Dispersões, ausências e o vazio do contemporâneo em Mulher à Tarde, A Falta que Nos Move e Pacific.
Que espécie de vórtice é esse que faz com que o elogio da
singularidade, o ancoramento do mundo numa perspectiva individual, corresponda
ao apagamento da instância enunciadora, do sujeito como organizador da
experiência?
De diferentes formas, diversos dos filmes exibidos nesta
edição da mostra de Tiradentes trouxeram a questão da diluição do lugar de
enunciação em favor de uma suposta primazia da imagem, seja pela exacerbação da
plasticidade, seja pela ênfase num índice de real. Mulher à Tarde, de
Affonso Uchoa, é um exemplar perfeito do possível novo academicismo de que
falei no texto anterior, em que a rarefação narrativa não se encontra aliada a
uma produção de sentido, e os planos por demais calculados carecem de vida,
sobretudo pelo ruído causado pela associação de uma estilização extremada ao
desejo de um ultra-realismo do cotidiano. A Falta Que Nos Move, de Cristiane
Jatahy, por outro lado, constrói seus planos não como instância prévia à
organização de mundo, mas posterior. O quadro é um recorte de algo que já
existiria sem a intervenção da câmera e cuja característica de registro realizado
na urgência (aliado, claro, ao dispositivo que chama ao improviso) traz consigo
uma forte aura de “realidade”. A autoralidade da imagem dilui-se entre o
trabalho dos atores “em palco” e o dos câmeras. Já Pacific, de Marcelo Pedroso, aglutinação de vídeos caseiros realizados por diferentes passageiros de um
cruzeiro, em sua inerente indiscernibilidade entre documentário e ficção,
prescinde por completo de uma organização plástica que parta do diretor e
implode a concepção de organização de mundo em favor de um ganho de autenticidade
– do registro e de tudo o que vemos.
Em todos esses casos almeja-se uma coisa: imiscuir-se num
presente completo, irredutível e engrandecedor. O autor passa a ser não aquele que
apresenta uma proposição fechada, dotada de sentido (e eventualmente de
mensagem), um mundo organizado por uma subjetividade enunciadora, mas aquele
que dá a ver e/ou vivenciar uma experiência de mundo, que é capaz de fazer a
passagem entre o espectador e uma determinada realidade (seja ela ficcional ou
não). A dimensão de construção perde seu valor como efeito, permanece num
momento anterior que não o do desenrolar-se do filme no tempo. Esta diluição do
sujeito no mundo, dando origem a um perspectivismo intensificado, é sem dúvida
reflexo de paradigmas da nossa era. Por que, então, o profundo incômodo?
Bem, porque a nossa cultura não é calcada numa concepção
harmônica entre homem e natureza, que prevê trocas e dinâmicas de eternas
negociações e uma consciência dispersa no mundo. Eliminar a luta e forjar uma
organicidade que não existe para abarcar tudo o que há é, no fundo, tão somente
um movimento conciliador, que possui, claro, suas conseqüências políticas e filosóficas. Sobretudo
porque não se trata apenas da disseminação da contemplação como estratégia
estética, mas de suprimir o confronto também da narrativa. Tudo é jogado para o
campo das intensidades, onde, sem risco e sem medo, converte-se em modulações
oscilantes que ignoram ainda a idéia de impacto.
Desta forma, Mulher à Tarde torna-se nada mais do que
um documento de vestimentas, objetos, hábitos e gestos de uma determinada
juventude urbana contemporânea; Pacific um documento do imaginário
escapista de uma parcela da classe média e sua relação com a produção de uma auto-imagem; A Falta Que Nos Move um documento de conversas e veleidades de uma
classe média alta razoavelmente culta. É tudo o que temos? Documentos de época
nos quais as operações artísticas também o são? Em que estes filmes interpelam de
fato o mundo ou propõem qualquer tipo de diálogo com o fora deles mesmos? É
possível considerar, por exemplo, em A Falta que Nos Move, a existência
de uma conversa banal dos personagens sobre a militância de seus pais na
ditadura como elemento construtor de um retrato de geração mais ou menos conectado
com a história do país, como a publicidade em torno do filme anuncia, uma vez
que tudo o que é falado na redoma daquela casa se dissipa no ar imediatamente?
Talvez, no fim das contas, o problema aqui seja também o do lugar
do cinema. Quem sabe esta pulverização do olhar que apaga o lugar da enunciação
não pertença a outras manifestações, como a web-arte, a vídeo-arte, a
publicidade, a televisão? Embora extremamente permeável a qualquer disciplina,
do teatro à antropologia, o cinema, ou pelo menos nossa concepção dele ao longo
do século XX, descarta efeitos inconseqüentes e desconectados, prevê alguma
ligação significante entre a instância organizadora da forma, o resultado
estético e a representação de mundo. E se a tônica dominante é esta, de minar a
significação objetiva e a dialética entre obra e mundo proposta por um artista
dotado de ponto de vista, será que os projetos artísticos dos filmes citados
acima não solicitariam uma outra forma de fruição por parte do espectador, que
não aquela da frontalidade perpectivista de uma sala de cinema?
Diante de Pacific, impossível não se perguntar o
porquê de tudo aquilo estar sendo projetado numa tela de grandes proporções
diante de uma platéia organizada em fileiras de cadeiras, quando as imagens são
fruto de relações ligeiras e fragmentadas com o mundo. Desconfiança que, por
outros vieses, Mulher à Tarde também suscita. Chamando a atenção para a
presença do corpo exposto ao tempo, dentro da imagem, de um lado, e dentro da
sala, de outro, ele converte-se num real teste de resistência e interpelação
relacional que pouco tem a ver com a organização de imagens que costumamos
chamar de cinema. A Falta Que Nos Move, por sua vez, cheira a um misto
de Big Brother com performance teatral que, com sua carga de entretenimento voyeurista
e jogo “interativo” também se distancia da idéia de “filme”.
Será isto o que aqueles que anunciam a morte do cinema têm
em mente quando proferem sua sentença? De toda forma, sabemos que há um vazio
muito grande nestes filmes, que não pode ser compensado pelo rótulo de “conceitual”
e está relacionado ao fato das imagens apenas contemplarem sua dimensão de
fluxo. Um vazio perturbador que impede qualquer celebração que não seja pontual
do que está sendo produzido no Brasil hoje. Afinal, "cautela" nunca pode deixar de ser uma palavra de ordem.
Tatiana Monassa
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