O que faz de Eugène Green um cineasta um tanto anacrônico
aos olhos de seus contemporâneos é menos a austeridade de seu estilo e de sua
proposição estética do que propriamente o fato dele ser um artista místico. Sua
busca não é primordialmente a da depuração da forma ou a da transmissão de uma
visão particular do mundo, mas a da tradução de sentimentos subjetivos – e
altamente etéreos – em relação à existência humana. Para a sociedade ocidental
pós-Descartes, que crê que a consciência é o centro gravitacional de tudo o que
há, a busca de cada artista seria a de imprimir a si mesmo em sua obra, a de
estabelecer uma ordem visível – o estilo – para a ordem que ele depreende do
mundo. Mas Eugène Green remonta a um momento anterior, em que a crença numa
outra ordem (“alguma coisa universal que se pode sentir quando se está sozinho
numa igreja”, como define o personagem de Adrien Michaux em Toutes les nuits)
marcava a criação artística, que se convertia então na tentativa de traduzir o sentimento desta ordem. A percepção, entendida como universal, de tudo aquilo que
ultrapassa a concretude, a materialidade do mundo. O efeito da obra estaria,
pois, na experimentação compartilhada entre artista e público desta percepção,
numa celebração conjunta de um momento evanescente no qual foi-se capaz
de fixar tudo aquilo que se pode conhecer intuitivamente, mas não se oferece à
exatidão da razão.
Ao tomar esta “missão” para si, Green não o faz, no entanto,
de forma puramente intuitiva, mas a partir de um grande arsenal de
conhecimentos acumulados em sua vida como intelectual. Disto resulta uma
combinação não muito óbvia entre elaboração teórica e construção formal. Em
termos de teoria, Green desenvolve também uma obra escrita que consubstancia
suas idéias acerca do cinema e da arte e que termina por fornecer um
complemento conceitual a seus filmes. Dentre estes livros, Présences(Paris: Desclée de Brouwer/ Cahiers
du cinéma, 2003), cujo
subtítulo é “ensaio sobre a natureza do cinema”, destaca-se por sua detalhada
defesa argumentativa da visão do cineasta acerca do “cinematógrafo” – ou seja,
do aparato cinematográfico em sua potência, uma vez que o termo “cinema”
designa a expressão artística cunhada historicamente a partir dele. Dividido em
cinco partes: “Fantasmas”, “Em busca da presença oculta”, “A presença
simbólica”, “A presença real” e “O signo”, o livro traça um percurso composto por
relatos de experiências pessoais e análises críticas de obras fotográficas,
literárias, teatrais, musicais e cinematográficas.
Présences é, sem dúvida, uma leitura fascinante. Além
de escritor inspirado e crítico de arte arguto, Eugène Green revela-se um
médium que travou contatos com espíritos em diversos momentos de sua vida e um
ser dotado de uma sensibilidade capaz de perceber a aura de construções e
cidades; em suma, alguém profundamente conectado com a experienciação do mundo
em seu aspecto metafísico. E é justamente esta vivência a origem de sua imensa
paixão pelo barroco: enxergar o espírito na matéria, o divino no terreno, o
místico na lógica da linguagem. Abraçar a ambigüidade como constituinte da
experiência humana e o entre como lugar – que a emoção se encarregaria
de preencher. A partir deste ponto de vista, só há uma âncora possível: a fé.
Mas a fé, para Green, não é questão de religião propriamente
dita, mas de crença profunda num mundo invisível, debitário de uma ordem maior
(aquela à qual se refere o personagem de Toutes les nuits, como citado
acima), que pautaria o mundo visível. Este invisível só poderia, no entanto,
ser acessado pela interpretação de signos – através de uma experiência sensível
íntima, particular e intransferível (o que não significa que ela não possa ser
compartilhada). Seu projeto artístico seria algo como o encontro entre um
pseudo-platonismo e a fenomenologia na própria imanência da experiência. E o
que ele advoga em Présences é basicamente que, dentre todas as artes, o
cinema seria aquela mais apropriada para revelar estas “presenças” invisíveis,
ou para reproduzir o mistério do mundo que se oferece a nós a todo instante. “(...)
