SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
Manoel de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loura, Portugal/França/Espanha, 2009

Ao longo de sua carreira setuagenária, de todas as marcas deixadas por Manoel de Oliveira com seu cinema, a principal delas talvez tenha sido justamente a do rigor formal. É o rigor que nos leva, filme após filme, a afundarmos embevecidos em um universo particular misterioso – aquele criado pelo cineasta/demiurgo e seus artifícios. Com Singularidades de uma Rapariga Loura, adaptação de um conto de Eça de Queiroz que nos traz a história de um homem vítima das armadilhas do mundo, este autêntico projeto de cinema parece ter encontrado, pela própria simplicidade da história, uma doçura e uma eficiência como poucas vezes se viu nos últimos anos.

Em uma viagem de trem, o contador Macário (Ricardo Trêpa) decide se abrir à passageira do lado (Leonor Silveira). Ele conta as agruras que lhe atormentaram nos últimos meses. O relato nos leva diretamente ao ponto em que ele conhece Luísa, jovem que vive com a mãe no prédio do outro lado da rua do escritório onde trabalha, que pertence a seu tio. Diante da imagem de Luísa segurando seu leque na janela de frente, Macário imediatamente se apaixona. A partir daí, seu destino estará selado. Pede permissão para casar ao tio, com quem também vive, mas este lhe nega e o manda embora. Sem dinheiro e gastando cada uma de suas economias, ele finalmente consegue uma proposta de trabalho, na África, que lhe proporcionará lucro o suficiente para que possa se casar com Luísa. Ao retornar rico, porém, o destino lhe prega uma série de peças: um amigo de quem ele aceita ser fiador lhe deixa uma dívida que o leva novamente à pobreza e, quando enfim recuperado, é Luísa que se revela enganosa.

Poucos cineastas possuem a habilidade de Oliveira ao extrair expressividade do décor. No espaço dos planos que se convencionou chamar de enquadramentos tableaux, são os próprios personagens que se prolongam no ambiente, tomam sua parte no quadro, dispostos como peças que encenam seus dramas. O ambiente se adianta, se põe à frente – porém guarda algo. Em Sempre Bela, a longa encenação de um jantar entre dois personagens, conhecidos de outras épocas e outras aventuras, é o que abre um espaço invisível através do qual se destrincha o desconforto entre ambos. A superfície do plano carregado, sua composição pictórica, nos seduz e nos afaga (é fascinante acompanhar uma a uma as fases do jantar) ao mesmo tempo que carrega em si a sensação do mero artifício, de algo, dúvida ou drama, que se descortina em plena invisibilidade.

Como história de amor atravessada de uma janela à outra, do amor pela imagem, ou pela falsa imagem, Singularidades de uma Rapariga Loura encontra na forma de Oliveira expressividade e fluência notáveis. O ingênuo Macário será confrontado com o décor e as figuras à sua volta – um círculo social. Pobre diabo, será enganado pelo menos duas vezes, pelas aparências de um mundo que o seduz mas que guarda em sua face invisível o tropeço. E se no início do texto usamos o termo “eficiência”, é precisamente porque o que surge nos planos deste Singularidades... são não as relações pulverizadas de filmes como O Princípio da Incerteza ou Espelho Mágico, mas a fórmula banal do amor trágico. Apaixonar-se pela imagem platônica e cair em desgraça, desiludido – talvez seja a mais antiga de todas as histórias de amor.

Mas qual a motivação em filmar aqui senão aquilo que sempre foi a raiz profunda para o cinema de Oliveira? Apesar da história banal, da simplicidade e de um sentido quase puramente de eficiência, os planos ainda guardam uma densidade fundamental e marcante típica de seu cinema – sobretudo um plano em particular. Eis a surpresa que nos reservava a história: Luísa, a doce e fresca rapariga de boa família da janela em frente, guarda um segredo: é uma ladra. Macário, desiludido, abandona-a e a manda embora. A moça se recolhe em sua casa, sentada prostrada em uma poltrona, cabeça baixa, sob luz de penumbra – última imagem do filme. Oliveira filma aqui um dos planos mais bonitos dos últimos anos: quem é Luísa? O que se guarda por trás de sua imagem? O que há de invisível, por trás ou no interior mesmo do plano, do décor? É ali, neste plano de uma figura até então coadjuvante, destacada da história, que o próprio cinema de Oliveira – essa entidade que ano após ano ainda nos inspira mistério e (des)conforto inexprimíveis (a exemplo de outros mestres do rigor, como Rohmer e Ozu) – retorna e se encena, na figura da doce e fresca Luísa. Amamos sobretudo a imagem, o plano, o tableau, mas nunca saberemos por quê.


Calac Nogueira