MOTHER
Bong Joon-ho, Madeo, Coréia do Sul, 2009

Que as relações familiares pautam a inserção do indivíduo no mundo e são a origem de neuroses diversas já sabíamos. Mas o que ninguém antes de Bong Joon-ho tenha talvez filmado seja este inusitado labirinto paranóico formado pela associação de obsessões familiares e impulsos homicidas. Os laços sanguíneos e os instintos mais primários despertados por eles (que convenientemente originam personagens com faculdades mentais abaixo da média) formavam em O Hospedeiro um trampolim para o heroísmo e a superação de limites. Para o afrontamento da sociedade em seus contornos preconceituosos e conservadores. Em Mother, no entanto, eles configuram um lembrete impiedoso da falibilidade humana e da fragilidade do que chamamos viver em sociedade.

A interdependência entre Do-joon e sua mãe Hye-já é apenas na superfície um caso patológico como tantos outros. A solidão da mãe e a deficiência do filho fizeram com que o cordão umbilical ali permanecesse, criando um escudo contra as eventuais crueldades do mundo. Mas a vida prega peças, e o que era instinto de defesa, ou reação imatura e inconseqüente torna-se expressão de uma maldade encruada, profunda, com ecos de gestos ancestrais reproduzidos por reflexo involuntário, num nível pré-consciência. O ato homicida é mais do que um acontecimento inominável a ser desvelado, arrancado de sua condição de segredo sujo compartilhado pela vítima, o agressor e uma eventual testemunha. É um giro quase lógico da mente que deve ser desenterrado de uma memória episódica, por uma consciência praticamente ausente. Do lado oposto está a lei, também agindo por reflexos e confiando num savoir-faire sem rastro de atitude voluntária movida por uma inteligência perspicaz.

Por isso, talvez, as cenas dentro e fora das unidades de detenção (hospício ou prisão, tanto faz) em quase nada se diferenciem, e os ambientes sinistros que o filme encontra sejam filmados com a mesma exuberância que todos os outros. Uma vez que a lógica foi deslocada de seu campo usual, os espaços podem ser vividos no que apresentam de autêntico e palpável, e não através a idéia que se faz deles. E é neste delicado equilíbrio entre o “real” e o inteligível que Bong tece suas sutis afirmações sobre um status quo tão absurdo quanto qualquer ficção fantástica. O elaboradíssimo quebra-cabeças cinematográfico de Mother faz a noção de gênero se retorcer sobre si para que as expectativas tradicionais do suspense recaiam sobre um intricado jogo psicológico que afasta automaticamente as noções de Bem e Mal, assim como os pré-conceitos em que usualmente confiamos para lidar com narrativas mais ou menos pré-formatadas.

É em sua impressionante maestria em trabalhar passo a passo, sem pressa, uma trama razoavelmente simples cujas idas e vindas dependem sobretudo de uma cuidadosa ancoragem em diferentes pontos de vista – como em um jogo de espelhos no qual dependendo de para onde seu olhar se vire uma parte da cena lhe seja revelada –, que Bong se afirma como um dos mais importantes diretores do contemporâneo. Seu objetivo está claramente muito além da auto-afirmação de um estilo ou de uma celebração festiva dos efeitos; ele reside num pingue-pongue complexo com o espectador, no qual o background cinematográfico e as concepções de sujeito e agente social deste último são acionados em igual medida e ao mesmo tempo. Engajar-se na narrativa, mesmo como observador, não é um ato sem conseqüências. Da mesma forma, a identificação com este ou aquele personagem deve ser comprada. E a um custo alto: o de ser capaz de estabelecer distanciamentos e fazer julgamentos morais quando for chegada a hora.


Tatiana Monassa