PARALELAS E TRANSVERSAIS
Uma Barragem Contra o Pacífico, de Rithy Panh
Leite, de Semih Kaplanoglu


Un Barrage contre le Pacifique, França, 2008
Süt, Turquia/França/Alemanha, 2009


A princípio, Uma Barragem Contra o Pacífico e Leite não possuem nada em comum. A vontade de responder aos dois filmes em uma só critica parte de um mesmo incômodo provocado por ambos. São dois filmes enclausurados pelo academicismo da direção. O primeiro aposta todas as fichas nas convenções do filme de época clássico-narrativo (com todo o anacronismo que o gênero traz consigo), o segundo obedece à risca a cartilha do novo formalismo do world cinema contemporâneo. Embora suas propostas sejam absolutamente distintas, o resultado é o mesmo – um cinema inócuo, brutalizado por estruturas rígidas e pré-formatadas.


O filme de Rithy Panh é baseado em obra homônima de Marguerite Duras, que resgata o passado do Camboja colonial focalizando uma família de origem francesa que, assim como os nativos cambojanos, luta para sobreviver em meio aos abusos da administração corrupta. Seus personagens guardam bastante interesse, mas o filme só reserva a eles algumas tímidas insinuações de autonomia, de vida pulsante, justamente porque servem como peças de algo maior – um discurso histórico/político auto-suficiente. São, portanto, personagens presos a palavras que pertencem a um lugar de enunciação externo às suas individualidades e que negligenciam a especificidade do corpo e da presença do ator – e isso em um filme protagonizado por ninguém menos que Isabelle Huppert. Rithy Panh filma com transparência a fim de fazer prevalecer a história (ou a História), mas ironicamente não sabe fazê-lo sem sacrificar a dramaturgia. Isso porque o filme sufoca tudo aquilo que foge à sua lógica totalizante, como as pulsões sexuais adolescentes de Joseph e Suzanne, filhos da personagem interpretada por Huppert, ou o estranho interesse de Suzanne por Mr. Jo, rico chinês que a deseja, ou mesmo o conflito dos dois filhos entre a vontade de partir e a impossibilidade de deixar só sua mãe doente. Mas ainda que o discurso político ocupe o centro das atenções de Uma Barragem Contra o Pacífico, também lhe faltam forças para sustentar seu próprio peso. Freqüentemente, os personagens imigrantes lançam comentários racistas sobre os nativos, mas em nenhum momento isso parece se tornar uma questão dentro do olhar do filme. Pensemos nas cenas que mais aproximam Uma Barragem Contra o Pacífico a um drama histórico ordinário, justamente aquelas protagonizadas pelo povo cambojano – se aqui usamos esse termo sem reservas é porque é assim que Rithy Panh filma os nativos, como uma massa informe e passiva que precisa que alguém de fora os lidere, apontando os problemas e ensinando o que precisa ser feito para que possam agir contra as injustiças que sofrem. Não se trata exatamente de uma vinculação ao olhar estrangeiro, uma vez que a família de protagonistas não interessa mais ao filme do que o seu macro-discurso sobre o passado colonial do país.


>Se o academicismo de Uma Barragem Contra o Pacífico ao menos traz consigo a eficiência do modelo clássico-narrativo, em Leite, a situação é talvez pior. Semih Kaplanoglu lança em seu filme todas as cartas dessa nova “escola” do world cinema contemporâneo ou, para usar termos mais acertados, o cinema feito para os festivais internacionais. Estão lá os planos fixos de enorme duração – cujo emprego excessivo e despreocupado esvazia-os de qualquer significado, o uso exaustivo do espaço fora da tela (sobretudo na primeira metade de filme), a atuação minimalista, o laconismo do roteiro, os silêncios totais. Não há nada de errado, a princípio, em lançar mão desses elementos formais. O problema é quando eles parecem partir antes de uma fidelidade incondicional à cartilha do bom cinema, que desconsidera as reais necessidades do filme e de seus personagens. Kaplanoglu se preocupa excessivamente com as imagens, mas muito mais em um nível plástico/formal do que significante.

Também em Leite há dois personagens interessantes cujas potencialidades são reduzidas pelo academicismo da direção. O filme conta a história de Yusuf, um jovem que vive com a mãe em uma cidade da região rural da Turquia, onde se ocupa da venda de leite e escreve poesias. Frustrado diante das possibilidades de sua vida, ele percorre os espaços espectralmente e se relaciona com as pessoas e com as coisas sem entusiasmo. Enquanto os personagens do filme de Rithy Panh estão presos a palavras que não lhes são próprias, os de Leite se esvaziam na ausência total de palavras e de gestos. Trata-se de um filme todo passado em tempos mortos, mas essa sensação vem antes da forma como os atores são dirigidos do que das possibilidades dramáticas das cenas. É verdade que o filme prefere relegar a último plano os acontecimentos mais significativos da narrativa – lembrar da maneira discretíssima com que se sugere o affair entre a mãe de Yusuf e o funcionário da estação de trem, ou da cena em que Yusuf corre a gritar em plano geral, comemorando a notícia da publicação de seu poema. No entanto há ainda algumas seqüências de considerável importância dramática em primeiro plano, como a chegada da carta de recusa de Yusuf no serviço militar ou o encontro com uma jovem por quem se interessa, mas mesmo aí o ator não esboça quase nenhuma mudança de expressão e o registro permanece o mesmo do restante do filme. Isso porque Kaplanoglu quer pôr em quadro (ou em campo) apenas a letargia, a ausência ou a contenção total do drama. Embora se procure assim emular o sentimento de insipidez do protagonista, sua própria presença atonal em cena e a clausura acadêmica que o cerca parecem impedir que nos relacionemos minimamente com suas perturbações. Os atores de Leite parecem antes funcionar como superfícies chapadas a serviço de um cinema elegante, carregado de uma noção já conhecida de duração e latência, mas que aqui vem desacompanhada de seus complementos indispensáveis, como a transformação ou a descoberta. Sim, há uma transformação no final (talvez o melhor momento do filme), mas se foram precisos uma hora e 40 minutos de assepsia cinematográfica para que ela acontecesse, já não se pode considerá-la suficiente.

A impressão é de que Semih Kaplanoglu passou tanto tempo estudando as lições de como se fazer o bom cinema contemporâneo que deixou de se sensibilizar pelo mundo. Rithy Panh também, por motivos desconhecidos, não soube ter um olhar sensível sobre a matéria mesma de seu projeto – da origem nada humilde na obra de Marguerite Duras à potência de seus atores, passando pela possibilidade de falar com intimidade sobre o passado de seu próprio pais. Dois cineastas que tomaram o mundo e aprisionaram-nos em regras, convenções e formalismos já desgastados, ainda que seguindo caminhos inteiramente opostos. Tanto em Uma Barragem contra o Pacífico quanto em Leite podemos ver muitos cinemas fagocitados, mas a verdade é que deles pouco cinema pulsa.

Alice Furtado