NO BURACO
Jogando com o espaço cinematográfico no palco teatral.

No Buraco
Centro Teatral e Etc e Tal / Direção: Alvaro Assad
Em cartaz no Teatro Leblon, no Rio de Janeiro, de 8 de janeiro a 13 de fevereiro de 2010.


Entre um fundo neutro – que recebe iluminação de cores variadas ao longo dos esquetes e projeções de slides entre eles – e um “muro” negro, um espaço de dimensões e natureza desconhecidas se abre para abrigar os três atores. O “buraco” comporta duas metades complementares: uma parte material, ou seja, toda a ação dos corpos visível acima da linha do “muro”, e uma parte abstrata, que corresponde à expansão desta ação visível na imaginação do espectador. Sobre o palco, portanto dentro do campo de visão da platéia, o sentido da peça se constrói fundamentalmente a partir daquilo que não pode ser visto. Terá alguma outra experiência teatral se aproximado tanto do conceito do “espaço fora-da-tela” cinematográfico, dele tirando efeitos tão potentes?

A pantomima (campo de trabalho primordial do grupo) joga, intrinsecamente, com o invisível e o imaginado, fazendo “aparecer” no espaço objetos, construções, animais, em suma, construindo uma paisagem imaterial por gestos concretos. A abertura de um campo abstrato para alojar a narrativa, portanto, não seria novidade alguma. O que No Buraco traz de absolutamente revelador e desconcertante é o complexo jogo entre a parte de ação física dos atores que se dá a ver e seu desdobramento “natural” intuído. Em outras palavras: entre um corpo real, que no espaço dado do palco executa movimentos visíveis apenas em parte e um corpo “projetado” no imaginário, cujas ações habitam um espaço expansível para os lados, para cima e, sobretudo, para baixo do solo do tablado.

Como o primeiro esquete – no qual um grande buraco é “aberto” no chão, fazendo os personagens “afundarem” – explicita de início, o interesse principal da peça é “cavar” um espaço amplo, que magnifique os movimentos realizados, permitindo que as ações dos corpos “projetados” ganhem suas merecidas dimensões feéricas. Misto de dinâmicas cartunescas e anedotas, os conflitos que se apresentam em cada esquete imprescindem da volatilidade e maleabilidade proporcionadas pela operação mental de quem assiste para se realizarem plenamente. Calcando-se na lei física da ação e reação – base de praticamente todos os desenhos animados de perseguição e das performances de palhaços e clowns – os personagens chocam-se repetidamente entre si ou com suas expectativas.

O triângulo formado por dois homens e uma mulher contribui também para a instauração de um desequilíbrio que provoca o conflito, como no caso do primeiro esquete, “Buraco”, e do quarto, “Pilotos”, nos quais os dois personagens masculinos disputam a “posse” da mulher. Esta dinâmica de “marcação de território” com conotações sexuais ganha seu ápice no último esquete, “nó”, no qual os dois personagens masculinos se engajam numa competição exibicionista de virilidade, por assim dizer, até a chegada da personagem feminina, que os suplanta na disputa, se impondo como vértice e deslocando o sentido de “potência” ligado à sexualidade.

Voltando à questão da utilização de conceitos e efeitos cinematográficos, não são apenas o “fora-da-tela” e os movimentos de imensa amplitude espacial, característicos do espaço abstrato instaurado pela montagem e pela mudança de escala dos planos (o que vale para o cinema, de animação ou não, e para as histórias em quadrinhos), que No Buraco apresenta. A magnífica “cena” do esquete “Circo” em que um clown branco e um augusto se desafiam lança mão de uma acachapante “câmera lenta” para retratar o momento de briga dos dois. A música que acompanha, de tons trágicos, coroa a idéia de “filme” à perfeição. Além desta referência explícita a um efeito “de cinema”, o uso da horizontalidade do palco na instauração dos conflitos em cada esquete cria com freqüência uma cisão perceptiva que implica na apreciação “em separado” das ações de cada personagem nas extremidades do espaço cênico, originando uma espécie de plano-contraplano fisicamente contínuo.

Parque de diversões, circo, clowns, pantomima e expressões faciais caricatas. Superposição entre um espaço físico e um imaginado criando correspondência entre o visível e o invisível e dinâmicas “narrativas” baseadas no confronto entre dois pólos. Seria No Buraco uma ambiciosa síntese entre o universo circense-teatral e a lógica perceptiva consolidada pelo cinematógrafo? De uma forma ou de outra, sem nunca se furtar dos princípios mais caros ao teatro, como a consciência da existência única do gesto num momento preciso e submetido às circunstâncias, esta criação do Centro Teatral e Etc e Tal – assim como a sua Branca de Neve?, embora com estratégias um tanto diversas – propõe um diálogo fértil com os recursos cinematográficos e, especialmente, solicita as ferramentas perceptivas que mais de um século de cinema conferiu ao espectador contemporâneo.


Tatiana Monassa