Apaixonado
pela cultura
barroca, era natural que Eugène Green um dia fosse parar em
Portugal. O que espanta
em A
Religiosa Portuguesa,
todavia, é
que ele parece ter encontrado em Portugal não só
o
século XVII, mas também o futuro – do
cinema,
inclusive (basta pensar que lá é filmada hoje uma
boa
parte dos filmes que ainda se podem chamar de
“modernos”:
os de Oliveira, Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro
Rodrigues... e agora Eugène Green). Na ponta da Europa e na
proa das grandes navegações, portanto
geográfica
e historicamente situado na extremidade entre o velho e o novo mundo,
Portugal é um ponto estratégico para se ter uma
visão
ampla do Ocidente (nada que Manoel de Oliveira não nos venha
mostrando insistentemente). Green encontrou em Portugal um
país
que convive ativamente com seu passado histórico e
mitológico,
a ponto de confundi-los ao presente. O mito do Encoberto,
por
exemplo, encarnado na figura do rei D. Sebastião (cf.
Oliveira, O Quinto Império – Ontem como
Hoje),
ressurge em A Religiosa Portuguesa como
se fosse um elemento corriqueiro diluído na paisagem urbana
de
Lisboa: primeiro numa pixação que aparece logo no
início do filme, pedindo a volta do rei desaparecido; depois
como um rapaz que Julie (Leonor Baldaque) reconhece como D.
Sebastião
reencarnado.
Lisboa
é, por natureza, um perfeito cenário greeniano:
cidade
em que aparições mágicas ganham ar de
trivialidade, em que o Barroco parece ainda tão vivo quanto
há
cinco séculos, em que o tempo é um
acúmulo de
tempos. Lugar ideal para Green concretizar uma de suas metas principais desde
sempre: transcender a ficção no mito.
Curiosamente,
esse caminho o leva a uma relação de intimidade
com a
realidade física do espaço. É de fato
incrível
o modo como ele nos coloca dentro
de Lisboa. Nunca me havia sentido tão próximo de
uma
cidade pelo simples fato de estar assistindo a um filme que nela se
passa. O clima e a sensação tangível
das
locações só é
tão presente no
filme porque Green captou, antes de tudo, o espírito de cada
uma delas. À semelhança de Straub,
ele é
um cineasta que se instrui primeiramente com tudo o que vem antes do
cinema: a escultura, a pintura, a poesia, o teatro, a
música...
Assim ele aprende a não apreciar apenas o lado
“cinematográfico” das coisas,
abordando-as de um
ponto de vista enriquecido pela consciência de que o cinema
não
é o único meio disponível para
captá-las,
mas um dentre outros. Somente em posse dessa consciência um
cineasta pode e poderá ainda procurar as coisas
não
segundo o que a lente utilizada ou o quadro escolhido determinam, mas
segundo o que elas são. A evidência das coisas
emana
delas mesmas.
A
Religiosa
Portuguesa começa
com a
chegada de Julie a Lisboa. Ela é uma jovem atriz francesa
que
está na cidade para rodar um filme baseado num texto do século XVII, as Cartas Portuguesas
de Guilleragues, a história de uma freira que se apaixona
por
um oficial francês (Adrien Michaux, que já faz
parte da
“trupe” de Green). Isso é explicado por
ela ao
recepcionista do hotel onde está a fazer o check in, a
princípio em francês e inglês, mas
depois num
português fluente (aprendido com a mãe, que
é de
Portugal), num engraçado diálogo
multilíngue. O
diretor do filme dentro do filme é interpretado pelo
próprio
Eugène Green, com o nome bem humorado de Denis Verde. Em
todas
as cenas em que aparece, Green se mostra uma presença leve,
de
um humor saudável e inteligente.
O
filme vai mostrando uma série de encontros de Julie com
outras
pessoas, desde um menino órfão até um
suicida de
meia-idade. Perto do hotel, que fica na parte alta do centro de
Lisboa, há uma capela barroca onde Julie observa, por
diversas
ocasiões, uma jovem freira que lá se
põe a rezar
todas as noites. Um dos pontos máximos do filme é
a
cena em que ela e a freira têm um longo diálogo
encenado
naquele campo-contracampo frontal típico de Green. Mais que
um
espelhamento, a cena cria uma fusão entre as duas mulheres.
A
conversa é recheada de frases marcantes, das quais algumas
em
especial dizem respeito ao centro e à origem do
próprio
cinema de Eugène Green. Por exemplo: Julie diz que sua
tarefa,
enquanto artista, é “transmitir a verdade
através
de coisas irreais”, ao que a freira acrescenta:
“Como
Deus, que transmite a verdade através do mundo”.
