13ª MOSTRA DE TIRADENTES

Tendências e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes.

Nunca o presente foi tão celebrado quanto na época atual. Em arte, a denominação “contemporâneo” perdeu seu caráter de definição temporal para converter-se em “estilo de época” e, paralelamente, tudo, absolutamente tudo, passou a circular sob a lógica da rede: na mesma superfície, estabelecendo conexões frágeis e temporárias.

Tal diagnóstico se anuncia já há um tempo, sendo os sintomas cinematográficos perceptíveis em manifestações diversas, dentro e fora do Brasil. No entanto, é aqui, no nosso entorno imediato, que as possibilidades de análise e compreensão se apresentam de forma decisiva. E neste aspecto, podemos dizer que as mostras organizadas em Minas Gerais pela Universo Produção, em seu afã de sintetizar proposições de contorno preciso, talvez sejam o melhor lugar para avaliar pesos e medidas e acompanhar a evolução da situação.

Curiosamente, é também em Minas que uma das “correntes” estéticas de maior repercussão na produção brasileira dos últimos anos possui seu berçário: o misto de video-arte com cinema que tem se expandido de forma tão decisiva no imaginário cinematográfico nacional recente teve como vigorosos porta-bandeiras iniciais Cao Guimarães e a Teia. Talvez seja mesmo possível falar hoje num remodelamento da idéia de estrutura de filme junto às novas gerações (formadas essencialmente por jovens curtas-metragistas e longas-metragistas iniciantes) que passa pela recusa da “estrutura” convencional em favor de uma concepção de quase-instalação.

Nesta imagem “contemplativa”, que quando usada a serviço de uma narrativa se auto-denomina como “de afecção”, “de superfície”, ou “de imersão”, o que se busca é sobretudo a perda de referências externas – o “perder-se” no presente, justamente. E o que, além de belas palavras e discursos emotivos, esta tendência traz para o cinema? Ora, um risco pouco anunciado mas profundamente preocupante: a perda de consciência histórica, a anulação dos conflitos entre o sujeito e o mundo, o autismo que leva ao esquecimento da política. E, numa segunda instância, a desarticulação de imagens e sons (fruto da desobrigação de fechar sentidos), a recusa de emitir discursos, a perda da conexão trágica entre imagem e mundo, o esvaziamento do peso das coisas que confere conseqüencialidade às ações humanas. O resultado? Filmes em que tempo e espaço não são mais variáveis trabalhadas de acordo com uma concepção artístico-existencial qualquer, mas conceitos fluidos que buscam sua diluição no interior de uma consciência auto-centrada.

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Nesta edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, o cineasta homenageado talvez se preste melhor do que qualquer outro à análise da situação acima exposta. Karim Aïnouz emergiu no cenário cinematográfico brasileiro com um dos filmes mais belamente políticos, pessoais, arrojados e sensíveis feitos no mundo na última década. Madame Satã soube conjugar não apenas um trabalho impressionante com os atores com uma mise en scène perfeitamente adequada à narrativa, como apresentar de forma inextricável um drama de ecos universais sobre inadequação e luta e um libelo sobre a afirmação de si e de desejos profundos. O tempo e o espaço lá estavam, definidos, e sobre eles se impunha o personagem, dobrando o mundo à sua potência. Com O Céu de Suely, veio a vontade de uma certa doçura e suavidade. Hermila é mulher, tem um filho e introjeta boa parte de sua insatisfação com o entorno, que é eventualmente “devolvida” sob a forma de lágrimas. A morosidade do espaço que ela habita torna-se o tempo do filme, terminando por anestesiar a montagem e, com ela, os conflitos de Hermila com o mundo. O lado político de seu posicionamento frente à situação desfavorecida, por sua vez, é duramente amortecido por uma ênfase demasiada no espaço geográfico-social em que se passa a ação e na figuração sistemática de traços culturais locais, que “desfilam” seu charme. Entre uma interioridade pouco perscrutável e a preferência expressa pela ambientação em detrimento do drama da personagem, Karim Aïnouz cedia ali a uma romantização do conflito, que chegava, em última instância, a se manifestar como um olhar complacente sobre o mundo.

Chegamos, então, a Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo. Aqui, o cine-diário do fluxo de pensamento faz com que, desde o início, o drama esteja situado numa interioridade, desprovido de ações físicas e, consequentemente, isento de embate direto com o mundo. O ambiente, no entanto, está lá o tempo todo: ele invade a tela, em imagens que se esforçam para dar conta de um espaço concreto, mas que, por já nos chegarem mediadas, vêm sem peso, amontoando-se num aglomerado sem começo nem fim – o processo de mediação é, por sinal, semelhante ao de No Sex Last Night, de Sophie Calle, o que aponta diretamente para o mal compartilhado do contemporâneo: uma subjetividade “sensível” que esmaga o mundo. O tempo não é linear, tampouco cíclico: ele reflete um eterno presente, em que cada imagem almeja existir por si e a narração do personagem não quer outra coisa senão narrar a si própria . O elemento político dilui-se, pois: a tal represa que extinguiria vilas e desalojaria famílias de sua pacata existência não é a barragem das Três Gargantas de Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida. Sobretudo porque o personagem é um passante que emociona-se pontualmente com elementos que encontra em sua viagem, mas está tão absorto revolvendo seus sentimentos dentro do peito ou da cabeça que é incapaz de estabelecer pontes consistentes com o exterior. Tudo é efêmero: as emoções, as articulações entre som, imagem e narração, os sentidos possíveis de serem extraídos das diversas camadas que compõem o filme. Em suma: Viajo Porque Preciso... existe quase sem existir. Como o fluxo de consciência que o guia, seu percurso é errático sem ser construtivo, é afiado sem ter densidade alguma, é propositivo sem nada apresentar de concreto.

Aonde nos levará, por fim, esta vontade ferrenha de leveza e esta sentimentalidade eminentemente inconseqüente? A flutuação só adquire sentido quando confrontada à gravidade. Sem embates, e, portanto, sem sentidos claros, qualquer proposição perde-se no vácuo, circula indefinidamente por não-territórios, mergulha na abstração do “eu”. Embora dialogue com os curtas-metragens realizados anteriormente por Aïnouz (Seams e Paixão Nacional) no quesito cine-diário, Viajo Porque Preciso radicaliza tendências apontadas em O Céu de Suely que inexistiam anteriormente: a anulação de um sentido de perigo na relação do indivíduo com o mundo, a vazão a sentimentos que não se manifestam na materialidade e apenas revolvem em torno de si e um “realismo sensível” que flerta com a fetichização do “popular” sob a chave do “autêntico”. Do lado de Marcelo Gomes, podemos igualmente dizer que o que tensionava a narrativa de Cinema, Aspirinas e Urubus, fazendo dele um filme conectado ao mundo, à história e a conflitos mais ou menos determinados, desaparece aqui, permanecendo apenas a estrada, a deambulação, o vago sentido de encontro.

Para onde terá ido, portanto, o cinema a se defender com unhas e dentes hoje no Brasil? Tudo o mais “a ser defendido” sabemos que encontra-se aqui, em Tiradentes, onde todos não se cansam de celebrar o presente.

Tatiana Monassa