Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, e Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro
“Estar perto não é uma questão física” escreve em
determinado momento o protagonista de Os Famosos e os Duendes da Morte em seu blog. Para Esmir Filho nada é “uma questão física”. Seus personagens
flutuam em devaneios, videologs, fotoblogs e músicas como a névoa disforme paira
sobre a pequena cidade gaúcha em que se passa o filme. O empuxo que acomete os
corpos que se atiram da ponte da cidade em direção à morte é tratado como uma
vaga ameaça, uma sombra passível de gerar expressões pseudo-poéticas (“gostaria
de fotografar o rosto deles quando se dão conta de que não há mais volta”) e
nunca como um risco real que perfure a sociedade. Desconectados, seus jovens
desconhecem o embate com a alteridade, pois seus dilemas giram apenas em torno
deles próprios: o desejo do rapaz em partir para ver Bob Dylan tocar não é
confrontado a uma proibição materna ou a uma falta de recursos financeiros, mas
simplesmente a um misto indefinido de indecisão e ausência de encorajamento. Ou
seja: entre esta consciência e o mundo há uma barreira maleável, mas tão
intransponível quanto imaterial, como a metáfora visual do papel celofane em Saliva.
Neste sentido, o uso da teleobjetiva é preciso: os personagens não pertencem ao
cenário que habitam e só podem efetivamente se unir a ele como “manchas de luz”
que se confundem na abstração das formas, nunca como corpos dotados de matéria e
que se chocam (como bem demonstra o plano final, aliás, em que, após contemplar
o “abismo” da ponte eleita pelos suicidas locais, o personagem parte em direção
ao infinito e some na paisagem desfocada).
A morte é, portanto, apenas uma ligeira reconfiguração da
vida. A inexistência de corpo não afeta estes fantasmas que se apaixonam e se
relacionam de forma espectral através da virtualidade de chats e afins.
Como esperar deles, portanto, qualquer sentido de realidade, qualquer
responsabilidade afetiva? Muito distante da verdadeira força presente na música
de Bob Dylan – utilizada aqui apenas como referência estilizada e cult –
estes personagens existem em um mundo de mentira, idealizado, construído peça a
peça para formar um ambiente asséptico onde nenhum elemento de risco jamais
poderá penetrar por um descuido qualquer. A colônia alemã é apenas um mundo
distante, controlável em suas nuances. O sentido de comunidade, assim como o de
família, está ausente, pois tudo o que temos são indivíduos. E a idéia de país,
então, chega a parecer anômala. O amor pode, pois, desfilar como esta entidade
de reverberações metafísicas cujo habitat privilegiado é a imaginação: uma vez
que a matéria já foi desqualificada como constituinte do mundo, os corpos podem
tranquilamente prescindir da carne para se relacionarem. A menina está morta,
mas o espírito do rapaz também não toca a terra. E eis que o puritanismo bate à
porta, fazendo coro ao amor adolescente bem-comportado dos vampiros de Crepúsculo.
Em Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, a história é
bem diferente. O cenário é praticamente o mesmo, assim como a faixa etária dos
protagonistas, mas a urgência da vida faz-se presente com uma força pouco vista
no cinema brasileiro recente, em especial o documental. O conflito natural
entre Bruno, em seu início de vida adulta, e o mundo é descortinado pouco a
pouco numa narrativa de contornos ficcionais com surpreendentes ecos de Jean
Rouch. Primeiro, conseguir passar de ano na escola, em seguida, conversar com
os pais sobre o futuro: estudos, curso de mecânico... E, ao mesmo tempo em que
o trabalho de colheita o chama, há o primeiro amor a ser conquistado.
Solicitado intensamente pelo entorno, Bruno é uma subjetividade em formação que
se esforça para negociar sua identidade. Ao mesmo tempo em que sua ligação com
a terra é intensa, como testemunham suas longas peregrinações com os amigos por
entre as árvores, entre a conectividade e a investigação, a vontade de partir e
as ambições maiores que o estreito território irrompem apontando para o fora
daquele universo.
A observação de Spolidoro é a do campo-contracampo, a de um
olhar que não se furta a fazer inferências, a do registro que incorpora as
contradições e a dinâmica complexa do mundo – por menor que este aqui se
apresente. Se em determinadas passagens o valor de documento de um estilo de
vida que, embora circunscrito a um espaço e um tempo específicos, reverbera uma
cultura que em muito lhe ultrapassa nos faz lembrar dos Profils Paysans de Raymond Depardon, em outras o que temos é o autêntico prazer de dar a ver
ações concretas que revelam o interior de um personagem. Bruno se desvela nos
gestos, nas falas espontâneas, na interação com tudo que o cerca. Paralelamente,
a perspectiva da conquista da menina concede ao filme um elemento propulsor da
narrativa, ao construir uma expectativa no tempo: a menina anuncia (sob dúvida) que
o encontro deles apenas se dará no carnaval de rua da cidade. Até lá, portanto,
instala-se este impasse: o que fazer para garantir que o encontro se dê de
fato, para prolongar o interesse dela e impedir que este se esvaia? Encontrado
tal elemento de tensão que sustenta em grande parte a aura ficcional do relato,
Spolidoro pode dedicar-se a registrar um cotidiano marcado pelos ciclos da
natureza, uma rotina de hábitos que se repete dentro de uma idéia de tempo
tradicionalmente cíclica, mas que o filme ousa apresentar como espiralada. O
movimento aqui não é um constituinte estético-filosófico que molda os planos do
filme, mas uma concepção profunda da natureza: o universo buscaria de forma
inerente sua superação. Bruno é o vetor que nega a alta taxa de suicídio entre
os jovens locais, que não se contenta com o horizonte de montanhas
instransponíveis, que é alimentado por uma inquietude tão forte e natural como
as forças de permanência que alimentam sua comunidade. E Morro no Céu é
o filme que se recusa a retratar seu objeto sob a chave em voga da observação
carinhosa da singularidade (eventualmente salpicada de exotismo), que se
aventura na construção de uma narrativa em que a dialética entre a câmera e a
matéria do mundo é a pedra de base. Em suma, um filme para o qual tudo é, em maior ou menor medida, uma questão física.
Tatiana Monassa
|