burton é um
dos poucos diretores dentro de Hollywood que investem na
fabulação,
no gesto consciente de fabricação de um mundo.
É
particularmente alguém fascinado por cenários
(algo bem
próximo do sentido de
“fabricação”,
de construção), o que sem dúvida
contribuiu para
assumir um projeto tão reconhecido como um
território
propriamente “selvagem” do ficcional.
“Selvagem”
porque Alice no país das maravilhas, de
Lewis Caroll, é
reinado pela promiscuidade de ícones que perderam
cognição,
por esse mundo regido pelo disfuncional e contrário
às
leis da ciência e do empirismo. Por isso tudo, é
um
tanto surpreendente perceber neste projeto um quê de O
senhor dos anéis. Do reino solar e harmonioso da
Princesa
Branca – invenção desta
versão, mais
influenciado por um imaginário medieval do que pelo clima
decadente da aristocracia inglesa do século XIX –
à
lógica predominante daquele universo, exaltado por destinos,
superações, escrituras
– reconhecemos aí,
a partir dessas características, um certo apelo ao glamour
e à grandiloqüência de um
espetáculo
docilizado (os personagens secundários feitos para serem
bonecos; a dramaticidade chapada pela trilha sonora), ao
invés
de uma narração mais selvagem e brutal.
O
que torna este
Alice... mais curioso é que, por mais que
haja esse
flerte com o épico, a conivência daquele mundo com
seu
destino pré-fabricado resulta em uma
estranha, quase
invisível, forma anticlimática. Todos os
personagens já
conhecem exatamente o que vai acontecer, sabem determinar os
episódios a serem realizados no futuro, se comportam como se
soubessem exatamente no que implicam suas ações.
É
assim que Burton consegue se desfazer do esforço e da
glorificação do épico, o que parece
ser mesmo
sua intenção. Ao longo de esquálidos
108 minutos
– bastante abaixo dos atuais padrões de blockbuster
–, o cineasta abafa as expectativas do roteiro, extraindo das
cenas somente o necessário para o prolongamento narrativo,
como que ignorando a possibilidade de acúmulo de
tensão
e a construção de atmosferas. O que é
estranho,
porém, é constatar que não
há conquista
alguma do cineasta com este trabalho. Os personagens permanecem
limitados a peculiaridades “graciosas” que o
distinguem;
uma falta de enfoque no estranhamento icônico e na anarquia
daquele “país das maravilhas” torna o
filme um
espetáculo “morno”, um meio-termo
indefinido.
Alice,
essa que nos
leva a esse mundo subterrâneo, tem também uma
identidade
um tanto confusa nesta adaptação. Como uma
adolescente
indecisa que não sabe bem o que quer, mas sabe o que
não
quer, ela se torna logo uma personagem nublada na narrativa, com suas
provocações às
tradições
aristocráticas (como as da cena da festa, no
início)
mais tarde serem desmanchadas com o seu apoio à ordem e
à
realeza (no mundo fantástico) e também sua
reconciliação à paternidade (ao dar
continuidade
ao seu projeto comercial). Porém, mais que
incoerência,
o que se verifica é uma vagueza nos seus objetivos,
descrevendo um percurso errático, guiado exclusivamente por
aqueles que querem designar uma direção, um
objetivo, a
ela. Ali no “país das maravilhas”, Alice
se mantém
à mercê de uma situação que
não se
esforça em controlar, apenas relutando em assumir o papel
que
lhe convém. Mas, quando o exerce, como guerreira da Princesa
Branca, só fica mais evidente essa espécie de
passividade invisível da personagem. A única
coisa que
ela conquista por mérito e iniciativa pessoal –
por
sinal a única coisa que ela de fato deseja ao longo de toda
a
sua passagem por aquele mundo – é
“acordar”,
escapar do sonho, ir embora. Alice, assim, transmite uma
indiferença
vaga, mas profunda, à ficção, seja
à
magia da fabulação, seja a dramaticidade
épica.
Tim Burton faz aqui não um filme anticlimático
capitaneado por um anti-herói, mas sim um filme que sabota a
sua própria necessidade (do que interessa ir ao
“mundo
das fantasias” se é para passar
incólume a ele?)
pautado no ocultamento do herói.
João Gabriel Paixão
Maio de 2010
|