A
TV Globo exibiu na semana passada Marcas
da Vingança (Forever
Mine,
1999), de Paul Schrader. O plano de abertura do filme, uma tomada
geral da fachada de um suntuoso hotel em Miami, remete imediatamente
ao primeiro plano de Trágica
Obsessão (Obsession,
1975), obra-prima de Brian De Palma da qual Schrader havia sido
roteirista. A diferença é que lá era
uma igreja
renascentista, e não um hotel luxuoso. Schrader certamente
estava com Trágica
Obsessão na
cabeça quando filmou Marcas
da Vingança,
esse suspense vagabundo com cara de telefilme, mas com tiradas de
mise
en scène ambiciosas
que remetem a De Palma. Há similaridades óbvias
na
trama, além da tentativa de obter uma mesma
exacerbação romântica. A primeira cena em que a
loira aparece, real e
insólita, carne e luz, despertando o romance
e
a tragédia num só plano, bem poderia estar em
algum
filme do De Palma.
Foi
inevitável, no dia seguinte, rever Trágica
Obsessão,
filme a partir do qual De Palma começa a retrabalhar mais
direta e incisivamente o suspense hitchcockiano, algo que atingirá seu ápice em Dublê
de Corpo (1984) e
Síndrome
de Caim (1992). Em Trágica
Obsessão,
o enredo é praticamente todo decalcado de Vertigo (o
prólogo, inclusive, se passa em 1959, ano de
lançamento
do filme de Hitchcock). O protagonista, Michael (Cliff Robertson),
é
um grande empreendedor de Nova Orleans que perde a esposa Elizabeth e
a filha Amy num seqüestro que termina em tragédia.
Michael se sente culpado pelas mortes, que foram precipitadas pelo
plano fracassado do qual ele aceitara participar para capturar os
bandidos sem entregar o dinheiro do resgate. Dezesseis anos depois,
em 1975, ele vai a Florença acompanhado de seu
sócio
Bob (John Lithgow). Lá, na famosa igreja de Santa Maria
Novella, exatamente no mesmo lugar onde conhecera Elizabeth muitos
anos antes, Michael avista Sandra, uma jovem mulher que é
idêntica a sua falecida esposa. Ele a conhece, se apaixona e
a
leva para os EUA. Sandra também será
seqüestrada,
e Michael – mais uma vez confrontado à
situação
inicial do filme – tentará refazer o desenho do
destino,
livrar-se da culpa, corrigir as imperfeições e os
erros
que, no passado, resultaram na morte de sua esposa e, supostamente,
de sua filha.
Quem
viu o filme sabe que Sandra se revela, na parte final, a filha de
Michael, que não havia morrido e fora mandada para
Florença
por Bob, que é o grande vilão. Ela crescera
achando que
o pai era o responsável pela morte da mãe, e por
isso
topara o plano de Bob (movido por interesses financeiros) de se
passar por uma desconhecida jovem italiana para seduzir Michael e se
vingar dele. Essa bizarra reviravolta que revela Sandra como a filha
de Michael já adulta demonstra o
fracasso
dele em sua tentativa de reverter o destino. O erro de Michael
é
o mesmo cometido por Scottie (James Stewart) em Vertigo:
no intuito de salvar o Plano divino que uma ameaça tenebrosa
parece querer destruir, o herói se torna o executor
inconsciente desse contra-plano diabólico que julgava
combater. A ida de Michael a Florença –
“o berço
da arte ocidental”, Bob lhe diz – faz parte de uma
armadilha que ele ainda desconhece.
Na
primeira cena em que Sandra (interpretada por Geneviève
Bujold, a mesma atriz que faz Elizabeth) aparece para Michael, ela
está no alto de um andaime montado no interior da igreja,
onde
trabalha na restauração do afresco de uma Madonna
pintada em 1328 por Bernardo Daddi. O lugar elevado onde ela se
encontra funciona de certo modo como um palco, e desde já
suas
ações se tomam por representações.
Ela representa uma personagem concebida sob encomenda para Michael,
mas ele de nada desconfia, pois é guiado por uma ordem
oculta,
uma imagem ausente, ao contrário do pensamento aparentemente
lógico que guia Bob (em várias passagens do
filme, Bob
reclama que Michael não liga para dinheiro, sobretudo porque
abriu mão de contratos milionários somente para
preservar intacto o gigantesco terreno onde construiu o parque
memorial que abriga um monumento à esposa morta).
Michael e seu sócio encarnam duas linhas de pensamento
–
e duas condutas de vida – opostas: o pragmatismo e o
materialismo extremos, no caso de Bob, e o idealismo e o platonismo
no caso de Michael, que vive encarcerado em sua própria
lembrança por um sentimento de culpa retroativo, um trauma
do
passado que o aliena do mundo presente. A morte da pessoa amada
funciona para ele à semelhança de um membro
amputado,
ainda suscitando intenções, desejos, mas
intenções
e desejos que se revelam, em seguida, investimentos objetais
não
realizáveis.
