UMA VIDA NOVA EM FOLHA
Ounie Lecomte, Une Vie toute neuve, França/Coréia do Sul, 2009

Filmar crianças é uma arte para poucos. Receptáculos de sentimentos nobres como a esperança, o amor incondicional e a piedade, elas poucas vezes ganham expressão particular e genuína nas telas, tornando-se com freqüência peças de melodramas ou dramas humanistas baratos. Ounie Lecomte, talvez pelo fato de estar filmando suas próprias memórias, vem juntar-se a estes poucos capazes de tornar uma criança uma protagonista complexa e apaixonante ao mesmo tempo. Desde Ponette, de Jacques Doillon, ninguém não havia filmado tão bem a dor de uma criança. Mantendo a câmera sempre na altura do olhar da pequena Jinhee, Lecomte registra idas e vindas, sorrisos e lágrimas como quem indaga questões profundas sobre a vida. A adesão incondicional da câmera ao corpo da menina faz ver apenas o que ela pode ver, mas não cria amarras, abrindo espaço para planos ponto de vista de outros personagens quando necessário e configurando-se como o amparo e a companhia que lhe faltam, o apoio amoroso que lhe foi tomado.

A observação atenta e fiel da personagem constrói um drama em escala micro, no qual tudo o que importa são os obstáculos momentâneos. Incorporando de fato um olhar infantil e ingênuo, Lecomte elimina a espinha dorsal da narratividade, as conexões de causa e efeito, as explicações e justificativas, e tudo aquilo que implicaria numa compreensão macro da situação e na ponderação de fatores. A angústia se traduz no presente do momento atual e do que a ele se seguirá, na expectativa constante de que logo a situação irá se reconfigurar e que a ausência que assombra o campo do filme será anulada, restaurando a possibilidade de um plano aberto, de uma paisagem, do mundo como casa. Mas como isto nunca acontece, pois o pai que se foi nunca retorna, o apenas o que conseguimos são momentos de distensão, de algum conforto, em que o quadro permite se abrir um pouco mais.

O que mais impressiona, porém, é a delicada construção de uma interioridade oculta, misteriosa e lacunar, da qual tudo o que sabemos nos é concedido pela observação exterior, pela ausência de palavras e retenção de gestos. Dado que o problema é apenas um, e todos os outros derivam dele em alguma medida, e que ele é a chave que filtra todo o comportamento da personagem, somos deixados com o vazio de conhecimento, com a perplexidade da impossibilidade de penetrar na personalidade da menina e com isso decifrar algo que permita à história avançar, e nós com ela. Não, a história não avança. Pois não há história. Há apenas uma situação perene, um espaço habitado por determinadas pessoas; o horizonte é curto. Até que as mudanças pouco a pouco ocorram, constatadas como todas as pequenas grandes novidades diárias que habitam o mundo de uma criança. Uma apreensão, um medo, um perigo, uma dor, uma surpresa, uma satisfação, uma ansiedade. Todos na mesma medida, pequenos, contidos, e, ao mesmo tempo, do tamanho do mundo.


Tatiana Monassa