Tendências e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes.
Nunca o presente foi tão celebrado quanto na época atual.
Em arte, a denominação “contemporâneo”
perdeu seu caráter de definição temporal para
converter-se em “estilo de época” e, paralelamente,
tudo, absolutamente tudo, passou a circular sob a lógica da
rede: na mesma superfície, estabelecendo conexões
frágeis e temporárias.
Tal diagnóstico se anuncia já há um tempo, sendo os sintomas
cinematográficos perceptíveis em manifestações diversas, dentro e fora do
Brasil. No entanto, é aqui, no nosso entorno imediato, que as possibilidades de
análise e compreensão se apresentam de forma decisiva. E neste aspecto, podemos
dizer que as mostras organizadas em Minas Gerais pela Universo Produção, em seu
afã de sintetizar proposições de contorno preciso, talvez sejam o melhor lugar
para avaliar pesos e medidas e acompanhar a evolução da situação.
Curiosamente, é também em Minas que uma das “correntes”
estéticas de maior repercussão na produção brasileira dos últimos anos possui
seu berçário: o misto de video-arte com cinema que tem se expandido de forma
tão decisiva no imaginário cinematográfico nacional recente teve como vigorosos
porta-bandeiras iniciais Cao Guimarães e a Teia. Talvez seja mesmo possível
falar hoje num remodelamento da idéia de estrutura de filme junto às novas
gerações (formadas essencialmente por jovens curtas-metragistas e
longas-metragistas iniciantes) que passa pela recusa da “estrutura”
convencional em favor de uma concepção de quase-instalação.
Nesta imagem “contemplativa”, que quando usada a serviço de
uma narrativa se auto-denomina como “de afecção”, “de superfície”, ou “de
imersão”, o que se busca é sobretudo a perda de referências externas – o
“perder-se” no presente, justamente. E o que, além de belas palavras e
discursos emotivos, esta tendência traz para o cinema? Ora, um risco pouco
anunciado mas profundamente preocupante: a perda de consciência histórica, a
anulação dos conflitos entre o sujeito e o mundo, o autismo que leva ao
esquecimento da política. E, numa segunda instância, a desarticulação de
imagens e sons (fruto da desobrigação de fechar sentidos), a recusa de emitir
discursos, a perda da conexão trágica entre imagem e mundo, o esvaziamento do
peso das coisas que confere conseqüencialidade às ações humanas. O resultado?
Filmes em que tempo e espaço não são mais variáveis trabalhadas de acordo com
uma concepção artístico-existencial qualquer, mas conceitos fluidos que buscam
sua diluição no interior de uma consciência auto-centrada.
***
Nesta edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, o cineasta homenageado
talvez se preste melhor do que qualquer outro à análise da situação acima
exposta. Karim Aïnouz emergiu no cenário cinematográfico brasileiro com um dos
filmes mais belamente políticos, pessoais, arrojados e sensíveis feitos no
mundo na última década. Madame Satã soube conjugar não apenas um
trabalho impressionante com os atores com uma mise en scène perfeitamente
adequada à narrativa, como apresentar de forma inextricável um drama de ecos
universais sobre inadequação e luta e um libelo sobre a afirmação de si e de desejos
profundos. O tempo e o espaço lá estavam, definidos, e sobre eles se impunha o
personagem, dobrando o mundo à sua potência. Com O Céu de Suely,
veio a vontade de uma certa doçura e suavidade. Hermila é
mulher, tem um filho e introjeta boa parte de sua
insatisfação com o entorno, que é eventualmente
“devolvida” sob a forma de lágrimas. A morosidade do
espaço que ela habita torna-se o tempo do filme, terminando por
anestesiar a montagem e, com ela, os conflitos de Hermila com o mundo.
O lado político de seu posicionamento frente à
situação desfavorecida, por sua vez, é duramente
amortecido por uma ênfase demasiada no espaço
geográfico-social em que se passa a ação e na
figuração sistemática de traços culturais
locais, que “desfilam” seu charme. Entre uma interioridade
pouco perscrutável e a preferência expressa pela
ambientação em detrimento do drama da personagem, Karim
Aïnouz cedia ali a uma romantização do conflito, que
chegava, em última instância, a se manifestar como um
olhar complacente sobre o mundo.
Chegamos, então, a Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo.
Aqui, o cine-diário do fluxo de pensamento faz com que, desde o início, o drama
esteja situado numa interioridade, desprovido de ações físicas e,
consequentemente, isento de embate direto com o mundo. O ambiente, no entanto,
está lá o tempo todo: ele invade a tela, em imagens que se esforçam para dar
conta de um espaço concreto, mas que, por já nos chegarem mediadas, vêm sem
peso, amontoando-se num aglomerado sem começo nem fim – o processo de mediação
é, por sinal, semelhante ao de No Sex Last Night, de Sophie Calle, o que
aponta diretamente para o mal compartilhado do contemporâneo: uma subjetividade
“sensível” que esmaga o mundo. O tempo não é linear, tampouco cíclico: ele
reflete um eterno presente, em que cada imagem almeja existir por si e a
narração do personagem não quer outra coisa senão narrar a si própria . O
elemento político dilui-se, pois: a tal represa que extinguiria vilas e
desalojaria famílias de sua pacata existência não é a barragem das Três
Gargantas de Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida. Sobretudo porque o
personagem é um passante que emociona-se pontualmente com elementos que
encontra em sua viagem, mas está tão absorto revolvendo seus sentimentos dentro
do peito ou da cabeça que é incapaz de estabelecer pontes consistentes com o
exterior. Tudo é efêmero: as emoções, as articulações entre som, imagem e
narração, os sentidos possíveis de serem extraídos das diversas camadas que
compõem o filme. Em suma: Viajo Porque Preciso... existe quase sem
existir. Como o fluxo de consciência que o guia, seu percurso é errático sem
ser construtivo, é afiado sem ter densidade alguma, é propositivo sem nada
apresentar de concreto.
Aonde nos levará, por fim, esta vontade ferrenha de leveza e
esta sentimentalidade eminentemente inconseqüente? A flutuação só adquire
sentido quando confrontada à gravidade. Sem embates, e, portanto, sem sentidos
claros, qualquer proposição perde-se no vácuo, circula indefinidamente por
não-territórios, mergulha na abstração do “eu”. Embora dialogue com os
curtas-metragens realizados anteriormente por Aïnouz (Seams e Paixão
Nacional) no quesito cine-diário, Viajo Porque Preciso radicaliza
tendências apontadas em O Céu de Suely que inexistiam anteriormente: a
anulação de um sentido de perigo na relação do indivíduo com o mundo, a vazão a
sentimentos que não se manifestam na materialidade e apenas revolvem em torno
de si e um “realismo sensível” que flerta com a fetichização do “popular” sob a
chave do “autêntico”. Do lado de Marcelo Gomes, podemos igualmente dizer que o
que tensionava a narrativa de Cinema, Aspirinas e Urubus, fazendo dele
um filme conectado ao mundo, à história e a conflitos mais ou menos
determinados, desaparece aqui, permanecendo apenas a estrada, a deambulação, o
vago sentido de encontro.
Para onde terá ido, portanto, o cinema a se defender com
unhas e dentes hoje no Brasil? Tudo o mais “a ser defendido” sabemos que encontra-se
aqui, em Tiradentes, onde todos não se cansam de celebrar o presente.
Tatiana Monassa
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