A arquitetura resume tudo: os
únicos espaços
que combinam com Michael são as
locações em
Florença (cidade que respira outros séculos) e
sua casa
de estilo démodé em Nova Orleans, ao passo que Bob já parece
perfeitamente adaptado ao prédio moderno da firma. A
cabeça
de Michael está em 1959 (ou talvez até antes, em
outra
vida), e não em 1975. Nova Orleans em si, com as
características conservadoras de uma cidade do sul dos EUA,
é
um velho mundo dentro do Novo Mundo. Num discurso na cena de abertura
do filme, Michael afirma que espera, no projeto grandioso que
está
em vias de concretizar, conseguir dirigir sua energia e sua
ambição
inovadoras para a preservação dos valores do
“Old
South”. Em outras palavras, ele é um restaurador:
restaura épocas, da mesma forma que Sandra restaura pinturas.
No
primeiro diálogo entre Sandra e Michael, ela explica que uma
infiltração danificou partes da pintura que
está
a restaurar e revelou, por trás desta, uma outra imagem da
Madonna, anterior, mais antiga, talvez uma pintura totalmente
diferente, talvez um esboço do pintor para essa mesma obra,
não se sabe ao certo. Entre desvendar o mistério
da
pintura anterior e preservar a beleza da pintura mais recente, os
restauradores ficaram com a segunda opção.
“O que
é belo deve ser preservado”, concorda Michael. A
cena
resume não só o enredo (Sandra, à
semelhança
da Virgem pintada na igreja, é também uma imagem
que
veio depois, e sob a qual jaz uma imagem precedente, sendo que
Michael não quer investigar o enigma dessa
semelhança,
quer apenas desfrutá-la), mas principalmente a
lógica
de criação do filme: a
representação como
um efeito de dupla visão, de sobre-impressão de
duas
imagens, de modo que se possa ver na projeção
presente,
como nas porções deterioradas do afresco, a
imagem que veio antes,
a imagem que obceca.
Michael
quer ver em Sandra a imagem projetada de seu desejo, sua aventura
consistindo em tentar obter uma imagem ideal a partir dessa
substância impura que é o corpo. Ele deve
remodelar, no
material de que dispõe, as partes que não
correspondem
ainda à Idéia, corrigir os erros das
aparências
naturais. Numa conversa, Sandra pergunta como era Elizabeth.
“Muito
parecida com você”, diz Michael, “mas ela
andava de
um jeito bem diferente”. “Diferente
como?”, Sandra
pergunta. Ele sugere que ela suba as escadas logo à frente,
e
começa a corrigi-la, pedindo que deslize de maneira mais
suave, mais “clássica”. Michael
estará,
desde então, empenhado em fabricar uma mulher a partir de
outra, assim como De Palma fabrica um filme a partir de outro. Ambos
ousam rivalizar com a obra original (do destino, da natureza, da
criação divina, da criação
artística),
ousam crer na possibilidade de buscar o aperfeiçoamento
dessa
obra. Não custa lembrar que a teoria da arte no
período
do Maneirismo histórico (com o qual De Palma dialoga
explicitamente no filme) distingue o ato de
“retratar”,
que reproduz a realidade tal como se vê, e o ato de
“imitar”,
que a reproduz tal como se deveria vê-la. De Palma, em sua
assumida posição de imitador, reivindica uma
grande
liberdade não só em relação
ao objeto
imitado, como também em relação aos
códigos
da representação naturalista (é
emblemática
a cena em que, para mostrar um flash-back da
infância de Sandra/Amy, De Palma utiliza a própria
Geneviève Bujold no papel da criança, causando um
enorme estranhamento).
O
reino da imagem em que Obsessão se
instala é puro prazer e gozo estético. Mas
há de
se destacar duas coisas. A primeira é que De Palma ama a
vulgaridade do corpo, a disposição viciosa da
carne, o
que por si só impossibilita o projeto de seu personagem de
encontrar a imagem idealizada que procura. A segunda é que
todo prazer, uma vez ultrapassado seu limite, descamba em sua
negação, o desprazer: não fica claro
se Michael
e sua filha chegaram a ter uma relação sexual,
mas a
simples dúvida que se instaura, aliada ao fato de que,
independentemente do sexo, eles conviveram como amantes, é
suficiente para plantar o terror e o mal-estar no abraço
final
de reconciliação, quando ela o chama de
“papai”
em meio a um delirante e infindável travelling circular
que vislumbra o êxtase romântico à mesma
medida
que afirma o despertar doloroso da consciência – a cicatriz interior do drama interfere no mundo onírico do déjà-vu hitchcockiano
e o perturba profundamente, irreversivelmente.
De Palma opera uma
anamorfose grotesca da trama de Vertigo.
Existe aquela fórmula de Marx lembrada por
Stéphane
Delorme num texto sobre Redacted:
a história se repete, a primeira vez como
tragédia, a
segunda como farsa. A tragédia luciferiana de Scottie,
portanto, só podia se repetir como farsa (uma farsa
edipiana,
por assim dizer), e De Palma leva isso às últimas
conseqüências em sua extraordinária
releitura de
Vertigo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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