Apenas algumas notas:
- Na época em
que a obra de Johann Sebastian
Bach floresceu, as artes se correspondiam entre si; participavam,
digamos assim, de um mesmo espírito do tempo. O filme de
Straub e Huillet demonstra isso através da
articulação
fundamental entre música e arquitetura. A música
de
Bach é composta de acordo com o espaço onde
será
ouvida. Compor para uma igreja barroca não é a
mesma
coisa que compor para o salão de um nobre. A voz de sua
esposa
Anna nos informa sempre para qual espaço – e em
que
contexto, sob que condições – a
música que
ouviremos na cena seguinte foi pensada e concebida. Redundante dizer
que Crônica
de Anna Magdalena Bach
é um filme materialista. Vemos a música no
espaço, uma coisa implicando a outra. E se a partir de um
determinado momento tomamos conhecimento do fato de que a
visão
de Bach se acha afetada, as conseqüências
serão
sentidas imediatamente. Ele está
perdendo progressivamente a visão.
É
justamente segundo esse percurso que Straub constrói a
fotografia do filme: a luz vai passando do
espaço
para uma sensação do espaço.
- Luz, em Crônica
de Anna Magdalena Bach,
é sinônimo de composição. Se
em A
Morte de Empédocles ou Moisés
e Arão
Straub encara a luz como matéria sólida a ser
esculpida, e se em Gente
da Sicília
é possível ver as montanhas como massas
impregnadas de
calor, proeminências de terra que absorveram sua parcela de
sol
e tiveram a generosidade de partilhá-la conosco, o que
notamos
em Crônica é que a luz já está indicada nas
partituras e
nos espaços onde a música de Bach é
executada.
Straub apenas se aplica em distribuir
essa luz. Ele trata o quadro como gravura: a luz se espalha
uniformemente pelo espaço e os corpos, linhas e figuras
laboriosamente dispostos no plano retêm ou dispensam luz,
exatamente como os sulcos burilados na lâmina de cobre e as
partes desta que permaneceram lisas reteriam ou dispensariam tinta na
gravura calcográfica. Aquela diagonal desconcertante do
plano
do refeitório, por acaso ou não, lembra o famoso
São
Jerônimo de Albrecht Dürer, em termos de
composição
e tensão das linhas.
- Impossível não falar do primeiro plano do filme.
Parece
que o travelling foi inventado para que pudesse existir aquele plano. Após
alguns minutos fechado somente em Bach tocando o cravo, o plano se
abre por um travelling
para trás e reconhece que há um espaço
à
volta dele, e que há outros músicos nesse
espaço.
O movimento de câmera começa no exato instante em
que a
música solicita a participação dos
outros
instrumentistas. É um movimento obediente, pois segue a
demanda da música e, portanto, do espaço.
É
também a relação de Bach com o
entorno, do
indivíduo com a comunidade, do gênio com o mundo
–
tudo dado de um só golpe. “Se o acordo de um gesto
e de
um espaço é a solução e a
conquista de
todo problema e de todo desejo, a mise
en scène será
uma tensão rumo a esse acordo, ou sua imediata
expressão”
(Michel Mourlet). O que temos aqui é da ordem da
“imediata
expressão”.
Antes
do travelling,
os dedos de Bach agindo sobre o teclado são o grande ponto
de
atração do nosso olhar. A música
está
vindo dali, daquela incessante
micro-movimentação. Se
não houvesse uma rigorosa educação
mecânica
dos dedos, a música não sairia daquele jeito.
Somente
esse esforço mecânico – que se
opõe à
idéia romântica de uma arte cuja
perfeição
viria espontaneamente ao encontro do gênio – pode
fazer a
música de Bach ser transmitida do seu espírito
para o
nosso. Da mesma forma que na arquitetura barroca as diversas partes
da construção não estão
mais separadas
nitidamente entre si, mas se confundem criando efeitos de massa e
ondulações, na música que Bach executa
no plano
de abertura de Crônica
as notas se ligam todas num continuum transbordante. Num plano
já
bem mais adiante no filme, a câmera faz um movimento que vai
dos dedos em direção ao rosto de Bach. O sentido
é
inequívoco: é o músico que
está reagindo
à música, e esta, por sua vez, está
partindo das
mãos – portanto, da periferia sensitiva do corpo
–
e subindo rumo ao cérebro.
-
Sempre bom lembrar: as
cenas musicais de Crônica
são filmadas com som direto.
