Ninguém como Kiarostami instaurou nas últimas décadas um
território estético tão inaudito e surpreendente ao partir de indagações
milenares provenientes de outras artes. Para ele, o cinema é apenas uma
ferramenta para confrontar o mundo e a perplexidade do homem perante o Todo; um
mecanismo capaz de, se bem manuseado, revelar verdades momentâneas, frágeis e
profundas situadas no campo do real. Não o real como concepção filosófica referente
à experiência do mundo (para torná-la apreensível pela inteligência), mas como
materialidade a confrontar-nos continuamente.
Seu trabalho de reeducação do olhar visa a colocar em
evidência o posicionamento do homem diante do mundo, a sublinhar a retidão
moral necessária para que possamos habitar a natureza de forma minimamente
honrada. Primeiro, portanto, as crianças, a enfrentar dilemas ásperos que
mobilizam toda a sua existência. Num segundo momento, os adultos e sua teia
complexa de desejos e frustrações, que se interpõe de forma irremediável entre
eles e a evidência do mundo. Em seguida, a natureza, inapreensível se não pela
mediação da sensibilidade humana, por sua pendência inexorável para a
narrativa.
E, para a tradição da cultura persa, marcada pelo interdito
da imagem representativa, representar seria, então, sobretudo narrar. O que
dizer, pois, de Shirin, em que uma narrativa épico-histórica de
envergadura mitológica é objeto de uma adaptação cinematográfica desprovida de
imagem e contraposta tão somente aos olhares que
a ela respondem? Olhares que personificam reações da alma e reverberam muito
mais do que seria possível pôr em palavras. Não se trata aqui apenas da
dinâmica entre plano sonoro e contraplano visual, mas de uma construção de
complexidade quase intangível para o que costumeiramente compreendemos como
cinema narrativo.
Mais do que fixar um dispositivo, como havia feito em Dez,
Kiarostami estabelece uma espécie de instalação-cinema, na qual a própria
situação espectador torna-se o foco de interesse. Mas falar de auto-
reflexividade ou mesmo meta-linguagem seria ingenuidade. A um limite,
poderíamos mesmo dizer que as bandas sonora e visual de Shirin correm em
separado. Uma adaptação melodramática de uma tragédia “fundadora”, na qual não
apenas a História da Pérsia se faz presente, como também a eterna utopia do
amor sublime mas impossível; os rostos femininos que, no ambiente “perigoso” e
subversivo do cinema, exprimem tudo aquilo que o espaço “aberto” das ruas não
lhes permite. A sala de cinema é em Shirin o que o carro é em Dez.
Em suas faces, vemos não apenas a emoção que é a resposta à
identificação com o que é narrado, à nossa velha e conhecida projeção interior na
representação antropomórfica, mas a reflexão propriamente dita das imagens a
que elas estariam assistindo. Oscilações luminosas banham seus rostos e
projetam com força em nosso imaginário a virtualidade daquilo que Kiarostami
não ousaria registrar. Para ele, graficamente, existem apenas o texto que vemos
no começo e as gravuras que o acompanham em seu traço estilizado, contando a
história em tableaux. Separadamente, a palavra e a imagem ganham em
potência e se apresentam como absolutas, irredutíveis.
Na fenda entre as duas, onde terminamos por nos alojar, há
um vão primordial, uma descontinuidade fundamental, que aponta para o processo
de construção daquilo que vemos e nos coloca em alerta, dificultando uma fruição
não-engajada no construir-se do relato. Porque afinal é isso que pressupõe a
cultura oral: um interlocutor ativo. O curto-circuito do olhar encontra então
seu ápice numa mise en abyme particular: as espectadoras de Shirin,
interpeladas pela protagonista, se projetam na história que vêem, enquanto transferimos
nosso olhar para o delas, e recaímos sobre o vazio de uma imagem abstrata. Sim,
porque a banda sonora do filme invisível não instiga a imaginação visual,
apenas provoca o vago reconhecimento de cenas e situações.
Ainda neste labirinto de projeções e transferências, temos a
força da própria história que ouvimos. As conjunções históricas tornam
impossível não remeter a justa batalha do rei Khosrow para reaver o trono do
império persa ou as palavras da rainha armênia à sua herdeira Shirin em relação
a como tratar seu sofrido povo, à recente afronta à democracia que vive o Irã.
As lágrimas que os belos rostos que vemos choram com altivez são lágrimas que
contemplam um destino trágico com a força de uma resistência imemorial às
injustiças. Ao fim, seu lamento emite ecos muito mais profundos do que aqueles
que pranteiam o fim de Romeu e de Julieta.
Tatiana Monassa
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