Ao longo de sua carreira setuagenária, de todas as marcas
deixadas por Manoel de Oliveira com seu cinema, a principal delas talvez tenha
sido justamente a do rigor formal. É o rigor que nos leva, filme após filme, a
afundarmos embevecidos em um universo particular misterioso – aquele criado
pelo cineasta/demiurgo e seus artifícios. Com Singularidades de uma Rapariga
Loura, adaptação de um conto de Eça de Queiroz que nos traz a história de
um homem vítima das armadilhas do mundo, este autêntico projeto de cinema
parece ter encontrado, pela própria simplicidade da história, uma doçura e uma
eficiência como poucas vezes se viu nos últimos anos.
Em uma viagem de trem, o contador Macário (Ricardo Trêpa)
decide se abrir à passageira do lado (Leonor Silveira). Ele conta as agruras
que lhe atormentaram nos últimos meses. O relato nos leva diretamente ao ponto
em que ele conhece Luísa, jovem que vive com a mãe no prédio do outro lado da
rua do escritório onde trabalha, que pertence a seu tio. Diante da imagem de
Luísa segurando seu leque na janela de frente, Macário imediatamente se
apaixona. A partir daí, seu destino estará selado. Pede permissão para casar ao
tio, com quem também vive, mas este lhe nega e o manda embora. Sem dinheiro e
gastando cada uma de suas economias, ele finalmente consegue uma proposta de
trabalho, na África, que lhe proporcionará lucro o suficiente para que possa se
casar com Luísa. Ao retornar rico, porém, o destino lhe prega uma série de
peças: um amigo de quem ele aceita ser fiador lhe deixa uma dívida que o leva
novamente à pobreza e, quando enfim recuperado, é Luísa que se revela enganosa.
Poucos cineastas possuem a habilidade de Oliveira ao extrair
expressividade do décor. No espaço dos planos que se convencionou chamar
de enquadramentos tableaux, são os próprios personagens que se prolongam
no ambiente, tomam sua parte no quadro, dispostos como peças que encenam seus
dramas. O ambiente se adianta, se põe à frente – porém guarda algo. Em Sempre
Bela, a longa encenação de um jantar entre dois personagens, conhecidos de
outras épocas e outras aventuras, é o que abre um espaço invisível através do
qual se destrincha o desconforto entre ambos. A superfície do plano carregado,
sua composição pictórica, nos seduz e nos afaga (é fascinante acompanhar uma a
uma as fases do jantar) ao mesmo tempo que carrega
em si a sensação do mero artifício, de algo, dúvida ou drama, que se descortina
em plena invisibilidade.
Como história de amor atravessada de uma janela à outra, do
amor pela imagem, ou pela falsa imagem, Singularidades de uma Rapariga Loura encontra na forma de Oliveira expressividade e fluência notáveis. O ingênuo
Macário será confrontado com o décor e as figuras à sua volta – um
círculo social. Pobre diabo, será enganado pelo menos duas vezes, pelas
aparências de um mundo que o seduz mas que guarda em sua face invisível o
tropeço. E se no início do texto usamos o termo “eficiência”, é precisamente
porque o que surge nos planos deste Singularidades... são não as
relações pulverizadas de filmes como O Princípio da Incerteza ou Espelho
Mágico, mas a fórmula banal do amor trágico. Apaixonar-se pela imagem
platônica e cair em desgraça, desiludido – talvez seja a mais antiga de todas
as histórias de amor.
Mas qual a motivação em filmar
aqui senão aquilo que sempre foi a raiz profunda para o cinema de Oliveira?
Apesar da história banal, da simplicidade e de um sentido quase puramente de
eficiência, os planos ainda guardam uma densidade fundamental e marcante típica
de seu cinema – sobretudo um plano em particular. Eis a surpresa que nos
reservava a história: Luísa, a doce e fresca rapariga de boa família da janela
em frente, guarda um segredo: é uma ladra. Macário, desiludido, abandona-a e a
manda embora. A moça se recolhe em sua casa, sentada prostrada em uma poltrona,
cabeça baixa, sob luz de penumbra – última imagem do filme. Oliveira filma aqui
um dos planos mais bonitos dos últimos anos: quem é Luísa? O que se guarda por
trás de sua imagem? O que há de invisível, por trás ou no interior mesmo do
plano, do décor? É ali, neste plano de uma figura até então coadjuvante,
destacada da história, que o próprio cinema de Oliveira – essa entidade que ano
após ano ainda nos inspira mistério e (des)conforto inexprimíveis (a exemplo de
outros mestres do rigor, como Rohmer e Ozu) – retorna e se encena, na figura da
doce e fresca Luísa. Amamos sobretudo a imagem, o plano, o tableau, mas
nunca saberemos por quê.
Calac Nogueira
|