Bach
é vivido no filme por Gustav
Leonhardt, um de seus maiores intérpretes.
-
Dois dos momentos mais
marcantes de
um outro filme de Straub e Huillet, Gente da
Sicília
(1999),
merecem ser lembrados
também: 1) aquelas lentas panorâmicas filmadas do
alto
de um morro de onde se vêem belas paisagens naturais, que se
repetem em diferentes horas do dia; 2) as tomadas feitas da janela do
trem em movimento. Podemos ver planos praticamente
idênticos
num filme de cinco minutos e algumas poucas tomadas chamado Sicilia
Illustrata,
feito por Arturo
Ambrosio em 1907. Straub e Huillet viram o filme de Ambrosio?
Provavelmente não. Se esses dois filmes – rodados
no
mesmo lugar, porém em épocas diferentes e por
pessoas
diferentes – puderam produzir praticamente os mesmos planos,
foi por um motivo muito “simples”: ambos
proporcionaram o
desocultamento de uma imagem que já estava lá,
cravada
na paisagem – captaram a tal “fotografia
já tirada
nas coisas” de que Bergson falava. Lançaram-se
à
apreensão do mundo, e não à de seus
prolongamentos subjetivos. Essa
“fotografia”
implícita na paisagem é o elemento que guia a
câmera,
induz a panorâmica. Nem todo cineasta, entretanto, poderia
causar tal “coincidência”. Se o interesse
de Straub
fosse o devir movente das coisas, provavelmente ele não
teria
filmado a mesma Sicília de Sicilia Illustrata,
ele teria filmado já outra coisa, as águas de um
outro
rio. Straub, contudo, filma o ser
das coisas. Por isso ele pode repetir o mesmo plano de um registro
feito mais de noventa anos antes sem nem conhecê-lo. O plano,
para Straub e Huillet, é uma reentrância da
matéria,
olhar que se introjeta para
dentro
dela.
Processo oposto ao de Rossellini, para quem o plano é uma
saliência da matéria, e portanto se projeta de
dentro dela.
Straub e Huillet
perscrutam o antepassado das coisas, algo cuja presença se
acha no limiar do infra-sensível, um estofo silencioso,
somente acessível a um olhar “pré-humano”. O
cinema de Straub busca o lúmen das coisas, deixando que elas
enviem luz ao filme, e não o contrário
(“às
vezes é a coisa que olha para o pintor”,
Merleau-Ponty
já dizia a respeito de Cézanne).
Mas
por que falar dessa conexão entre Gente
da Sicília e
um filme dos primórdios do cinema, afinal de contas? Para
tentar explicar que, pela natureza mesma do cinema de Straub/Huillet,
Crônica
de Anna Magdalena Bach
poderia ter existido já no primeiro minuto após a
criação do cinematógrafo. Talvez a
verdadeira
modernidade seja a eterna capacidade de recomeçar, de
recuperar o impulso original de uma arte em qualquer época
da
sua história.
- Julio Bressane, que acharia
perfeitamente normal um filme de 1907 possuir os mesmos planos de um
filme de 1999 (uma “cinemancia” básica),
possui um
ótimo texto sobre Crônica
de Anna Magdalena Bach.
O trecho a seguir demonstra uma compreensão certeira do
filme:
“Os planos-seqüência, com câmera
imóvel,
intensificam a proximidade do filme com seu centro de força.
[…] Ao invés da multiplicidade de imagens (notas
musicais), arabescos e contorções, de uma
câmera
que explore todos seus recursos de compreensão e
apreensão
da luz, Straub contrapõe ao ofuscante barroco musical um
plano
fixo, com seu rigor barroco, barroco aqui presente na
ausência
de movimento de câmera, o excesso na secura da
câmera, em
concentração máxima,
redução
máxima, extremista, explosiva” (em Fotodrama, Rio de Janeiro: Imago, 2005).
-
A visão do filme em película reforça a
impressão
de que a fotografia foi fortemente inspirada em Como
Era Verde Meu Vale (John
Ford, 1941). Não só pela luz
esbranquiçada, mas
pelo tanto de chão e de teto que pode caber em cada plano.
-
A duração “em ouvido
absoluto” (Bressane)
dos planos-seqüência musicais de Crônica
de Anna Magdalena Bach produz uma reta
temporal por onde transitam – o paradoxo é de todo
fascinante – as curvas
da partitura. A música de Bach empresta uma forma
à
duração, cria “um sentimento sobre o
tempo”.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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