No
teatro, temos as palavras. E as palavras ocupam o espaço,
preenchem o ar. Pode-se escutá-las, senti-las, podemos
experimentar o seu peso. Mas, no cinema, as palavras permanecem
relegadas imediatamente a um segundo plano que as absorve.
Carl
Th. Dreyer,
1965
Para
Eric
Rohmer
Dentre
os artistas que acompanham o movimento da vida e do mundo,
Eugène
Green parece dos menos propensos a endossar um tipo de
posição,
corriqueira hoje em dia, que vê como inevitável a
separação entre ser e linguagem.
Diáfano da
palavra, dramaturgo da presença invisível, Green
faz
parte de um grupo cada vez mais raro e mais precioso de autores:
aqueles que ainda entendem a ficção como uma
espécie
de teatro do mundo e praticam seus trabalhos como cineastas - isto
é,
como documentaristas, fotógrafos da
ficção
capazes de produzir admiráveis reportagens do mundo
(tendência
Lumière, Méliès, Chaplin, Ozu,
Rossellini, Tati,
e mais recentemente Oliveira e Rohmer), e também como
poetas,
criadores capazes de fantasiar a partir e através de
impressões extraídas do mundo e da realidade
(tendência
De Mille, Hitchcock, Mizoguchi, Cocteau, Paradjanov, Franju, e mais
recentemente James Gray e Rivette). Mas que fique claro: esses dois
termos, o do documentário e o da poesia, longe de se
excluírem, estimulam pelo contrário um ao outro.
O que
observamos nos verdadeiros cineastas, porém, é
que se
suas obras são os produtos mais ou menos harmoniosos das
duas
tendências, a harmonia destes produtos não
é a de
um equilíbrio. Que fazer, então, nas raras
ocasiões
em que essa fusão se dá de forma tão
intensa que
chega a ser irrisório tentar discernir se o que a conduz
é
a razão ou o espírito? Interiorizada –
como em
Lang e Bresson – ou violentamente encarnada – como
em
Welles e Brisseau -, o que é raro – extremamente
raro –
é vê-la interiorizada e violentamente encarnada
num
único movimento deflagrador, o único verdadeiro:
o da
revelação.
Tal é o propósito do cinema de Eugène
Green:
revelar o espírito à luz da razão,
exaltar o ser
pelo mistério da palavra.
A
menção aos realizadores de Macbeth
e Falstaff,
de Orfeu e A
Bela e a Fera,
seria bastante supérflua se a obra de Green não
reivindicasse, como as de Welles e Cocteau no passado, a oralidade
como impulso poético de uma
reconstituição da
fantasia do real. Estamos no teatro, portanto, e como em todo o bom
teatro o sentido do espetáculo nos é dado pela
dialética entre a palavra e o espaço; uma
dialética
que, por ser furtiva à análise e rebelde a toda
forma
de elucidação, afasta os espíritos
incapazes de
se deixarem guiar pelo encantamento que dela se origina. É
assim que neste cinema em que o diálogo tem verdadeiro valor
de oração vemos a linguagem liberada de todos os
seus
excessos: tudo o que lhe é postiço, artificial e
finalmente irrelevante acaba abolido por uma
construção
que não separa a beleza da eficácia, pois tal
beleza
nasce mais pelo papel atribuído àquilo que a compõe
que por aquele reservado ao que ela acumula.
Green se afasta de uma tradição que teve como
precursores Benoît Jacquot e André
Téchiné
e que hoje se vê representada pelos inomináveis
Olivier
Assayas e Arnaud Desplechin, na qual a modulação
do
texto é sacrificada pelos arabescos de
construções
verborrágicas e prolixas, cujos enunciados geralmente
expõem
menos uma suposta complexidade psicológica da fala que a
estupidez escamoteada de seus autores. Se finalmente reencontra o
rigor de uma linguagem decantada, esta não tende tanto
à
essencialidade (eis o que o diferencia de um Bresson) nem à
liberdade expressa da farsa (o que o distancia da grande
tradição
fantasista de Renoir, Guitry ou Pagnol), mas sim a uma
espécie
de eternidade que emana da declamação serena e
imperturbável dos seus intérpretes.
Do
mesmo modo que a voz age sobre a palavra, atribuindo-lhe um tom,
repercutindo-a no espaço, à palavra
também
compete essa capacidade de agir, pois a existência de quem a
emite, antes mesmo de ser articulada, é verdadeiramente
revelada pelo empenho no conhecimento de si e do lugar que este ocupa no
mundo. O milagre a que assistimos em Toutes
les nuits, Le
Monde vivant,
Le
Pont des Arts,
Les
Signes
e A
Religiosa Portuguesa
é o do corpo empossado de um espírito no momento
em que
este se desvela pela fala. Justiça seja feita: corpos
belíssimos, capazes de resplandecer o brilho de uma luz
branda
que se instala confortavelmente sobre suas peles; corpos que
descobrimos numa rarefação de gestos sempre
eficazes,
estritamente reduzidos como parcelas de vida na
ação
que devem desempenhar no tempo e no espaço. Green foi
possivelmente o cineasta responsável pelas mais belas
silhuetas vistas nestes primeiros anos do novo século da
nossa
arte. Como esquecer, em Toutes
les nuits,
a primeira vez que vemos Christelle Prot, pés no
chão
que a cada passo esculpem uma criatura de beleza instigante,
verdadeira aparição que deixa em seu trajeto os
vestígios de uma sensualidade intimamente ligada ao conflito
que inquieta toda alma, esse sentimento místico que, para
ascender a uma forma de plenitude, à completa
consciência
de si, precisa despir-se de toda leviandade, de tudo que lhe
é
dispensável? Ou, ainda, em Le
Monde vivant,
a ressurreição de Alexis Loret, talvez o momento
mais
arrebatador de todo o cinema dos anos 2000: duas mãos, a de
Christelle Prot e a sua, que se encontram no instante eterno de uma
noite; uma mão que no escuro aguarda uma palavra; uma
palavra
que se concretiza no gesto que une a ação de um
coração
vivo à de um espírito ressuscitado pelo verbo e
reencarnado pela graça. E, ainda em Le
Monde vivant,
o sentimento de felicidade de que participamos nos instantes finais,
pois tudo está dito e a história foi contada.
São
nesses momentos que presenciamos o êxito desse estilo que,
longe da severidade que alguns interlocutores insistem em
atribuir-lhe, é na realidade de um generoso e inesperado
classicismo - quando a arte do cineasta já não
consiste
em nada mais que coincidir a respiração de um
ator à
serenidade de uma paisagem, quando finalmente o ritmo da mise
en scène
acorda-se à intensidade com que o mundo investe suas
forças
na cena. Mantendo-se fiel a um método que é
também
uma idéia e uma profissão de fé,
Eugène
Green permanece a pérola rara: o artista que se cala para
deixar que o mundo fale.
Bruno Andrade
Março de 2010
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