13ª MOSTRA DE TIRADENTES

Dispersões, ausências e o vazio do contemporâneo em Mulher à Tarde, A Falta que Nos Move e Pacific.

Que espécie de vórtice é esse que faz com que o elogio da singularidade, o ancoramento do mundo numa perspectiva individual, corresponda ao apagamento da instância enunciadora, do sujeito como organizador da experiência?

De diferentes formas, diversos dos filmes exibidos nesta edição da mostra de Tiradentes trouxeram a questão da diluição do lugar de enunciação em favor de uma suposta primazia da imagem, seja pela exacerbação da plasticidade, seja pela ênfase num índice de real. Mulher à Tarde, de Affonso Uchoa, é um exemplar perfeito do possível novo academicismo de que falei no texto anterior, em que a rarefação narrativa não se encontra aliada a uma produção de sentido, e os planos por demais calculados carecem de vida, sobretudo pelo ruído causado pela associação de uma estilização extremada ao desejo de um ultra-realismo do cotidiano. A Falta Que Nos Move, de Cristiane Jatahy, por outro lado, constrói seus planos não como instância prévia à organização de mundo, mas posterior. O quadro é um recorte de algo que já existiria sem a intervenção da câmera e cuja característica de registro realizado na urgência (aliado, claro, ao dispositivo que chama ao improviso) traz consigo uma forte aura de “realidade”. A autoralidade da imagem dilui-se entre o trabalho dos atores “em palco” e o dos câmeras. Já Pacific, de Marcelo Pedroso, aglutinação de vídeos caseiros realizados por diferentes passageiros de um cruzeiro, em sua inerente indiscernibilidade entre documentário e ficção, prescinde por completo de uma organização plástica que parta do diretor e implode a concepção de organização de mundo em favor de um ganho de autenticidade – do registro e de tudo o que vemos.

Em todos esses casos almeja-se uma coisa: imiscuir-se num presente completo, irredutível e engrandecedor. O autor passa a ser não aquele que apresenta uma proposição fechada, dotada de sentido (e eventualmente de mensagem), um mundo organizado por uma subjetividade enunciadora, mas aquele que dá a ver e/ou vivenciar uma experiência de mundo, que é capaz de fazer a passagem entre o espectador e uma determinada realidade (seja ela ficcional ou não). A dimensão de construção perde seu valor como efeito, permanece num momento anterior que não o do desenrolar-se do filme no tempo. Esta diluição do sujeito no mundo, dando origem a um perspectivismo intensificado, é sem dúvida reflexo de paradigmas da nossa era. Por que, então, o profundo incômodo?

Bem, porque a nossa cultura não é calcada numa concepção harmônica entre homem e natureza, que prevê trocas e dinâmicas de eternas negociações e uma consciência dispersa no mundo. Eliminar a luta e forjar uma organicidade que não existe para abarcar tudo o que há é, no fundo, tão somente um movimento conciliador, que possui, claro, suas conseqüências políticas e filosóficas. Sobretudo porque não se trata apenas da disseminação da contemplação como estratégia estética, mas de suprimir o confronto também da narrativa. Tudo é jogado para o campo das intensidades, onde, sem risco e sem medo, converte-se em modulações oscilantes que ignoram ainda a idéia de impacto.

Desta forma, Mulher à Tarde torna-se nada mais do que um documento de vestimentas, objetos, hábitos e gestos de uma determinada juventude urbana contemporânea; Pacific um documento do imaginário escapista de uma parcela da classe média e sua relação com a produção de uma auto-imagem; A Falta Que Nos Move um documento de conversas e veleidades de uma classe média alta razoavelmente culta. É tudo o que temos? Documentos de época nos quais as operações artísticas também o são? Em que estes filmes interpelam de fato o mundo ou propõem qualquer tipo de diálogo com o fora deles mesmos? É possível considerar, por exemplo, em A Falta que Nos Move, a existência de uma conversa banal dos personagens sobre a militância de seus pais na ditadura como elemento construtor de um retrato de geração mais ou menos conectado com a história do país, como a publicidade em torno do filme anuncia, uma vez que tudo o que é falado na redoma daquela casa se dissipa no ar imediatamente?

Talvez, no fim das contas, o problema aqui seja também o do lugar do cinema. Quem sabe esta pulverização do olhar que apaga o lugar da enunciação não pertença a outras manifestações, como a web-arte, a vídeo-arte, a publicidade, a televisão? Embora extremamente permeável a qualquer disciplina, do teatro à antropologia, o cinema, ou pelo menos nossa concepção dele ao longo do século XX, descarta efeitos inconseqüentes e desconectados, prevê alguma ligação significante entre a instância organizadora da forma, o resultado estético e a representação de mundo. E se a tônica dominante é esta, de minar a significação objetiva e a dialética entre obra e mundo proposta por um artista dotado de ponto de vista, será que os projetos artísticos dos filmes citados acima não solicitariam uma outra forma de fruição por parte do espectador, que não aquela da frontalidade perpectivista de uma sala de cinema?

Diante de Pacific, impossível não se perguntar o porquê de tudo aquilo estar sendo projetado numa tela de grandes proporções diante de uma platéia organizada em fileiras de cadeiras, quando as imagens são fruto de relações ligeiras e fragmentadas com o mundo. Desconfiança que, por outros vieses, Mulher à Tarde também suscita. Chamando a atenção para a presença do corpo exposto ao tempo, dentro da imagem, de um lado, e dentro da sala, de outro, ele converte-se num real teste de resistência e interpelação relacional que pouco tem a ver com a organização de imagens que costumamos chamar de cinema. A Falta Que Nos Move, por sua vez, cheira a um misto de Big Brother com performance teatral que, com sua carga de entretenimento voyeurista e jogo “interativo” também se distancia da idéia de “filme”.

Será isto o que aqueles que anunciam a morte do cinema têm em mente quando proferem sua sentença? De toda forma, sabemos que há um vazio muito grande nestes filmes, que não pode ser compensado pelo rótulo de “conceitual” e está relacionado ao fato das imagens apenas contemplarem sua dimensão de fluxo. Um vazio perturbador que impede qualquer celebração que não seja pontual do que está sendo produzido no Brasil hoje. Afinal, "cautela" nunca pode deixar de ser uma palavra de ordem.

Tatiana Monassa