QUATRO FILMES DE 2009 E ALGUMAS QUESTÕES
DE RELIGIOSIDADE

Quanto mais se avança neste século, menos se fala de religião; o termo parece ter sido definitivamente deslocado de seu uso cotidiano tradicional. Em geral, ou é utilizado no sentido figurado, para falar de escolhas ou modos de vida, ou é conjugado a uma idéia de extremismo institucionalizado – como no caso dos Estados muçulmanos. É quase como se a religião, como conjunto de crenças organizadas, tivesse perdido seu lugar na sociedade ocidental contemporânea. No entanto, como bem sabemos, isto não é verdade.

Pois bem, no cinema recente, assuntos ligados a religiões são geralmente tratados no âmbito do “dado cultural” (as particularidades desta ou daquela religião pouco conhecidas), ou como questão política (os males que as instituições religiosas infligem à democracia liberal, por exemplo), e raramente penetra-se no âmago filosófico de uma crença, ou trabalha-se seu aspecto propriamente espiritual ou transcendente. Em 2009, porém, alguns filmes parecem ter trazido de volta algumas questões religiosas ao cerne de suas imagens: A Fita Branca, de Michael Haneke, Anticristo, de Lars Von Trier, Erótica Aventura, de Jean-Claude Brisseau, e A Religiosa Portuguesa, de Eugène Green. É bem verdade que cada um destes cineastas, a seu modo, sempre tangenciou este universo em suas obras, em uns filmes mais, em outros menos, mas ver estes quatro filmes numa mesma “safra” naturalmente instiga a reflexão.

A Fita Branca constrói-se entre uma tentativa de esboçar uma genealogia do Mal e uma espécie de mapeamento da psicologia social derivada de certas estruturas de poder, tanto políticas quanto religiosas. Na vila permeada de relações de poder obscuras e subterrâneas, tudo germina e floresce longe da vista, encoberto pelo véu de uma moral hipócrita por natureza. O que o filme busca demonstrar é que a série de interditos protestantes que visa à implantação de um ideal de retidão absoluta corresponde a uma prática de repressão dos desejos que leva tanto ao exercício desenfreado da ocultação quanto à insurgência vingativa (neste sentido o Mal em sua manifestação terrena seria um reflexo da vontade inabalável de pureza, ou ainda, seu simples e inevitável reverso). No entanto, ao refletir na forma do filme a dinâmica própria do puritanismo, Haneke propaga a inibição do conhecimento por sucessivas contenções da narrativa, das imagens e dos sentimentos, intimida pela ausência de explicações e busca refúgio na austeridade para se esquivar de tudo que nos ronda sem que possamos nomear propriamente. Seu controle intelectual sobre a representação gera tal rigidez formal que todo e qualquer aspecto propriamente “humano” que pudesse estar atrelado à crença religiosa que forma a base daquela comunidade é jogado pra escanteio. Da religião é apenas retido um senso de mentalidade de época, de estado de espírito, que nada traduz dos sentimentos propriamente ditos que teriam levado à implantação desta ampla cartilha comportamental, que se infiltrou de forma perniciosa na alma de boa parte das culturas anglo-saxãs. O corpo dos personagens de A Fita Branca são corpos castos na imagem do filme, tratados com a distância necessária para garantir sua existência puramente como signos, nunca como presenças reais.

Para Lars Von Trier, o corpo dos personagens é, em geral, dotado de uma energia funcional, ou seja, uma energia que os faça cumprir um determinado papel na narrativa. Assim era em Os Idiotas, em Ondas do Destino, em Dançando no Escuro ou em Dogville, e assim é em Anticristo. Isto não quer dizer que a relação câmera-corpo em seus filmes seja primordial, ou que ele se preocupe demasiadamente com a matéria do mundo no sentido ontológico, mas que a presença dos corpos na imagem é fundamental para a constituição do relato. É necessário ver os corpos em ação, percebê-los em sua caracterização, para que o filme atinja o efeito pretendido. Em Anticristo, o corpo magro e quase masculino de Charlotte Gainsbourg é o responsável por manifestar toda a carga “demoníaca” de um desejo sexual associado à pulsão de morte. O corpo do menino, que “voa” pela janela, carrega a inocência maculada por esta corrupção de uma pureza original, e o corpo de Willem Dafoe é o boi de piranha que serve à demonstração do poder destrutivo e da força avassaladora contida nesse desejo. Em termos tanto psicanalíticos quanto religiosos, podemos dizer que a criança morre porque a mãe negligencia seu papel materno e se entrega ao prazer carnal. O aspecto transcendente (a posterior incorporação de espíritos ou energias seculares), no entanto, permanece apenas no campo da idéia: ele nos é comunicado pela trama e pela montagem associativa. O que depreende-se, ao fim, é um misto obtuso de histeria feminina e crenças medievais em bruxas e afins profundamente conformado igualmente por um sentimento puritano. Se Lars Von Trier não tem pudores em mostrar, ao contrário de Haneke, é porque o choque, o trauma, a “crucificação”, tem para ele valor “educativo” – enquanto que em A Fita Branca a reflexão deve ocupar o lugar de uma ausência estruturante, por assim dizer. Deve-se atravessar a experiência para que os signos ganhem sentido. Mas a compreensão, que aqui vem menos pelo discurso e mais por sentimentos refletidos na corporeidade, não possui, de todo modo, caráter realmente esclarecedor. Trata-se de uma compreensão difusa, carregada de maus sentimentos, que nada revela ou articula, apenas propaga uma determinada concepção de mundo.

