Qualquer
melômano que se preze é arrebatado por Le
Pont des Arts. Trata-se
de um desses filmes que nos apanha violentamente, exaurindo-nos pela
experiência emocional que é capaz de proporcionar,
deixando-nos com a certeza de ter visto algo único. É,
também,
uma homenagem tortuosa ao vinil, ao poder que os sulcos têm
de
captar todas as profundezas musicais, e que o CD, e logo depois o
MP3, enterraram de vez;
uma
homenagem disfarçada de filme atemporal, passado em uma
época
em que a Internet não existia, nem o CD e o DVD. Levemente
nostálgico, celebra coisas que não
estão no
vocabulário
do dia. Ao mesmo tempo satiriza
uma imagem da
intelectualidade parisiense, metida, propensa a tirar a
música
de sua esfera emocional para circunscrevê-la total e
exclusivamente em uma redoma imaginária de teorias e
disciplina.
Mas não podemos dizer que Le
Pont des Arts seja apenas um filme musical, nem mesmo uma ode a essa nobre arte.
Porque o filme de Eugène Green mostra,
principalmente, como a música pode balançar
a
frieza e a razão. Pode mais: pode impedir um suicídio, os sulcos do vinil levando sentido
onde nada
mais existia.
Uma das cenas que descrevem com precisão esse poder musical ocorre aos
42 minutos, já conhecida pelos
bem aventurados: começa com os três cantores
(baixo,
barítono e tenor, ou coisa que o valha); a câmera
move-se levemente para a direita, revelando o exato momento em que
Natacha Régnier entra para cantar a ária de
Monteverdi.
Antes de tomar sua posição no ensaio, ela pára
na entrada da sala e sorri agradecidamente para Jéremie
Rénier, que
aconselhou-a
a tomar um café para se tranquilizar após as
ofensas de
Guigui, conhecido como "o inominável" – o
maestro vivido por Denis Podalydès. Esse pequeno movimento
da
câmera, que capta a entrada dela e o sorriso no canto
esquerdo
do quadro, é de uma precisão
inacreditável e
comprova que a habilidade de Green não se restringe aos
enquadramentos estáticos. A cantora inicia seu trabalho, e
emociona todos os presentes na sala, entre eles Rénier, o
mais
sensivelmente tocado. Mas a cena termina com o inacreditável
Guigui sentenciando: "pas trop dégueulasse"
("não muito horrível"), numa atitude de
superioridade que contrasta com seu olhar, visivelmente impressionado
- e vale dizer, incomodado, com a capacidade que a cantora tem de
conduzir a emoção presente no lamento.
Toda
essa sequência merece estudos à parte, pois nela
estão
contemplados os aspectos mais ricos do cinema de Green: a
teatralidade que se assume com uma frontalidade radical; os cortes
para planos médios com um único personagem no
espaço,
olhando para a câmera; o cuidado simétrico quase
doentio
com a posição do ator no quadro (no que ele se
assemelha a Manoel de Oliveira e ao casal Straub-Huillet) e com a
distância entre o ator e a câmera. Se
Eugène Green
é um dos maiores cineastas da atualidade é porque
consegue trabalhar com essas preocupações sem
sacrificar a fruição narrativa e, principalmente,
o
trabalho do ator. Mas existe também um outro dado. No
cinema de Green, não se trata de saber se a
cantora triunfou
ou não tecnicamente, e não é à
toa que ele zomba dos tecnocratas da arte. Não é
isso
que o interessa. Trata-se, somente, da capacidade de
condução
da emoção. Ela, claramente, alcançou esse
intento. Mas como um tecnocrata não sabe lidar com isso, o
inominável preferiu a agressão em forma de elogio
("pas
trop dégueulasse").
