O termo “libertário” tem algo de antigo. O
Rei da Fuga também nos remete, num certo sentido, a um tipo de cinema “antigo”.
E libertário talvez seja uma boa definição para este novo longa-metragem
de Alain Guiraudie, autor de outros três filmes inéditos comercialmente no
Brasil.
O que foi dito não deve ser visto como
pejorativo. Ao contrário: é quase um milagre, na safra da produção
contemporânea que chega até nós, encontrarmos um filme autenticamente libertário,
o que O rei da fuga consegue ser de forma extremamente bem-humorada e
inteligente. E não apenas pelas questões tratadas, que envolvem moralismo,
hipocrisia, homossexualismo, pedofilia, amor livre etc., mas sobretudo porque o
filme promove uma total inversão de expectativas em relação ao tratamento dado
a essas mesmas questões. A começar pelo fato de que elas não precisam ser
entendidas como um “problema”, mas podem ser vistas simplesmente como
circunstâncias, a marcar encontros entre personagens e a revelar um sistema de
secretas relações mantidas pelas aparências culturais, sociais, políticas ou
econômicas. É nesse sentido que O Rei da Fuga é libertário: dá adeus a
um certo cinema aparentemente preocupado em “levantar polêmica” acerca desse ou
daquele assunto, mas que na verdade, a despeito – ou exatamente por causa – das
suas “boas intenções”, só se aprisiona em fórmulas, padrões ou esquemas que, no
fundo, não passam de reproduções clicherizadas e muitas vezes preconceituosas
das mesmas convenções que pretende atacar.
O filme de Guiraudie felizmente escapa a essa
armadilha. Não se trata aqui de um jogo de palavras: a ideia de “fuga” é
inerente à própria construção dramática do filme, que evita a todo custo as saídas
fáceis. Armand, o personagem central, foge inteiramente do lugar-comum dos
personagens gays politicamente corretos, e talvez por isso seja “amado”
por quase todos os outros personagens que o cercam – da adolescente Curly ao
improvável delegado que o persegue. Não se deixa “enquadrar” e não é um modelo –
nem em termos complexos nem em termos heróicos –, razão pela qual ganha também,
de imediato, a simpatia do espectador. Por outro lado, não se trata da clássica
“identificação” do público com o personagem central. Dificilmente o espectador
se identifica com qualquer um dos personagens que surgem na tela, muito embora
possamos sentir simpatia por todos eles – até pelos mais antipáticos. A questão
não está em criar “blocos de defesa” entre este ou aquele grupo de personagens,
em uma visão maniqueísta que opõe “certos” e “errados” em luta por seus
“direitos”. Em O Rei da Fuga tudo se mistura, tudo se embaralha e o
próprio filme escapa a uma definição precisa. Daí sua riqueza, daí sua
novidade, daí seu real sentido libertário.
Nem mesmo o amor é o tema principal do filme,
embora essa seja uma das possíveis formas de entendê-lo. O amor também está em
fuga e não se encontra nessa ou naquela relação especialmente reconhecida pela
sociedade. Armand não está em busca do “amor perfeito” ou da redenção. Para que
isso fosse possível, ele precisaria conhecer-se primeiro, estar completamente
em paz consigo mesmo. É justamente isso que Armand não consegue fazer – ou
talvez não queira fazer, pelo menos não nas condições mais corriqueiras e
convencionais. Em sua desesperada fuga pelo campo, amando a jovem Curly, ou em
suas sucessivas aventuras amorosas com outros homens, o gordo Armand procura um
porto-seguro para si mesmo. Felizmente, o filme não nos dá solução alguma para
seu problema.
O Rei da Fuga lembra, ainda, dois
filmes “antigos”: O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou,
Jean-Luc Godard, 1965) e Corações Loucos (Les Valseuses, Bertrand
Blier, 1973). Não por acaso, filmes igualmente “libertários”, em que o tema do
amor encontra na idéia de fuga sua melhor tradução.
Luís Alberto Rocha Melo
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