ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Tim Burton, EUA, 2010

Tim Burton é um dos poucos diretores dentro de Hollywood que investem na fabulação, no gesto consciente de fabricação de um mundo. É particularmente alguém fascinado por cenários (algo bem próximo do sentido de “fabricação”, de construção), o que sem dúvida contribuiu para assumir um projeto tão reconhecido como um território propriamente “selvagem” do ficcional. “Selvagem” porque Alice no país das maravilhas, de Lewis Caroll, é reinado pela promiscuidade de ícones que perderam cognição, por esse mundo regido pelo disfuncional e contrário às leis da ciência e do empirismo. Por isso tudo, é um tanto surpreendente perceber neste projeto um quê de O senhor dos anéis. Do reino solar e harmonioso da Princesa Branca – invenção desta versão, mais influenciado por um imaginário medieval do que pelo clima decadente da aristocracia inglesa do século XIX – à lógica predominante daquele universo, exaltado por destinos, superações, escrituras – reconhecemos aí, a partir dessas características, um certo apelo ao glamour e à grandiloqüência de um espetáculo docilizado (os personagens secundários feitos para serem bonecos; a dramaticidade chapada pela trilha sonora), ao invés de uma narração mais selvagem e brutal.

O que torna este Alice... mais curioso é que, por mais que haja esse flerte com o épico, a conivência daquele mundo com seu destino pré-fabricado resulta em uma estranha, quase invisível, forma anticlimática. Todos os personagens já conhecem exatamente o que vai acontecer, sabem determinar os episódios a serem realizados no futuro, se comportam como se soubessem exatamente no que implicam suas ações. É assim que Burton consegue se desfazer do esforço e da glorificação do épico, o que parece ser mesmo sua intenção. Ao longo de esquálidos 108 minutos – bastante abaixo dos atuais padrões de blockbuster –, o cineasta abafa as expectativas do roteiro, extraindo das cenas somente o necessário para o prolongamento narrativo, como que ignorando a possibilidade de acúmulo de tensão e a construção de atmosferas. O que é estranho, porém, é constatar que não há conquista alguma do cineasta com este trabalho. Os personagens permanecem limitados a peculiaridades “graciosas” que o distinguem; uma falta de enfoque no estranhamento icônico e na anarquia daquele “país das maravilhas” torna o filme um espetáculo “morno”, um meio-termo indefinido.

Alice, essa que nos leva a esse mundo subterrâneo, tem também uma identidade um tanto confusa nesta adaptação. Como uma adolescente indecisa que não sabe bem o que quer, mas sabe o que não quer, ela se torna logo uma personagem nublada na narrativa, com suas provocações às tradições aristocráticas (como as da cena da festa, no início) mais tarde serem desmanchadas com o seu apoio à ordem e à realeza (no mundo fantástico) e também sua reconciliação à paternidade (ao dar continuidade ao seu projeto comercial). Porém, mais que incoerência, o que se verifica é uma vagueza nos seus objetivos, descrevendo um percurso errático, guiado exclusivamente por aqueles que querem designar uma direção, um objetivo, a ela. Ali no “país das maravilhas”, Alice se mantém à mercê de uma situação que não se esforça em controlar, apenas relutando em assumir o papel que lhe convém. Mas, quando o exerce, como guerreira da Princesa Branca, só fica mais evidente essa espécie de passividade invisível da personagem. A única coisa que ela conquista por mérito e iniciativa pessoal – por sinal a única coisa que ela de fato deseja ao longo de toda a sua passagem por aquele mundo – é “acordar”, escapar do sonho, ir embora. Alice, assim, transmite uma indiferença vaga, mas profunda, à ficção, seja à magia da fabulação, seja a dramaticidade épica. Tim Burton faz aqui não um filme anticlimático capitaneado por um anti-herói, mas sim um filme que sabota a sua própria necessidade (do que interessa ir ao “mundo das fantasias” se é para passar incólume a ele?) pautado no ocultamento do herói.

João Gabriel Paixão


Maio de 2010