Dois filmes romenos recentes; duas concepções
formais inteiramente diversas. Piquenique e Politist, adjectiv apresentam
clichês típicos de um certo cinema contemporâneo, ambos resultando em duas propostas
estéticas distintas e distantes uma da outra.
Os seus dois jovens realizadores, Adrian
Sitaru (Piquenique) e Corneliu Porumboiu (Politist, adjectiv),
respectivamente 35 e 38 anos, têm trajetórias muito semelhantes. Ambos se
formaram em cinema, realizaram curtas premiados pelo Cinéfondation e
participaram do programa de residência do Festival de Cannes. No caso de Piquenique,
trata-se do longa de estréia de Sitaru; já Politist, adjectiv é o
segundo filme de Porumboiu, conhecido aqui por seu primeiro longa, Á Leste
de Bucareste (2003).
Antes de serem informações “biográficas”,
esses dados indicam um mesmo universo de referências a moldar visões de mundo
correspondentes, mas nem por isso convergentes. No caso, Sitaru e Porumboiu
aderem a dois recursos estilísticos mais ou menos recorrentes a partir dos anos
1990, sobretudo nos cinemas europeu e asiático: de um lado, a experiência da
câmera digital na mão e a ilusão de um realismo que se constrói a partir da
imagem imperfeita; de outro, a câmera fixa, freqüentemente imóvel, que observa
personagens em ações às vezes corriqueiras, banais, e que está menos
interessada em narrar uma ação do que em registrar o tempo que passa e as
alterações interiores dos personagens ao longo desse tempo.
Piquenique enquadra-se no primeiro caso: o filme
é inteiramente decupado segundo os pontos de vista dos personagens e a câmera é
sempre “subjetiva”, saltando de um olhar para outro. Não há o “olhar exterior”
do diretor que narra, o que o espectador vê é sempre “intermediado” pelos
personagens/câmera, no caso, centralizados no casal Mihai e Mihaela e na
prostituta Ana. Assim, há sempre um personagem que está de todo ou em parte fora
do nosso campo de visão, porque a própria câmera o representa.
Em Politist, adjectiv, ao contrário,
temos um olhar quase sempre “exterior”, às vezes distante, frio, impassível.
Mesmo quando a câmera toma a posição do protagonista, o policial Cristi, não se
trata de proporcionar ao espectador a experiência de “ver com olhos” do
personagem, mas simplesmente posicionar-se estratégica e classicamente quando
isso se torna necessário para a narrativa. O que não significa que o filme siga
uma decupagem tradicional: diversas cenas se resolvem com os personagens em
campo, sem cortes ou movimentos de câmera, em um ritmo bastante lento. Enquadramentos
se repetem, os cenários são vistos apenas em parte, a câmera não tem o dom da
ubiqüidade.
Não é difícil perceber, por essas breves
descrições, os traços estilísticos convencionais de um certo “cinema moderno”
ou mesmo “contemporâneo”: a câmera na mão, tremida, em movimentos imperfeitos,
ou então estática, deixando correr o fluxo temporal sem cortes ou correções de
foco, há muito deixou de significar quebra de padrões de narração. Desde os
anos 1970, esses efeitos se tornaram clichês; encontrar um modo de dizer as
coisas sem recorrer ao gaguejo fácil ou à empostação vazia é certamente um
desafio que se impõe aos realizadores “autorais” contemporâneos. Com Piquenique e Politist, adjectiv, Sitaru e Porumboiu enfrentaram esse desafio.
No primeiro filme, a pulverização do olhar em
vários pontos de vista (tantos quanto fossem os personagens em cena) provoca um
efeito de dispersão. Não há um “centro”, já que a subjetividade da câmera passa
de um personagem a outro. A idéia é a princípio instigante, mas a premissa é no
fundo ingênua: ao plasmar o olhar dos personagens ao da câmera, o filme promove
na verdade uma homogeneização do ponto de vista. Ao assumir a “subjetividade”
dos olhares, a câmera termina por tornar indistinto aquilo que deveria ser
“pessoal e intransferível”. O resultado é paradoxal: querendo reproduzir a
multiplicidade, o filme acaba fixando apenas um só olhar, justamente aquele que
tenta a todo custo disfarçar-se, isto é, o olhar do próprio narrador.
Esse problema não existe em Politist,
adjectiv, pois desde o princípio temos um narrador que se assume enquanto
tal e uma câmera que não pretende “ser” ninguém, apenas o que ela é, ou seja, instância
narradora, instrumento em função do qual se organizam os elementos necessários
ao drama. O maior desafio enfrentado por Politist, adjectiv não está na
questão “posicional” do cinema (aliás, muito bem resolvida por seu realizador),
e sim na utilização de um tempo distendido como elemento dramático. É nesse
ponto que o filme parece caminhar sobre um fio de arame, sempre prestes a cair
no terreno da auto-indulgência ou do pastiche. De fato, Politist, adjectiv consegue equilibrar-se até o fim, mas à custa de um angustiante esforço em dar
substância ao recurso do “tempo distendido”. A favor de Politist, adjectiv,
pode-se porém argumentar que essa escolha estética tem sua lógica no próprio
roteiro, todo ele calcado na idéia do absurdo das convenções. Nesse sentido, o
próprio “fluxo temporal” seria uma convenção, até mesmo sutilmente ironizada
pelo filme. Mas se é esse o caso, por que exatamente reproduzi-lo?
Piquenique e Politist, adjectiv são
exemplos de como o cinema atual enfrenta alguns impasses formais nem sempre
vistos como problemas. Nesse aspecto, os dois filmes se distanciam bastante,
sendo que o segundo cresce consideravelmente em relação ao primeiro: em Piquenique,
o recurso da “câmera subjetiva” é um “dogma”, sua premissa não é contestada ou
sequer posta em crise, daí ser possível falar em certa ingenuidade. Já em Politist,
adjectiv, percebe-se uma tensão no uso do “tempo distendido”, ele não é uma
opção tranqüila, ou pelo menos não parece o ser sempre. É justamente essa tensão
que transforma Politist, adjectiv em um exercício de estilo bem mais
instigante do que Piquenique.
Luís Alberto Rocha Melo
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