SHIRIN
Abbas Kiarostami, Shirin, Irã, 2008

Ninguém como Kiarostami instaurou nas últimas décadas um território estético tão inaudito e surpreendente ao partir de indagações milenares provenientes de outras artes. Para ele, o cinema é apenas uma ferramenta para confrontar o mundo e a perplexidade do homem perante o Todo; um mecanismo capaz de, se bem manuseado, revelar verdades momentâneas, frágeis e profundas situadas no campo do real. Não o real como concepção filosófica referente à experiência do mundo (para torná-la apreensível pela inteligência), mas como materialidade a confrontar-nos continuamente.

Seu trabalho de reeducação do olhar visa a colocar em evidência o posicionamento do homem diante do mundo, a sublinhar a retidão moral necessária para que possamos habitar a natureza de forma minimamente honrada. Primeiro, portanto, as crianças, a enfrentar dilemas ásperos que mobilizam toda a sua existência. Num segundo momento, os adultos e sua teia complexa de desejos e frustrações, que se interpõe de forma irremediável entre eles e a evidência do mundo. Em seguida, a natureza, inapreensível se não pela mediação da sensibilidade humana, por sua pendência inexorável para a narrativa.

E, para a tradição da cultura persa, marcada pelo interdito da imagem representativa, representar seria, então, sobretudo narrar. O que dizer, pois, de Shirin, em que uma narrativa épico-histórica de envergadura mitológica é objeto de uma adaptação cinematográfica desprovida de imagem e contraposta tão somente aos olhares que a ela respondem? Olhares que personificam reações da alma e reverberam muito mais do que seria possível pôr em palavras. Não se trata aqui apenas da dinâmica entre plano sonoro e contraplano visual, mas de uma construção de complexidade quase intangível para o que costumeiramente compreendemos como cinema narrativo.

Mais do que fixar um dispositivo, como havia feito em Dez, Kiarostami estabelece uma espécie de instalação-cinema, na qual a própria situação espectador torna-se o foco de interesse. Mas falar de auto- reflexividade ou mesmo meta-linguagem seria ingenuidade. A um limite, poderíamos mesmo dizer que as bandas sonora e visual de Shirin correm em separado. Uma adaptação melodramática de uma tragédia “fundadora”, na qual não apenas a História da Pérsia se faz presente, como também a eterna utopia do amor sublime mas impossível; os rostos femininos que, no ambiente “perigoso” e subversivo do cinema, exprimem tudo aquilo que o espaço “aberto” das ruas não lhes permite. A sala de cinema é em Shirin o que o carro é em Dez.

Em suas faces, vemos não apenas a emoção que é a resposta à identificação com o que é narrado, à nossa velha e conhecida projeção interior na representação antropomórfica, mas a reflexão propriamente dita das imagens a que elas estariam assistindo. Oscilações luminosas banham seus rostos e projetam com força em nosso imaginário a virtualidade daquilo que Kiarostami não ousaria registrar. Para ele, graficamente, existem apenas o texto que vemos no começo e as gravuras que o acompanham em seu traço estilizado, contando a história em tableaux. Separadamente, a palavra e a imagem ganham em potência e se apresentam como absolutas, irredutíveis.

Na fenda entre as duas, onde terminamos por nos alojar, há um vão primordial, uma descontinuidade fundamental, que aponta para o processo de construção daquilo que vemos e nos coloca em alerta, dificultando uma fruição não-engajada no construir-se do relato. Porque afinal é isso que pressupõe a cultura oral: um interlocutor ativo. O curto-circuito do olhar encontra então seu ápice numa mise en abyme particular: as espectadoras de Shirin, interpeladas pela protagonista, se projetam na história que vêem, enquanto transferimos nosso olhar para o delas, e recaímos sobre o vazio de uma imagem abstrata. Sim, porque a banda sonora do filme invisível não instiga a imaginação visual, apenas provoca o vago reconhecimento de cenas e situações.

Ainda neste labirinto de projeções e transferências, temos a força da própria história que ouvimos. As conjunções históricas tornam impossível não remeter a justa batalha do rei Khosrow para reaver o trono do império persa ou as palavras da rainha armênia à sua herdeira Shirin em relação a como tratar seu sofrido povo, à recente afronta à democracia que vive o Irã. As lágrimas que os belos rostos que vemos choram com altivez são lágrimas que contemplam um destino trágico com a força de uma resistência imemorial às injustiças. Ao fim, seu lamento emite ecos muito mais profundos do que aqueles que pranteiam o fim de Romeu e de Julieta.


Tatiana Monassa