13ª MOSTRA DE TIRADENTES

Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, e Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro

“Estar perto não é uma questão física” escreve em determinado momento o protagonista de Os Famosos e os Duendes da Morte em seu blog. Para Esmir Filho nada é “uma questão física”. Seus personagens flutuam em devaneios, videologs, fotoblogs e músicas como a névoa disforme paira sobre a pequena cidade gaúcha em que se passa o filme. O empuxo que acomete os corpos que se atiram da ponte da cidade em direção à morte é tratado como uma vaga ameaça, uma sombra passível de gerar expressões pseudo-poéticas (“gostaria de fotografar o rosto deles quando se dão conta de que não há mais volta”) e nunca como um risco real que perfure a sociedade. Desconectados, seus jovens desconhecem o embate com a alteridade, pois seus dilemas giram apenas em torno deles próprios: o desejo do rapaz em partir para ver Bob Dylan tocar não é confrontado a uma proibição materna ou a uma falta de recursos financeiros, mas simplesmente a um misto indefinido de indecisão e ausência de encorajamento. Ou seja: entre esta consciência e o mundo há uma barreira maleável, mas tão intransponível quanto imaterial, como a metáfora visual do papel celofane em Saliva. Neste sentido, o uso da teleobjetiva é preciso: os personagens não pertencem ao cenário que habitam e só podem efetivamente se unir a ele como “manchas de luz” que se confundem na abstração das formas, nunca como corpos dotados de matéria e que se chocam (como bem demonstra o plano final, aliás, em que, após contemplar o “abismo” da ponte eleita pelos suicidas locais, o personagem parte em direção ao infinito e some na paisagem desfocada).

A morte é, portanto, apenas uma ligeira reconfiguração da vida. A inexistência de corpo não afeta estes fantasmas que se apaixonam e se relacionam de forma espectral através da virtualidade de chats e afins. Como esperar deles, portanto, qualquer sentido de realidade, qualquer responsabilidade afetiva? Muito distante da verdadeira força presente na música de Bob Dylan – utilizada aqui apenas como referência estilizada e cult – estes personagens existem em um mundo de mentira, idealizado, construído peça a peça para formar um ambiente asséptico onde nenhum elemento de risco jamais poderá penetrar por um descuido qualquer. A colônia alemã é apenas um mundo distante, controlável em suas nuances. O sentido de comunidade, assim como o de família, está ausente, pois tudo o que temos são indivíduos. E a idéia de país, então, chega a parecer anômala. O amor pode, pois, desfilar como esta entidade de reverberações metafísicas cujo habitat privilegiado é a imaginação: uma vez que a matéria já foi desqualificada como constituinte do mundo, os corpos podem tranquilamente prescindir da carne para se relacionarem. A menina está morta, mas o espírito do rapaz também não toca a terra. E eis que o puritanismo bate à porta, fazendo coro ao amor adolescente bem-comportado dos vampiros de Crepúsculo.

Em Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, a história é bem diferente. O cenário é praticamente o mesmo, assim como a faixa etária dos protagonistas, mas a urgência da vida faz-se presente com uma força pouco vista no cinema brasileiro recente, em especial o documental. O conflito natural entre Bruno, em seu início de vida adulta, e o mundo é descortinado pouco a pouco numa narrativa de contornos ficcionais com surpreendentes ecos de Jean Rouch. Primeiro, conseguir passar de ano na escola, em seguida, conversar com os pais sobre o futuro: estudos, curso de mecânico... E, ao mesmo tempo em que o trabalho de colheita o chama, há o primeiro amor a ser conquistado. Solicitado intensamente pelo entorno, Bruno é uma subjetividade em formação que se esforça para negociar sua identidade. Ao mesmo tempo em que sua ligação com a terra é intensa, como testemunham suas longas peregrinações com os amigos por entre as árvores, entre a conectividade e a investigação, a vontade de partir e as ambições maiores que o estreito território irrompem apontando para o fora daquele universo.

A observação de Spolidoro é a do campo-contracampo, a de um olhar que não se furta a fazer inferências, a do registro que incorpora as contradições e a dinâmica complexa do mundo – por menor que este aqui se apresente. Se em determinadas passagens o valor de documento de um estilo de vida que, embora circunscrito a um espaço e um tempo específicos, reverbera uma cultura que em muito lhe ultrapassa nos faz lembrar dos Profils Paysans de Raymond Depardon, em outras o que temos é o autêntico prazer de dar a ver ações concretas que revelam o interior de um personagem. Bruno se desvela nos gestos, nas falas espontâneas, na interação com tudo que o cerca. Paralelamente, a perspectiva da conquista da menina concede ao filme um elemento propulsor da narrativa, ao construir uma expectativa no tempo: a menina anuncia (sob dúvida) que o encontro deles apenas se dará no carnaval de rua da cidade. Até lá, portanto, instala-se este impasse: o que fazer para garantir que o encontro se dê de fato, para prolongar o interesse dela e impedir que este se esvaia? Encontrado tal elemento de tensão que sustenta em grande parte a aura ficcional do relato, Spolidoro pode dedicar-se a registrar um cotidiano marcado pelos ciclos da natureza, uma rotina de hábitos que se repete dentro de uma idéia de tempo tradicionalmente cíclica, mas que o filme ousa apresentar como espiralada. O movimento aqui não é um constituinte estético-filosófico que molda os planos do filme, mas uma concepção profunda da natureza: o universo buscaria de forma inerente sua superação. Bruno é o vetor que nega a alta taxa de suicídio entre os jovens locais, que não se contenta com o horizonte de montanhas instransponíveis, que é alimentado por uma inquietude tão forte e natural como as forças de permanência que alimentam sua comunidade. E Morro no Céu é o filme que se recusa a retratar seu objeto sob a chave em voga da observação carinhosa da singularidade (eventualmente salpicada de exotismo), que se aventura na construção de uma narrativa em que a dialética entre a câmera e a matéria do mundo é a pedra de base. Em suma, um filme para o qual tudo é, em maior ou menor medida, uma questão física.

Tatiana Monassa