“Um dia
eu te mostrarei minha verdadeira face escondida”
trecho
da canção "Ton Diable", de Jeanne Balibar
Talvez
seja esse verso entoado pela cantora francesa Jeanne Balibar em Ne Change
Rien, novo longa-metragem de Pedro Costa (ainda sem previsão de estréia no
Brasil), uma excelente frase-síntese para o cinema dele. O que faz este
realizador português senão desvelar a todo momento a camada mais superficial e
a aparência ordinária do mundo e suscitar, do encontro entre seu dispositivo e
uma matéria já existente, algo de maravilhoso? É o caso não apenas de uma
sensibilidade extrema, por si só insuficiente para atingir tal resultado na
tela. A evidência é que, para além disso, Pedro Costa, como cineasta, conhece
bem os meios do cinema. Assim como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, a quem
ele tem na mais alta estima entre suas referencias cinematográficas, ele é mestre
na manipulação do material de que dispõe – entende-se aqui essa palavra da
forma mais ampla possível.
Em
primeiro lugar, há o encontro entre o intérprete e o texto, ou a música, no
caso de Ne Change Rien. Em uma palestra dada recentemente, Pedro Costa
afirmou se considerar um cineasta da matéria, assim como Straub. Ambos
habituaram-se a experiências de realização em que o personagem/ator e seu
discurso não eram/são fabulações próprias ao filme, mas peças (unidas ou
separadas) que existiam a priori, independentes mesmo da presença do
cineasta. Não importa se se trata de um texto ancestral de Sófocles ou de um
sentimento expressado pelo cabo-verdeano Ventura, o fato é que essas palavras
já existiam antes, assim como os trabalhadores da Sicília e os habitantes do
bairro de Fontainhas. Em casos como esses, é dever do cineasta trabalhar para
deixar a condição de intruso diante do universo pré-existente no qual entrou e
passar a conhecer profundamente os seus funcionamentos. É assim que os ensaios
e/ou repetições se tornam parte fundamental do processo – é preciso achar o
texto certo para a pessoa certa, realizar quantos takes forem para atingir
a medida exata desse binômio, que no entanto jamais poderá ser conquistada sem
que haja uma manipulação profunda dos procedimentos próprios do cinema em
paralelo. Para que surja algo de extraordinário a partir do encontro entre a
“luz” do cineasta e a “palavra” do intérprete (para usar uma expressão do
próprio Pedro Costa), é preciso que ele seja não menos que perfeito. Prepará-lo
de maneira exaustiva, é, paradoxalmente, ceder espaço ao imprevisível, à
contribuição da natureza, justamente aquilo que nela estava oculto – é aí que o
vento que sacode um coqueiro com certa violência invade a imagem e a banda
sonora em um filme dos Straub e uma palavra a mais que Vanda deixa escapar ou um
“sorriso fugidio” serão felizmente acolhidos pela montagem de um filme de Pedro
Costa.
Em Ne
Change Rien, acompanhamos o trabalho de Jeanne Balibar e de seu produtor
musical durante ensaios, gravações e apresentações diversas. Como um reflexo perfeito
do trabalho de Pedro Costa em filmagem, abundam as repetições e os treinos.
Achar o ritmo certo, a precisão do tom e até mesmo da pronúncia (como na seqüência
particularmente engraçada em que Jeanne tem uma aula de canto lírico com uma
veterana mantida sempre fora de quadro), tal qual encontrar o enquadramento e a
luz ideal, é um trabalho árduo, e Pedro Costa está disposto a expor essa
dificuldade. Cada canção nos é apresentada gradualmente, no momento mesmo em
que está a ser construída. A cada vez um discreto movimento no trabalho de
repetição para erguê-la, até que em algum momento, sem que nos apercebemos
disso, a música surge em toda a sua complexidade e beleza. Como uma confluência
natural de forças. Ainda que em algumas passagens diversas camadas de som nos
sejam ocultadas, como durante a gravação de “Ton Diable” (citada no início
deste texto) da qual só ouvimos os vocais e o baixo ruído de guitarra que vem
dos fones, todo o trabalho de mise-en-scène nos leva a completá-la
mentalmente, de forma que a sensação da completude musical é total, assim como a
entrega dos intérpretes à canção.
Embora
para a maior parte do público de Pedro Costa o cotidiano de uma cantora
francesa ao trabalho a princípio pareça mais familiar que aquele dos habitantes
de Fontainhas em meio à possibilidade eminente de prisão, morte e destruição, Ne
Change Rien é também um filme povoado de estranhezas, cujos personagens
parecem ainda mais desconectados do restante do mundo que os cabo-verdeanos de Juventude
em Marcha. Pedro Costa decide aqui filmá-los em um preto-e-branco
extremamente estilizado, em que cada quadro consiste num verdadeiro universo à
parte, seja em close-ups altamente sub-expostos ou em planos gerais onde
abunda o branco. O fato é que quando estamos a observar as imagens desses
músicos ao trabalho, esquecemos de todo o resto. Somos levados a testemunhar atentamente
a transformação que ocorre em seus corpos no momento em que se entregam à
música, até o ponto máximo da abstração formal – o rosto desfigurado a tentar
atingir as mais difíceis notas de uma ópera – ou da plenitude sensória – a
combinação da música com a imagem sub-exposta, espectral, de sua intérprete,
que a um dado momento torna-se não mais corpo, mas unicamente expressão. O que
realiza Pedro Costa, enfim, é um cinema onde, tal qual na obra de Straub-Huillet,
não há espaço possível para a identificação. No lugar disso, um fascínio
absoluto pela alteridade.
Em
tempos como os atuais, em que o cinema é invadido por filmes nos quais
a exaltação da forma raramente carrega um real sentido, objetivo ou savoir-faire,
assistir a um filme de Pedro Costa é uma experiência quiçá miraculosa. Após
este Ne Change Rien, me parece, mais uma vez, tarefa no mínimo
obrigatória chamar toda a atenção possível ao seu cinema. Compará-lo a um
grande como Straub é apenas o justo, o natural. São ambos cineastas do rigor, a
quem a posição da câmera, a iluminação, a mise-en-place dos corpos e
objetos, a entonação do texto e a duração do plano são tudo menos arbitrárias.
Ambos são artesãos da matéria – seja aquela à frente ou detrás da câmera. Cineastas cuja
intervenção sobre as potências do dispositivo chega ao nível mesmo do suporte:
a experiência de Straub com a incrustação do corpo de Bach regendo sobre um
cenário filmado alhures em Crônicas de Anna Madalenna Bach é comparável
aos planos minimamente sensibilizados pela rarefeita superfície iluminada do
rosto de Jeanne Balibar cantando a música-título Ne Change Rien. Em
ambos os casos, o resultado é uma imagem fantasmagórica, existência da qual foi
suprimida toda a materialidade, a concretude, restando apenas espírito. É esse
espírito, esse lado fantástico e praticamente invisível das coisas, que nos encanta.
Algo que poucos sabem fazer brotar, uma vez que é preciso cultivá-lo com a
perfeição do quadro, do discurso e da performance. O resultado de todo esse
rigor é a experiência do cinema em toda a sua intensidade.
Alice Furtado
|