No clímax de Polícia, Adjetivo, Cristi, o protagonista da história, abre
um dicionário romeno para entender o significado da palavra “policial”. Este
momento, que dá título ao filme, também ajuda a entender seus significados
internos e externos. Podemos, por exemplo, compreender que o segundo longa de Corneliu
Porumboiu é, partindo das definições abordadas por Cristi...
1 – um romance, ou, naturalmente, um filme policial. Neste caso
específico, o adjetivo estaria ligado não ao que acontece internamente à trama
ou ao personagem, mas ao próprio gênero que o filme se propõe a dissecar. Em outras
palavras, poderíamos afirmar que Polícia, Adjetivo é o anti-filme
policial. Temos aí, como é de se esperar, uma investigação, que perpassa toda a
trama. Temos, também, um protagonista em crise, tentando solucionar o caso, e
temos, por fim, uma corrida – ainda que muito vagarosa – contra o tempo. Todos
os elementos, por sinal, são fundamentais ao funcionamento do filme. Mas em Polícia, Adjetivo nada, absolutamente nada, acontece, e nada, absolutamente nada,
poderá acontecer.
Cristi tem de prender um usuário de haxixe para satisfazer a força policial,
que precisa de um flagrante. O jovem será condenado por sete anos (ou três anos
e meio, no máximo, como seus chefes não se cansam de repetir), por uma lei já
ultrapassada na União Européia, e o policial não quer esse peso em sua
consciência. Acompanhamos, passo a passo, o dia de trabalho do investigador,
até que seja dada a ordem de flagrante e não haja mais escapatória. Cristi, nos
dias que se seguem, tentará achar algo que prove a inocência do rapaz (ou, pelo
menos, a culpa maior de alguém superior). O grande problema é que a lei, ainda
que errada e quase obsoleta, é maior e mais forte do que a consciência do rapaz.
O que nos leva a definição número...
2 – o policial não como substantivo (o agente), mas como adjetivo (a parte do
todo). Polícia, Adjetivo é um filme policial que se funda na idéia de
que o grande vilão, desde o princípio, é a lei e a ordem, escrita aqui propositalmente
como uma única expressão. Ela paira acima de Cristi, e é ela que Cristi tentará
derrotar. Mas o grande absurdo – e o que faz de sua busca, desde o
início, algo infrutífero – é que Cristi, como policial, representa exatamente
essa expressão. É daí que o filme parte, e é isso que o filme seguirá,
inelutavelmente, até o fim.
Ao contrário dos heróis de Kafka (e a relação aqui está longe de ser uma mera
coincidência), que normalmente se viam como vítimas da burocracia do mundo,
Cristi é um pequeno, mas fundamental, mantenedor dessa burocracia. O absurdo kafkaniano que surge desse embate – as leis, regras e burocracia versus a liberdade e a
expressão individual do homem – mostra-se, por causa disso, incapaz de
acontecer aqui. Assim, em Polícia, Adjetivo o absurdo só pode
existir de uma única forma: se for exatamente igual ao mais absoluto cotidiano.
Por isso,Polícia, Adjetivo, é um anti-filme policial, um anti-romance kafkaniano,
mas, assim como o primeiro longa do diretor (o interessante A Leste de
Bucareste), uma comédia corrosiva, nascida exatamente dessa impossibilidade
fundadora. Quando o mais absoluto cotidiano transforma-se, também, no mais
cruel absurdo (pensemos no som do computador da secretária ditando a toada da
espera de Cristi; nos comentários repetidos por diferentes pessoas; ou, mais
ainda, nas discussões conceituais sobre palavras, frases e metáforas), apenas
as risadas sobrevivem.
3 –Polícia, Adjetivo é um filme-dicionário, no qual a estrutura geral
serve, sempre, a conceitos específicos. Porumboiu, por isso, filma da única
forma possível dentro do arcabouço tramado por ele: com uma câmera praticamente
imóvel, seguindo Cristi quando ele anda, parando quando ele pára, distante de
qualquer sentimentalismo (e mesmo, por assim dizer, sentimento) ou aproximação
de personagens. Porumboiu filma, e estende os planos, como se a “lei e a ordem”
passassem, ininterruptamente, maiores do que tudo relacionado ao próprio homem.
Esse artifício – tão comum no cinema contemporâneo – de estender os planos e
fixar a câmera a fim de captar a matéria do mundo não poderia, no entanto,
encontrar eco mais contrário no longa de Porumboiu. A câmera, aqui, tudo filma,
mas nada vê. Poderíamos afirmar, até, que o papel da câmera é esperar, sempre
esperar o que não irá acontecer (a revelação, o salto para o desconhecido, o
desencontro entre o policial e a lei). Não há atenção a detalhes, não há força
dramática, a imagem quase não tem importância. Reclamar a inexistência de uma
matéria dramática, de uma força cinematográfica, de uma predominância dos
conceitos em relação ao que existe na cena é não perceber que, em Polícia, Adjetivo, os conceitos são exatamente o que existe na cena.
Talvez, por isso, as imagens mais marcantes e emblemáticas do filme sejam os
relatórios entregues por Cristi após cada dia de trabalho. Neles, se resume – e
se repete – tudo que acabamos de assistir.
4 –Polícia, Adjetivo é um filme-dicionário, no qual as palavras têm
papel fundamental. O número de discussões sobre modificações ortográficas,
erros gramaticais, origem vocabular, funções da metáfora é quase tão grande
quanto a rotina de trabalho de Cristi. Não há dúvida de que, fora Porumboiu ser
um grande encenador do discurso (como se mostrava ainda mais presente em seu
filme anterior), o realizador atenta para o próprio papel das palavras (ou
seria da linguagem?) neste conjunto de leis, ordens e definições que compõem a
burocracia. Novamente, entramos no território de Kafka, agora sem precisarmos
de antíteses: a palavra existe, acima de tudo, como uma prisão. Por isso, o
homem que, no filme, mais a domina (ou, de outro modo, a modula), tem o poder
de impor a lei e a ordem e se aproxima, de forma quase cômica, da figura de um
vilão caricatural. Ao mesmo tempo, um pequeno erro gramatical de Cristi em seu
relatório mostra a fraqueza de sua posição e, por que não, a impossibilidade de
sua busca.
Aqui, fica claro: o adjetivo da profissão marca, acima de tudo, a idéia de sua
sujeição à estrutura geral das palavras (ou seria da linguagem?). Talvez, por
isso, as imagens mais marcantes e emblemáticas do filme sejam os próprios
relatórios entregues por Cristi após cada dia de trabalho. Neles, se resume – e
se repete – tudo que acabamos de assistir.
5 –Polícia, Adjetivo tem uma maturidade rara para um segundo
longa-metragem. Mais do que isso, parece amplificar o método e as questões de
Porumboiu presentes em seu filme anterior (tratar de um evento específico
através de um humor bastante particular, com a intenção de criticar o atraso da
sociedade romena pós-Ceausescu) a um caminho talvez sem volta, fruto da relação
tão arraigada com os conceitos que construiu. Se o terceiro filme, portanto, é
uma enorme incógnita, celebremos a presença do segundo, que coloca Porumboiu
entre os novos – e relevantes – autores do cinema mundial. Possivelmente, o
único romeno de uma nova e celebrada geração que, hoje, merece essa distinção.
Leonardo Levis
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