O REI DA FUGA
Alan Guiraudie, Le Roi de l'évasion, França, 2009

O termo “libertário” tem algo de antigo. O Rei da Fuga também nos remete, num certo sentido, a um tipo de cinema “antigo”. E libertário talvez seja uma boa definição para este novo longa-metragem de Alain Guiraudie, autor de outros três filmes inéditos comercialmente no Brasil.

O que foi dito não deve ser visto como pejorativo. Ao contrário: é quase um milagre, na safra da produção contemporânea que chega até nós, encontrarmos um filme autenticamente libertário, o que O rei da fuga consegue ser de forma extremamente bem-humorada e inteligente. E não apenas pelas questões tratadas, que envolvem moralismo, hipocrisia, homossexualismo, pedofilia, amor livre etc., mas sobretudo porque o filme promove uma total inversão de expectativas em relação ao tratamento dado a essas mesmas questões. A começar pelo fato de que elas não precisam ser entendidas como um “problema”, mas podem ser vistas simplesmente como circunstâncias, a marcar encontros entre personagens e a revelar um sistema de secretas relações mantidas pelas aparências culturais, sociais, políticas ou econômicas. É nesse sentido que O Rei da Fuga é libertário: dá adeus a um certo cinema aparentemente preocupado em “levantar polêmica” acerca desse ou daquele assunto, mas que na verdade, a despeito – ou exatamente por causa – das suas “boas intenções”, só se aprisiona em fórmulas, padrões ou esquemas que, no fundo, não passam de reproduções clicherizadas e muitas vezes preconceituosas das mesmas convenções que pretende atacar.

O filme de Guiraudie felizmente escapa a essa armadilha. Não se trata aqui de um jogo de palavras: a ideia de “fuga” é inerente à própria construção dramática do filme, que evita a todo custo as saídas fáceis. Armand, o personagem central, foge inteiramente do lugar-comum dos personagens gays politicamente corretos, e talvez por isso seja “amado” por quase todos os outros personagens que o cercam – da adolescente Curly ao improvável delegado que o persegue. Não se deixa “enquadrar” e não é um modelo – nem em termos complexos nem em termos heróicos –, razão pela qual ganha também, de imediato, a simpatia do espectador. Por outro lado, não se trata da clássica “identificação” do público com o personagem central. Dificilmente o espectador se identifica com qualquer um dos personagens que surgem na tela, muito embora possamos sentir simpatia por todos eles – até pelos mais antipáticos. A questão não está em criar “blocos de defesa” entre este ou aquele grupo de personagens, em uma visão maniqueísta que opõe “certos” e “errados” em luta por seus “direitos”. Em O Rei da Fuga tudo se mistura, tudo se embaralha e o próprio filme escapa a uma definição precisa. Daí sua riqueza, daí sua novidade, daí seu real sentido libertário.

Nem mesmo o amor é o tema principal do filme, embora essa seja uma das possíveis formas de entendê-lo. O amor também está em fuga e não se encontra nessa ou naquela relação especialmente reconhecida pela sociedade. Armand não está em busca do “amor perfeito” ou da redenção. Para que isso fosse possível, ele precisaria conhecer-se primeiro, estar completamente em paz consigo mesmo. É justamente isso que Armand não consegue fazer – ou talvez não queira fazer, pelo menos não nas condições mais corriqueiras e convencionais. Em sua desesperada fuga pelo campo, amando a jovem Curly, ou em suas sucessivas aventuras amorosas com outros homens, o gordo Armand procura um porto-seguro para si mesmo. Felizmente, o filme não nos dá solução alguma para seu problema.

O Rei da Fuga lembra, ainda, dois filmes “antigos”: O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou, Jean-Luc Godard, 1965) e Corações Loucos (Les Valseuses, Bertrand Blier, 1973). Não por acaso, filmes igualmente “libertários”, em que o tema do amor encontra na idéia de fuga sua melhor tradução.

Luís Alberto Rocha Melo