o mundo apreendido pelos sentidos em seu estado normal, ou melhor, submetidos à
Razão, esconde uma parte da realidade, e (...) a representação cinematográfica,
longe de se contentar de ser uma “apresentação” pleonástica do mundo, pode e
deve nos permitir captar o mundo em sua totalidade e apreender presenças reais,
mas ocultas, que nos cercam. (p. 35-36)
Para Green, esta vocação do “cinematógrafo” é um
desdobramento natural da potência revelada pela fotografia, que “podia isolar
no presente de um ser, ou de um lugar, tudo o que eles carregavam de eterno”
(p. 79), e o resultado de uma demanda de época – já verificável em artistas
como Flaubert e Monet – por uma expressão que pudesse burlar a toda-poderosa
racionalidade que tinha passado a pautar a sociedade, e dar conta de aspectos
ocultos do mundo. No caso de Flaubert, a descrição objetiva e detalhada da
realidade material com o intuito de constituir uma narrativa faria com que o
mundo físico revelasse as coisas do espírito ao refletir o percurso interior
dos personagens. Já a pintura de Monet, juntamente com a de seu mestre Boudin, seria
a “representação de um momento presente, com o que ele comporta de mais fugaz,
mas também com o que cada presente particular comporta de eterno” (p. 93) Desta
forma, Green defende que tanto Flaubert quanto Monet foram, cada um a seu modo,
precursores da arte cinematográfica, uma vez que “cada plano de um filme define
um presente no tempo e no espaço.” (p. 35)
Além da pura exaltação do meio, porém, o que realmente
interessa a Green são os efeitos revelatórios que o estilo ou a filosofia que
anima o artista são capazes de proporcionar, ou seja, a inclusão do espectador
num jogo de representação. Desta forma, ele ressalta que na pintura
impressionista tratava-se de “representar um campo de visão como um momento no
tempo, um presente real, comportando não apenas os elementos visíveis, mas
igualmente o olho que os vê, de sorte que a imagem criada encerra o presente do
objeto e aquele do artista, unidos numa presença comum que deveria se
confundir, no momento de recepção da obra, com o presente do espectador” (pp.
92-93). E prossegue apontando que o cinematógrafo permite ir além pois “omomento atual do cinema é sempre composto de
elementos que fazem parte de um presente “real” no momento em que eles foram
filmados: os ladrilhos do chão, a madeira da mesa, as flores no vaso, o ser
humano que os contempla, ou ainda, no exterior, um pássaro, uma montanha, um
rio, todos estes elementos são “reais”e fazem parte da natureza. Mas essa
natureza tomada no presente de um plano deixa de ser real, pois um filme é
sempre uma representação”(p. 35).
Com esta argumentação, é como se Eugène Green fundisse a
potência do falso, do simulacro presente no mundo, com a crença na imagem como
representação ou signo “encarnado”. Pois, segundo ele, o que o verdadeiro
artista do cinematógrafo deve fazer é criar uma representação que encontre num reflexo
do mundo a sua realização e que depure desta relação uma verdade. “(...) a
tarefa do cineasta é de sentir, em relação àquilo que ele busca representar,
uma presença significante, e filmar o elemento no qual ela se manifesta de
sorte que esta se torne apreensível” (p. 239) Desta forma, o cineasta estaria transmitindo
a sua experiência de uma “presença real” invisível através de um signo, ou
seja, de um elemento que encerra uma significação profunda e secreta além de sua
superfície visível, a ser revelada em “fragmentos filmados do mundo, ali onde o
espectador, vendo estes mesmo elementos naquilo que ele toma como sua
realidade, teria percebido apenas a matéria.” (p. 204)
O que Green faz, como cineasta, no entanto, não é exatamente
o que ele aponta com esta formulação, muito bem exemplificada por ele no
trabalho de fotógrafos do início do século XX, cujas fotografias ele reproduz e
analisa no livro, ou mesmo nas citadas obras de Monet e Flaubert – nas quais a
forma contém em si a abertura para sentidos ocultos. Pois, talvez exatamente devido
à esta extensa teorização, intrínseca à sua visão do mundo e da arte, tais
idéias a respeito da metafísica, do mérito profundo da concepção de arte
barroca e do zelo sagrado com a palavra encontram-se cuidadosamente articuladas
na boca de seus personagens, no cenário de seus roteiros ou no próprio
desenvolvimento de suas narrativas. Para além da decupagem que privilegia a
frontalidade e se esforça por extrair “fatias” de matéria do mundo com o
intuito de isolar elementos e significar a partir de detalhes, Green se busca
delinear o que ele entende como sendo a ordem maior que nos ultrapassa e não
apenas indicar de forma indireta a sua existência. E, ao fazer isso, ele
privilegia, sem dúvida, as presenças fantasmáticas – verdadeiros simulacros –
em detrimento das “presenças reais” emanadas pelos espaços ou pela natureza.