Julie e
a freira buscam a mesma coisa: elevar a realidade sensória a
uma esfera superior (onde se encontra a Verdade, ou o Belo, ou
“simplesmente” Deus). O mundo sensível
é a
ilusão de que dispõem para transmitir uma verdade
que
se forma no espírito, e que de outro modo não
teria
como ser exteriorizada. Esse diálogo de Julie com a freira
constitui um momento raro em que a arte já traz
em si a
teoria da arte, a beleza o segredo da beleza.
A
dramaturgia de Eugène Green chama a
atenção por
uma série de elementos, dentre eles a qualidade peculiar das
falas dos atores – dicção pausada,
resgate de
expressões arcaicas, fonética barroca. A
interpretação de Leonor Baldaque em A
Religiosa
Portuguesa,
como a de Christelle
Prot em Le Monde Vivant
e Les Signes, consiste
em depurar a expressão de tal modo que, a cada cena, ela
seja
o acesso sensível a uma única
emoção. É
o contrário da representação
naturalista, tanto
a tradicional – que, em linhas grosseiras, define-se por uma
transparência espontânea do ator, que interpretaria
“instintivamente” – quanto a moderna
– onde o
ator é quase um personagem, a narrativa é quase
uma
ficção, e a atuação se
molda pela
preservação da confusão de sentidos e
de
sentimentos que caracteriza um determinado momento na vida de uma
pessoa. As emoções humanas possuem contornos
nublados,
as fronteiras que estabelecem entre si costumam ser
instáveis;
somente com muita dificuldade – e sob o sacrifício
de
alguma condição natural da existência
– se
consegue separar uma da outra. O ator “natural”
seria,
nessa lógica, aquele que imprime no personagem a
confusão/oscilação
intrínseca do ser
humano; o que se teria não é a forma acabada de uma
emoção, mas um agregado inextricável
de emoções
ou de iminências delas – quando não, nos
casos
extremos, um turbilhão. A dramaturgia de Green, entretanto,
vai no sentido oposto a essa concepção de
“natural”;
ele escolhe justamente o caminho que a muitos pareceria
impossível:
não exprimir senão uma
emoção por plano.
Essa é a premissa da atuação de
Baldaque em A
Religiosa Portuguesa:
seu
rosto não se abre à passagem de um feixe de
emoções
que se revezam e se misturam, e que constituem um conjunto agitado de
forças das quais não se sabe ao certo qual a
predominante. Em cada close frontal, ela precisa se livrar de todo o
excesso, de tudo que não pertence à forma
buscada.
Green reconhece aí o único caminho adequado para
atingir a emoção em si,
apresentada inteira e
clara.
Uma
das cenas que
mostram as filmagens do filme dentro do filme traz a mais reveladora
postura de Green como cineasta. A cena ocorre já quase no
final. O diretor diz ação. Estamos vendo a equipe
de
filmagem, e não Julie. A câmera faz uma lenta
panorâmica. Não há um corte para a
atriz se
movimentando, mas apreendemos o movimento dela pelo movimento da
câmera. Green nos revela, pelo avesso, que sua
câmera
apenas segue o objeto vivo que está à sua frente.
O
movimento da atriz que para nós está fora de
quadro
implica o movimento da câmera, e não o
contrário.
A mise en scène,
no
cinema, é a “linguagem” criada para
inverter o
caminho das outras artes e captar o movimento do mundo por meio de
sua evidência mesma, provar “o
movimento ao andar,
a existência ao respirar” (Rivette). “É
o cinema, e tão somente o cinema, que faz justiça
a
essa interpretação materialista do
universo”
(Panofsky). Ao fim dessa cena, Julie afirma: “Olhando para o
mar, compreendi o que eu estava dizendo”. A lógica
é
a mesma: a evidência sensível ensina ao
espírito o significado do mundo. Fecha-se um circuito que em
nada contradiz as idéias expostas no diálogo
entre Julie e a religiosa na capela. Uma coisa complementa a outra.
Iluminada
por tudo que viveu em Lisboa e pela conversa que teve com a freira,
Julie sente sua vida mudando. Ela decide adotar Vasco, o menino
órfão, e levá-lo consigo para Paris, onde ele
aprenderá
o francês e frequentará a escola. Por ora, tudo que Julie ensina ao menino
é
a primeira palavra na nova língua:
“maman”. Vasco,
portanto, renasce a partir do momento em que trava o primeiro contato
com uma nova língua (para Green, o homem nasceu junto com a
palavra), que lhe será mais uma língua materna.
Ele é o fruto da fusão amorosa de Julie com
Lisboa,
assim como A Religiosa Portuguesa é
o fruto da fusão amorosa de Eugène Green com
Portugal.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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