Já para Jean-Claude Brisseau, que em seu último filme, Erótica Aventura, trabalha um universo conceitual bastante próximo ao de Anticristo – a histeria pelos olhos da psicanálise e a manifestação de forças ocultas através de uma experiência física –, o corpo é aquilo que liga a consciência ao mundo, o meio pelo qual tudo o que é humano pode se manifestar (seja de ordem racional ou mística). A energia para ele, portanto, está circulando neste mundo, ela tanto é a matéria palpável que a câmera registra, quanto o mistério e os sentimentos que os planos (ou os cortes) são capazes de transmitir. O espiritualismo, desta forma, encontra-se diretamente ligado à matéria – a presença ancestral, possivelmente de uma freira, que vem visitar os personagens em uma das cenas de hipnose manifesta-se por um vento brutal que tira tudo do lugar; e a levitação do corpo da personagem acompanha. O corpo não é, desta forma, um signo que serve à transmissão de uma idéia, mas a manifestação propriamente de uma existência, de algo muito maior do que o que sua simples presença na imagem poderia denotar. O que Brisseau assume, de saída, é que o cinema não deve ser pautado por uma estrutura que abarque toda a representação, mas que a representação busque traduzir um sentimento verificável na experiência. Neste sentido, ele jamais poderia abraçar qualquer religião (ou mentalidade religiosa) como matriz de um relato, pois a religião é da ordem da organização da experiência, e não de sua simples experimentação em meio ao caos e ao mistério. Todo o caráter filosófico-espiritual de Erótica Aventura é, portanto, algo contido no interior do filme, que pretende nos conceder acesso a algo impalpável, ou tangenciá-lo pelo exercício da razão aliado à vivência. As cenas de sexo, ao flertar com a violência inclusive, são absolutamente transparentes e valem por aquilo que é visto – e, conseqüentemente, intuído –, sem estarem submetidas a qualquer concepção ou moral de vida.

Este raciocínio, que conjuga o sentimento de religiosidade à representação do corpo e visão de mundo, nos leva, naturalmente, a A Religiosa Portuguesa, de Eugène Green. Aqui, a religião encontra-se presente como ordem e, ao mesmo tempo, como mistério. Ela converte-se em um objeto de interesse, em uma prática capaz de, quem sabe, aproximar-nos da alma das coisas, desta presença difusa no mundo que chamamos de sagrada ou divina. A dimensão espiritual não é algo a que o filme pode dar acesso, ou que ele pode intuir, mas algo que este deve trazer na própria superfície da imagem. Para Eugène Green o cinema é um meio privilegiado para produzir momentos epifânicos e/ou revelatórios porque traz consigo a captura da matéria exposta ao tempo, ou seja, a matéria em condições de revelar sua aura. A estaticidade da câmera, portanto, é essencial para tentar captar esta anima que emana do mundo físico, que faz parte dele mas não é visível aos olhos. O cinema torna-se assim, ele próprio, uma forma de celebração e o filme um instrumento religioso – não no sentido de culto, mas no de crença completa no fato de que um ritual é capaz de revelar uma verdade transcendente.

O que temos em Brisseau e Green é justamente um processo de aprendizado, uma experiência transformadora pautada pela idéia de revelação. Pelos corpos dos personagens, estamos nos espaços, vivemos o tempo e presenciamos algo. Um milagre, ou uma certeza profunda que apenas a palavra impregnada de crença na verdade pode traduzir em fonemas que então construirão discursos. E, por mais místico e intangível que isto possa parecer, trata-se de efeitos reais elaborados sem nenhuma associação religiosa concreta. Tudo pertence ao âmbito de uma sensibilidade intuitiva que busca sinais na materialidade das coisas.

Em Von Trier e Haneke, por outro lado, a religião manifesta-se como moldura mental, como concepção de mundo que conforma o universo apresentado, sem que nada nos filmes denotem um sentimento de Verdade. A Fita Branca e Anticristo, são, na realidade, filmes que imprescindem de furtar-se da verdade para existir. No caso do primeiro porque o jogo de ocultação e o rebatimento (e multiplicação) infinito do sentimento de culpa fazem parte da lógica primeira. Oferecer qualquer tipo de luz sobre os acontecimentos (que em sua maioria não acontecem, porque não são vistos) seria trair o conceito de que o Mal está presente entre nós e se esconde em todos os lugares, sobretudo longe da visão. No caso do segundo porque não há verdade nos mecanismos comportamentais e sentimentais dos personagens, apenas conformidade a uma determinada visão redutora das relações humanas, e eles cumprem, no fundo, um papel ilustrativo ao percorrerem sua via crúcis particular. A culpa e o mal estar que ela acarreta são, pois, jogados para o espectador. Em casos como estes, o espírito encontra ausente e temos diante de nós apenas o pastor que prega.


Tatiana Monassa

Março de 2010