Em Le Pont des Arts e Le Monde vivant, as
aparições de mortos, ao tornarem sensíveis estas presenças na imagem,
igualando-as em termos materiais com os corpos dos vivos, revelam um verdadeiro tour de force conceitual: tudo se passa como se a imagem representativa
desse conta de uma narrativa significante pelo registro direto de algo anterior
à representação, ou seja, de uma presença pura (ou ainda: de simulacros
investidos de vida). Em outras palavras, Green encara a câmera de cinema como
um aparato capaz de penetrar as aparências e capturar o invisível (as presenças
reais e ocultas do mundo), que ele, como cineasta, se encarregará de organizar
em representação “expositiva”. Assim sendo, sua obra apresenta dois percursos
paralelos: a fé ontológica numa vocação metafísica do registro cinematográfico
e o esforço de traduzir na representação uma compreensão particular da
existência. Disto resulta a complexidade do seu estilo, no qual a discursividade
não busca sua dissimulação no naturalismo e a poesia e o oculto não podem ser
nunca visados pela metáfora, mas apenas pela metonímia. Ora, isto nada mais é
do que assumir que a significação está encerrada nas coisas mesmas, em sua
dimensão de encarnação particular de uma ordem maior. “Este aspecto do signo,
estendido ao conjunto do conceito do cinematográfico, faz dele a arte
metafísica por excelência, porque ele leva o espectador a uma apreensão do
espírito a partir de uma captação da matéria (...)” (p. 242)
À presença oculta tornada real pela “decodificação” dos
signos, portanto, Green contrapõe a presença simbólica, que não se encontraria
no mundo, mas apenas nas obras de arte, pois “os símbolos são sempre fruto do
intelecto humano” (p. 143). Neste ponto, ele assinala que recorrer ao jogo
psicológico num filme corresponde a trair a natureza essencial do cinema, a sua
capacidade de capturar os elementos reais do mundo. Numa análise bastante
lúcida de Ordet,de Carl Th. Dreyer, ele aponta que o diretor dinamarquês
falha em sua representação do milagre da ressurreição ao final do filme ao
escolher mostrar os rostos dos personagens que reagem ao corpo da mulher que
levanta da morte, e não a manifestação própria do mistério: “o caráter didático
termina por afastar a presença real do sagrado.”(p. 153) Este caráter
“didático” seria justamente a operação simbólica (ou metafórica). Ele diz ainda
que se a atriz se levantasse diante de nós na imagem, haveríamos igualmente um
problema, pois nos planos antecedentes à ressurreição acreditamos que o corpo
filmado, que emana a energia viva da atriz, está morto, e tal opção consistiria,
portanto numa “nova utilização destes mesmos elementos [que] estaria em
contradição com aquela que já tínhamos aceitado.” (p. 152) Como contraposição
a esta problemática de mise en scène, Green faz o elogio de Bresson: “ao
assistirmos O Processo de Joana d’Arc, não percebemos nada da
“psicologia” da heroína (...) mas apreendemos o tempo todo a realidade presente
de uma alma humana, de forças que a cercam e nas quais ela se funde, até o momento
extraordinário, no final, no qual apreendemos ainda esta presença real na ausência
do corpo.” (pp. 182-185)
Daí depreende-se que, para Green, a única forma de
representar o milagre, ou de representar o invisível, é não transformá-lo numa
imagem “completa”, que dê um “rosto” que abarque a totalidade do mistério, mas
mantê-lo em grande parte fora da imagem, preservando sua dimensão secreta.
Donde a importância da palavra em seu cinema, da verdade feita corpo sonoro,
mas não visual. O som seria, então, a manifestação mais apropriada da visão,
por não se traduzir no âmbito da visibilidade. Por isso, em seus filmes,
a associação entre palavra e imagem carrega sempre um significado profundo: a
narração em off das cartas que os personagens trocam em Toutes les
nuits, sobreposta a imagens destes caminhando ou seguindo a vida, dá a
dimensão da comunicação “em outro plano” que os une através da existência; as
falas sobre planos de pés caminhando, ou sobre a luz que entra no batente da
porta estabelecem uma ligação entre a evidência do que vemos e a verdade dos
acontecimentos em curso que o som nos revela; os planos frontais que fixam em
sincronia perfeita as conversas dos personagens são manifestações da encarnação
de seu espírito em seu corpo e, portanto, a expressão plena e verdadeira
daqueles seres.
