Filmar crianças é uma arte para poucos. Receptáculos de
sentimentos nobres como a esperança, o amor incondicional e a piedade, elas
poucas vezes ganham expressão particular e genuína nas telas, tornando-se com
freqüência peças de melodramas ou dramas humanistas baratos. Ounie Lecomte, talvez
pelo fato de estar filmando suas próprias memórias, vem juntar-se a estes poucos
capazes de tornar uma criança uma protagonista complexa e apaixonante ao mesmo
tempo. Desde Ponette, de Jacques Doillon, ninguém não havia filmado tão bem a dor de uma criança. Mantendo a câmera sempre na altura do olhar da pequena Jinhee, Lecomte registra idas e vindas, sorrisos e lágrimas como quem indaga questões profundas sobre a
vida. A adesão incondicional da câmera ao corpo da menina faz ver apenas o que
ela pode ver, mas não cria amarras, abrindo
espaço para planos ponto de vista de outros personagens quando necessário e configurando-se
como o amparo e a companhia que lhe faltam, o apoio amoroso que lhe foi tomado.
A observação atenta e fiel da personagem constrói um drama
em escala micro, no qual tudo o que importa são os obstáculos momentâneos.
Incorporando de fato um olhar infantil e ingênuo, Lecomte elimina a espinha
dorsal da narratividade, as conexões de causa e efeito, as explicações e
justificativas, e tudo aquilo que implicaria numa compreensão macro da situação
e na ponderação de fatores. A angústia se traduz no presente do momento atual e
do que a ele se seguirá, na expectativa constante de que logo a situação irá se
reconfigurar e que a ausência que assombra o campo do filme será anulada,
restaurando a possibilidade de um plano aberto, de uma paisagem, do mundo como
casa. Mas como isto nunca acontece, pois o pai que se foi nunca retorna, o apenas
o que conseguimos são momentos de distensão, de algum conforto, em que o quadro
permite se abrir um pouco mais.
O que mais impressiona, porém, é a delicada construção de
uma interioridade oculta, misteriosa e lacunar, da qual tudo o que sabemos nos
é concedido pela observação exterior, pela ausência de palavras e retenção de
gestos. Dado que o problema é apenas um, e todos os outros derivam dele em
alguma medida, e que ele é a chave que filtra todo o comportamento da personagem,
somos deixados com o vazio de conhecimento, com a perplexidade da
impossibilidade de penetrar na personalidade da menina e com isso decifrar algo
que permita à história avançar, e nós com ela. Não, a história não avança. Pois
não há história. Há apenas uma situação perene, um espaço habitado por
determinadas pessoas; o horizonte é curto. Até que as mudanças pouco a pouco ocorram,
constatadas como todas as pequenas grandes novidades diárias que habitam o
mundo de uma criança. Uma apreensão, um medo, um perigo, uma dor, uma surpresa,
uma satisfação, uma ansiedade. Todos na mesma medida, pequenos, contidos, e, ao mesmo tempo, do
tamanho do mundo.
Tatiana Monassa
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