Em um plano fixo fechado, os olhos de um homem são pintados
para a guerra. Fora dos limites do quadro estão os inimigos, as razões e o
confronto em si. O mundo de João Pedro Rodrigues é um palco restrito àqueles
cujo espaço na ordem das coisas encontra-se negado em maior ou menor medida.
Trata-se de um universo cênico controlado, de planos fixos, de contornos muito
bem traçados. A pintura do rosto que vimos no primeiro plano, portanto, pode
perfeitamente servir de analogia à maquiagem da drag queen Tonia perante
a vida; esta guerra seria então a eterna guerra dos “diferentes” por um lugar
na sociedade.
Tonia, no entanto, parece estar perdendo sua batalha. Para
sua rival na casa de shows, para seu jovem namorado afundado nas drogas, para o
tempo que age em seu corpo. E o que filma Rodrigues é sua bravura em seguir com
dignidade até o fim. Em sua frontalidade, a câmera do cineasta sempre
preocupou-se em tratar da visibilidade das coisas (mesmo ao deter-se em áreas
de total penumbra), da materialidade dos corpos habitados por desejos de evasão
(seja ela qual for) e de sua gravidade, de sua ligação inexorável à terra. Morrer
Como um Homem, não por acaso, está repleto de planos aproximados de pés,
como a reforçar a conexão dos personagens com o chão que nunca pode faltar.
Mas, aqui, os impulsos interiores da protagonista já se
desprendem de seu corpo que morre, dirigindo-se à atmosfera e distorcendo a
realidade aparente. O belo plano-tableau que serve como interlúdio
musical e divide o filme em dois é um autêntico tour-de-force que
transporta o registro para uma chave onírica. O tempo pára e a subjetividade de
Tonia se apossa da imagem do filme. Como em Alice no País das Maravilhas,
o passeio na floresta revela uma realidade mágica. No cenário de brinquedo,
Tonia conhece a existência remota de Maria Bakker, habitante de um mundo tão
palpável quanto fantasioso.
A solução estética de Rodrigues para conciliar o embate
entre desejo e sociedade que é a força motriz de seu cinema toma aqui um novo
rumo: as cores efusivas, o escapismo e o devaneio contrastam com o corpo que
definha em sua feiúra, em sua realidade inegável. As feridas sangram; um
travesti não é feito apenas de plumas e energias vibrantes. Por baixo de tudo,
ou depois de tudo, ele também precisa lidar com a matéria que se afirma a
despeito de suas vontades.
E o tormento que nunca deixa a expressão da amargurada Tonia
é também este: sua fé religiosa a coloca desnuda diante de uma verdade mais
ampla e profunda; uma operação de mudança de sexo apenas disfarça as
aparências, a realidade essencial permanece a mesma. Como no demonstrativo com
o pedaço de papel na seqüência dos créditos iniciais, uma série de “dobras” e
cortes pode alterar a forma, mas nunca a natureza da matéria. Trata-se, ao
limite, de uma questão moral – moral esta bem distante daquela moldada pelos
preconceitos da sociedade. E ao trabalhá-la de forma tão rica, João Pedro
Rodrigues dá um passo além em seu cinema; existem impasses insolúveis dos quais
apenas a bravura pode dar conta. Reside aí a virilidade de uma alma.
Tatiana Monassa
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