Em seu "ensaio sobre a
natureza do cinema", Présences (Paris: Desclée de Brouwer/ Cahiers
du cinéma, 2003), livro não apenas belo, mas provavelmente um dos mais
inusitados e contundentes já escritos acerca da arte cinematográfica, Eugène
Green trata sobretudo dos fantasmas que, segundo ele, o cinema tem o privilégio
de representar como nenhuma outra arte. Uma arte, portanto, para ele, do
mistério, do incompreensível e, paradoxalmente, do não visível.
E assim é seu cinema. Uma obra
composta de pequenas pérolas, cuja força vem de sua fragilidade, de sua
simplicidade e da crença em coisas que apenas a palavra e o cinema, em perfeita
conjugação, podem evocar ou ressuscitar. Que não se pense aqui em filmes nos
quais a metafísica e a religião assumam um caráter grave e tomem a dianteira –
como no cinema de um Raoul Ruiz ou de um Andrei Tarkovski –, mas, ao contrário,
num cinema que, a partir do ascetismo e da leveza de situações banais, consegue
atingir, em momentos bastante particulares, a graça pela imanência – algo muito
mais próximo, por um lado, do cinema de Robert Bresson.
Americano de "Nouvelle
York" – como ele denomina a cidade que é chamada pelos franceses simplesmente
de New York –, Eugene Green adotou um acento grave em seu segundo "e"
e a França como pátria no final dos anos 1960 e, desde então, é de lá que lança
seu olhar ímpar e um tanto anacrônico sobre o mundo e a arte. Passando
primeiramente pelo teatro, após uma formação em Letras, ele se dedicou a uma extensa
pesquisa da época e da estética barrocas, acreditando encontrar ali respostas
mais eficazes a suas incessantes buscas pela representação do invisível.
Não se trata, todavia, da
caricatura do barroco à qual estamos em geral habituados, mas do Barroco em sua
essência, explorado em profundidade, ou seja, em sua extrema simplicidade e
rigor que operam milagres, através do uso bastante profícuo e complexo do
oxímoro, a figura de linguagem barroca por excelência. Dedicando-se a uma
pesquisa que duraria cerca de vinte anos, durante os quais ele explora a
declamação, o gestual e a teatralidade do período barroco na literatura,
pintura, arquitetura e música, Eugène Green defende, em seu livro La Parole baroque (Paris: Desclée de Brouwer, 2001), que o teatro europeu do século XVII não
devia nada aos grandes teatros orientais (Nô, Kabuki, Katakali ou Kunqu), já
que apresentava uma concepção do sagrado intimamente ligada à estética. Segundo
ele, é através da palavra, no momento em que a ciência desencantou o mundo, que
o "Deus oculto" se manifesta.
Porém, em nosso tempo, é no cinema
que Green encontrará o meio artístico mais efetivo e adequado à representação
do invisível, através da "palavra encarnada" ou "palavra feita
imagem". Assim, com o auxílio de uma série de procedimentos bastante
precisos e radicais – tais como o uso abundante de enquadramentos frontais dos
atores (que sempre olham para a câmera), de ligações sistemáticas entre as
palavras (artifício recuperado da declamação típica do século XVII) e de uma
fragmentação espacial (de lugares vazios e corpos) que recupera um antigo
hábito bressoniano –, o cineasta estabelece uma atmosfera de estranhamento e
descompasso que impregna seus filmes e acaba por inebriar o espectador, freqüentemente
surpreendido por tocantes momentos epifânicos.
Seja a terna conversa entre Jules e
a pequena filha de Émilie e Henri, ao final de Toutes les nuits (Prêmio
Louis Delluc de 2001) – livre adaptação de uma história de Flaubert, A
Primeira Educação Sentimental, transposta para o final dos anos 1960. Seja
o diálogo, no meio de uma floresta e à beira da fogueira, que salva a médica de
seu paciente lobisomem, no curta Le Nom du feu (2002). Sejam os vários
momentos mágicos de sua aventura "medieval", Le Monde vivant (2003),
em que um cavaleiro tendo como leão um cão porta uma espada presa ao cinto de
sua calça jeans, com a qual deve matar um ogro comedor de criancinhas. Seja a
bela "ressurreição" do personagem de Natacha Régnier proposta pelo
sutil jogo de luz e sombras sobre Le Pont des Arts (2004). Ou ainda o
encontro da atriz francesa com um garoto lisboeta e uma misteriosa freira, em A
Religiosa Portuguesa (2009).
Mas nenhum desses momentos de
extrema intensidade cinematográfica e contenção dramática significam tanto se
descolados do fluxo que seus filmes propõem ao espectador: uma experiência
quase mística, não viesse ela da sóbria redescoberta da beleza do cotidiano e
do poder do verbo. Conversando com ele um dia, num café parisiense, tive a
certeza de estar diante de um cineasta raro, sutil em sua pesquisa
cinematográfica e que, como tantos outros pelo mundo, pena a cada vez que quer
fazer um filme, pagando um alto preço por sua sensibilidade arguta em tempos de
tormenta.
Cristian Borges
Março de 2010
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