Falei
da frontalidade do teatro, mas não se trata apenas de
frontalidade. É algo mais. Neste filme e em outros de Green,
o
ator, quando não dialoga olhando para a câmera,
geralmente encerra a cena virando seu olhar para encontrar a lente,
ou seja, nós, causando um efeito direto, como um lancinante
raio de sua alma para nossos corações. No recente Vencer,
de Marco Bellocchio, temos uma cena em que Ida Dalser, a
razão
de ser do filme, encara a câmera como se estivesse intimando
uma tomada de posição do espectador. O efeito
é
certeiro. E é justamente esse efeito que Green persegue em
seus filmes. Ao fazer o ator olhar diretamente para a câmera
antes de encerrar uma cena o diretor forja uma cumplicidade que se
dá
entre a representação e o espectador de uma forma
quase inexorável.
Com esse estilo, mais do que radicalizar a frontalidade teatral,
Green penetra em nossos espíritos assim como a
música,
arte mais propensa a extasiar-nos
na
emoção.
Contudo,
uma curiosidade permanece no ar: por que o maestro Guigui é
tão nojento, e ainda assim tão jocosamente
patético?
Por que em sua boca piadas como a que escutamos perto
do fim ("você quer ver meu pinto?"), em um diálogo
primoroso e muito esclarecedor com Adrien Michaux, soam
engraçadas
e nada grosseiras? Por que sua maior vitória é
fazer
naufragar qualquer traço de emoção que
se
sobressaia na música? Muito da força e do enigma
desse
personagem vem do ator, claro. Mas há um toque autoral em
sua
construção. Esse toque responde por um humor que
talvez
seja explicado por sua origem: norte-americano expatriado na
França,
mas em claro desconforto com a classe artística francesa,
ainda que muitos lhe cubram de louros, Green é despojado, por vezes até
vulgar,
mas profundo em seus intentos, questionador e desconfiado da classe
artística mais blasé, sensível
às possibilidades do
ator, às filigranas de emoção que pode
captar. O
que ele capta de Guigui é contraditório como todo
humano. Nele convivem raiva e delicadeza, desprezo e
dedicação,
vaidade absurda e complexo de inferioridade por não saber
lidar com sentimentos.
A
construção desse personagem autenticamente
greeniano
deixa evidente também o tom teatral.
É como um
bufão que
já cansou de interromper o
andamento da peça e
resolveu atrapalhar a
personagem que para ele revela um talento inexplicável. No "Lamento
da Ninfa"
reside seu
trunfo: é com a peça de Monteverdi que ele doma a detentora das
emoções, melancolia encarnada,
deixando-a completamente vulnerável para
mais tarde dar o
golpe fatal. Outro
belo exemplo de construção desse personagem
é a
sua entrada em
cena. Temos uma panorâmica que sai do teto da sala
até
seus pés, afetados pelos floreios que dedilha no cravo. Em
seguida ouvimos sua voz, para só depois de uma breve
conversa
com Jéremie Rénier conhecermos sua face, enquanto
toca
o cravo como um músico cheio de soberba. A
composição
do ator é quase circense, rasgada no humor, aberta
às
mais infames possibilidades, apesar de ser um personagem
completamente highbrow,
como dizem nos EUA.
Podalydés
e seus amigos da alta cultura, entre eles um igualmente inspirado
Olivier Gourmet, são caricaturas de
afetação,
exageros usados para criticar a classe de artistas parisienses cheios
de empáfia. Não se trata de uma
crítica aos
intelectuais, mas de satirizar o aprisionamento das pessoas incapazes
de entender e externar suas emoções. Como
Buñuel,
Green é um grande crítico dos costumes da
sociedade
burguesa, e um parodiador mordaz daqueles que se julgam
patrocinadores da alta cultura. E quando Adrien Michaux descobre que
existe algo pelo qual vale a pena viver, "O Lamento da Ninfa",
de Monteverdi, está sacramentado o amor de Green pela
música,
como iria ser confirmado no filme irmão, A
Religiosa Portuguesa.
Em seus filmes não há lugar para a pose ou a
frivolidade, senão pela via cruel do escárnio.
Sérgio Alpendre
Março de 2010
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