Uma população relegada às margens da cidade. Um regime de
segregação étnica e ideológica estabelecendo permissões e proibições para a
circulação dos corpos. Insurreições devastando espaços públicos. Florescimento
do crime organizado nas franjas da sociedade. Toda a configuração do cenário
ficcional de Neil Bloomkamp para contar a história de uma “invasão” alienígena
casual na África do Sul serve como um espelho perfeito para a Apartheid negra
no país e, por extensão, de metáfora para a condição de diversas populações
marginalizadas, especialmente de refugiados, ao redor do globo. Mas este é
apenas um aspecto superficial da narrativa de Distrito 9. De mockumentary inspirado a ágil filme de ação embalado por tiques de um realismo “de urgência”,
o filme descortina bem mais do que os comentários políticos de fina ironia
sobre os rumos do nosso mundo (e, por que não dizer também, do cinema?) que vêm
à tona num primeiro momento.
O fato de não se preocupar em definir de forma fechada uma estrutura-dispositivo
que pudesse eventualmente se tornar restritiva para o relato deixa Bloomkamp
livre para passear entre “estatutos” diferentes de imagem (sem que isso se
torne uma questão) e, com isso, conferir maior dinamismo ao filme.
Diferentemente do caso de REC, por exemplo, em que tudo é construído com
base no parti-pris do ponto-de-vista-da-câmera-enquanto-filma, Distrito
9 brinca com formatos (o documentário conservador, a reportagem
televisiva, o filme de ação contemporâneo), para estabelecer algo maior: um
mundo ficcional sustentável. No processo, clichês diversos se acumulam, criando
um sentimento de frescor inaudito pela inteligência com que são trabalhados.
Avizinhado da ficção científica humanista, Bloomkamp busca
na presença alienígena o elemento humano que estaria faltando na própria humanidade.
Seus ETs operários, já dentro de sua sociedade uma sub-raça sem acesso adequado
ao conhecimento sofisticado dominado por sua espécie, quando “extraviados” de sua rota, tornam-se seres relegados a
uma existência inferior. Aprisionados como animais, sem gozar de direito algum
a não ser aqueles delegados de cima pra baixo, que se revelam capital de
manobra para interesses escusos de grandes empresários, eles demonstram, no
entanto, a riqueza de uma cultura própria (intangível em grande parte) e a
dignidade e coragem que faltam a nossos dirigentes. Isto, porém, não chega a
configurá-los como heróis. Há uma distância nunca ultrapassada entre a câmera e
estes corpos estranhos de CGI. Sua repugnância e exotismo permanecem até o fim
como elementos a pautar sua inserção no filme. Primeiro vistos de relance e em
seguida em imagens normatizadas pela frieza jornalística, sua gradual conquista
do campo do filme nunca elimina o estranhamento, que se traduz num tratamento
respeitoso, enamorado da curiosidade infantil do contato com o diferente.
E é isso que faz de Distrito 9 um filme especial. A
complexidade de sua estrutura narrativa só se faz ver pela análise de tudo
aquilo que ele traz à tona sobre o mundo. Muito além de uma paródia pura e
simples, temos personagens que oscilam entre a caricatura e o peso real de seus
sentimentos e ações; da mesma forma, o plot aventuresco de fácil
assimilação é um simulacro que mal encobre a trama verdadeira presente em nosso
planeta ali reproduzida. Ao rir da sátira, sentimos a gravidade de tudo aquilo
que seria risível se visto de um ponto de vista distanciado – do espaço sideral?–,
mas cujo status de realidade avassaladora é tão sofrido quanto inacreditável. Ainda assim, a superfície das imagens crê com empenho na ficção, salvando o
filme de servir apenas como veículo cult de comentários inteligentes.
Paralelamente à miríade de reflexões propostas – com maior ou menor grau de
articulação – Distrito 9 pulsa com um desejo de cinema inabalável.
Tatiana Monassa
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