PARALELAS E TRANSVERSAIS
Politist, adjectiv, de Corneliu Porumboiu
Piquenique, de Adrian Sitaru


Politist, adjectiv, Romênia, 2009
Pescuit sportiv, Romênia/França, 2009


Dois filmes romenos recentes; duas concepções formais inteiramente diversas. Piquenique e Politist, adjectiv apresentam clichês típicos de um certo cinema contemporâneo, ambos resultando em duas propostas estéticas distintas e distantes uma da outra.


Os seus dois jovens realizadores, Adrian Sitaru (Piquenique) e Corneliu Porumboiu (Politist, adjectiv), respectivamente 35 e 38 anos, têm trajetórias muito semelhantes. Ambos se formaram em cinema, realizaram curtas premiados pelo Cinéfondation e participaram do programa de residência do Festival de Cannes. No caso de Piquenique, trata-se do longa de estréia de Sitaru; já Politist, adjectiv é o segundo filme de Porumboiu, conhecido aqui por seu primeiro longa, Á Leste de Bucareste (2003).

Antes de serem informações “biográficas”, esses dados indicam um mesmo universo de referências a moldar visões de mundo correspondentes, mas nem por isso convergentes. No caso, Sitaru e Porumboiu aderem a dois recursos estilísticos mais ou menos recorrentes a partir dos anos 1990, sobretudo nos cinemas europeu e asiático: de um lado, a experiência da câmera digital na mão e a ilusão de um realismo que se constrói a partir da imagem imperfeita; de outro, a câmera fixa, freqüentemente imóvel, que observa personagens em ações às vezes corriqueiras, banais, e que está menos interessada em narrar uma ação do que em registrar o tempo que passa e as alterações interiores dos personagens ao longo desse tempo.

Piquenique enquadra-se no primeiro caso: o filme é inteiramente decupado segundo os pontos de vista dos personagens e a câmera é sempre “subjetiva”, saltando de um olhar para outro. Não há o “olhar exterior” do diretor que narra, o que o espectador vê é sempre “intermediado” pelos personagens/câmera, no caso, centralizados no casal Mihai e Mihaela e na prostituta Ana. Assim, há sempre um personagem que está de todo ou em parte fora do nosso campo de visão, porque a própria câmera o representa.

Em Politist, adjectiv, ao contrário, temos um olhar quase sempre “exterior”, às vezes distante, frio, impassível. Mesmo quando a câmera toma a posição do protagonista, o policial Cristi, não se trata de proporcionar ao espectador a experiência de “ver com olhos” do personagem, mas simplesmente posicionar-se estratégica e classicamente quando isso se torna necessário para a narrativa. O que não significa que o filme siga uma decupagem tradicional: diversas cenas se resolvem com os personagens em campo, sem cortes ou movimentos de câmera, em um ritmo bastante lento. Enquadramentos se repetem, os cenários são vistos apenas em parte, a câmera não tem o dom da ubiqüidade.

Não é difícil perceber, por essas breves descrições, os traços estilísticos convencionais de um certo “cinema moderno” ou mesmo “contemporâneo”: a câmera na mão, tremida, em movimentos imperfeitos, ou então estática, deixando correr o fluxo temporal sem cortes ou correções de foco, há muito deixou de significar quebra de padrões de narração. Desde os anos 1970, esses efeitos se tornaram clichês; encontrar um modo de dizer as coisas sem recorrer ao gaguejo fácil ou à empostação vazia é certamente um desafio que se impõe aos realizadores “autorais” contemporâneos. Com Piquenique e Politist, adjectiv, Sitaru e Porumboiu enfrentaram esse desafio.

No primeiro filme, a pulverização do olhar em vários pontos de vista (tantos quanto fossem os personagens em cena) provoca um efeito de dispersão. Não há um “centro”, já que a subjetividade da câmera passa de um personagem a outro. A idéia é a princípio instigante, mas a premissa é no fundo ingênua: ao plasmar o olhar dos personagens ao da câmera, o filme promove na verdade uma homogeneização do ponto de vista. Ao assumir a “subjetividade” dos olhares, a câmera termina por tornar indistinto aquilo que deveria ser “pessoal e intransferível”. O resultado é paradoxal: querendo reproduzir a multiplicidade, o filme acaba fixando apenas um só olhar, justamente aquele que tenta a todo custo disfarçar-se, isto é, o olhar do próprio narrador.

Esse problema não existe em Politist, adjectiv, pois desde o princípio temos um narrador que se assume enquanto tal e uma câmera que não pretende “ser” ninguém, apenas o que ela é, ou seja, instância narradora, instrumento em função do qual se organizam os elementos necessários ao drama. O maior desafio enfrentado por Politist, adjectiv não está na questão “posicional” do cinema (aliás, muito bem resolvida por seu realizador), e sim na utilização de um tempo distendido como elemento dramático. É nesse ponto que o filme parece caminhar sobre um fio de arame, sempre prestes a cair no terreno da auto-indulgência ou do pastiche. De fato, Politist, adjectiv consegue equilibrar-se até o fim, mas à custa de um angustiante esforço em dar substância ao recurso do “tempo distendido”. A favor de Politist, adjectiv, pode-se porém argumentar que essa escolha estética tem sua lógica no próprio roteiro, todo ele calcado na idéia do absurdo das convenções. Nesse sentido, o próprio “fluxo temporal” seria uma convenção, até mesmo sutilmente ironizada pelo filme. Mas se é esse o caso, por que exatamente reproduzi-lo?

Piquenique e Politist, adjectiv são exemplos de como o cinema atual enfrenta alguns impasses formais nem sempre vistos como problemas. Nesse aspecto, os dois filmes se distanciam bastante, sendo que o segundo cresce consideravelmente em relação ao primeiro: em Piquenique, o recurso da “câmera subjetiva” é um “dogma”, sua premissa não é contestada ou sequer posta em crise, daí ser possível falar em certa ingenuidade. Já em Politist, adjectiv, percebe-se uma tensão no uso do “tempo distendido”, ele não é uma opção tranqüila, ou pelo menos não parece o ser sempre. É justamente essa tensão que transforma Politist, adjectiv em um exercício de estilo bem mais instigante do que Piquenique.

Luís Alberto Rocha Melo