Ao longo de suas argumentações neste “ensaio”, Green termina
por colocar (embora não abertamente) em franca oposição o cinema que seria
herdeiro do cinematógrafo dos Lumière (o “verdadeiro cinema”) e o cinema debitário
da tradição teatral burguesa (na qual a busca pela encarnação do verbo do
teatro clássico deu lugar ao espelhamento de uma sociedade materialista),
afirmando, inclusive, que no cinema americano não haveria espaço para a
manifestação da natureza profunda do cinema. “(...) o puritanismo, que é
exatamente uma dominação intelectual da sensação e do conhecimento, assim como
a recusa de uma ambivalência na realidade, é incompatível com o caráter
essencial do cinema. / Isso explica também porque a maior entidade puritana,
que fabrica em grande quantidade produtos audiovisuais, nunca criou uma
cinematografia artística, mesmo se uma parte da crítica francesa tenta há
cinqüenta anos nos convencer do contrário (...) Os filmes do Bosque de buu são
sempre baseados numa idéia moral da qual as imagens e os sons constituem apenas
a ilustração edificante: quase nunca há presenças reais, mesmo se os elementos
a partir dos quais eles são construídos vêm da realidade, porque na máquina
montada cada elemento só guarda seu valor e seu sentido em relação a uma
vontade intelectual, sem nunca poder se manifestar diretamente sob a forma de
uma sensação”. (p. 180)
Por fim, Eugène Green ainda professa sua crença ontológica
na película como único meio possível para o cinema: “o signo cinematográfico é
baseado na captação, na matéria, de uma energia, aquela da presença oculta, e
na sua fixação na matéria da película, onde esta presença se torna apreensível
para o espectador. Por esta razão, a revelação do signo, como a expressão cinematográfica
em geral, é incompatível com o vídeo, pois o vídeo é desprovido de matéria, e
não capta energia alguma.” (pp. 240-241) Seguindo o desdobramento lógico deste
pensamento, temos que o vídeo seria, pois, o simulacro por excelência, que
Green, como bom artista barroco, se encarregaria de repudiar. Mas a obra de
Eugène Green não é de tão fácil circunscrição e seu amor pela filosofia barroca
(assim como seu misticismo “anacrônico”) não poderia tirar dele o status de cineasta contemporâneo. Suas proposições e seu estilo podem colocá-lo em
oposição às tendências audiovisuais em voga, mas sua produção artística
encontra-se absolutamente ancorada no presente: o que ele faz é buscar a
verdade na vida, traçando uma espécie de curto-circuito entre a metafísica de
origem platônica e a reação nietzschiana, uma vez que em seus filmes o aspecto
transcendente das coisas sempre escapa e nunca se oferece ao conhecimento
objetivo, apenas à intuição praticada no seio de experiências mundanas. Os
personagens de Green preocupam-se com a definição de conceitos e leis
essenciais (diversos diálogos retóricos, diretamente conectados ao cotidiano e
depurados numa expressão crua e direta, povoam seu cinema), mas encontram-se
absolutamente mergulhados em suas existências, às voltas com afirmações de
vontade e choques com interdições.
Voltando à questão do simulacro e da representação, é curioso
pensar que hoje boa parte do cinema que deseja se fundir ao mundo por suas
escolhas estético-filosóficas (a suspensão, o fluxo) é feito em vídeo,
tornando-se quase um espectro projetável em qualquer aparato (ou corpo), e
abolindo a dimensão relacional intrínseca à imagem “material”, dotada de corpo
e percebida como um ente à parte no mundo. Neste sentido, Eugène Green faz sim
parte de uma contracorrente, para a qual o sentido da arte reside em sua
diferenciação da vida 1, na dimensão criativa e reflexiva que ela instaura ao incorporar um ponto de vista, justamente. E, ao mesmo tempo, é uma imagem que afasta-se da
noção de pathos mais usual no cinema. Pois não gera afecção: o pathos nos filmes de Green está no interior da narrativa, não na relação
filme-espectador. Sentimos o que os personagens sentem, mas não há
identificação nem somos colados à vivência deles. Nos emocionamos pela
manifestação do mundo diante de nós. Trata-se, portanto, de uma imagem
que abarca a multiplicidade e a diferenciação das coisas ao mesmo tempo em que
aponta para um fora de si própria, para o absoluto da ordem que nos ultrapassa.
“Eu consegui obter um conhecimento não imaginando uma representação, um
símbolo, mas olhando o mundo visível, aprendendo a ver” (p. 204), diz Green.
Seus filmes são, portanto, mundos à parte, aos quais nos devemos conectar pela
fé, sentimento profundo e intuitivo, para eles nos permitam aceder um
conhecimento real do nosso próprio mundo.
Tatiana Monassa
1. A respeito da relação entre imagem e vida, recomenda-se a leitura do excelente artigo "Da vida das imagens, de Maria Teresa Cruz, publicado na Revista de Comunicação e Linguagens, N. 31 (Lisboa: Relógio d’Água, 2003) e disponível aqui
Março de 2010
|