A princípio, Uma Barragem Contra
o Pacífico e Leite não possuem nada em comum. A vontade de responder
aos dois filmes em uma só critica parte de um mesmo incômodo provocado por
ambos. São dois filmes enclausurados pelo academicismo da direção. O primeiro
aposta todas as fichas nas convenções do filme de época clássico-narrativo (com
todo o anacronismo que o gênero traz consigo), o segundo obedece à risca a
cartilha do novo formalismo do world cinema contemporâneo. Embora suas
propostas sejam absolutamente distintas, o resultado é o mesmo – um cinema
inócuo, brutalizado por estruturas rígidas e pré-formatadas.
O filme de Rithy Panh é baseado
em obra homônima de Marguerite Duras, que resgata o passado do Camboja colonial
focalizando uma família de origem francesa que, assim como os nativos cambojanos,
luta para sobreviver em meio aos abusos da administração corrupta. Seus
personagens guardam bastante interesse, mas o filme só reserva a eles algumas
tímidas insinuações de autonomia, de vida pulsante, justamente porque servem
como peças de algo maior – um discurso histórico/político auto-suficiente. São,
portanto, personagens presos a palavras que pertencem a um lugar de enunciação
externo às suas individualidades e que negligenciam a especificidade do corpo e
da presença do ator – e isso em um filme protagonizado por ninguém menos que
Isabelle Huppert. Rithy Panh filma com transparência a fim de fazer prevalecer
a história (ou a História), mas ironicamente não sabe fazê-lo sem sacrificar a
dramaturgia. Isso porque o filme sufoca tudo aquilo que foge à sua lógica
totalizante, como as pulsões sexuais adolescentes de Joseph e Suzanne, filhos
da personagem interpretada por Huppert, ou o estranho interesse de Suzanne por
Mr. Jo, rico chinês que a deseja, ou mesmo o conflito dos dois filhos entre a
vontade de partir e a impossibilidade de deixar só sua mãe doente. Mas ainda
que o discurso político ocupe o centro das atenções de Uma Barragem Contra o
Pacífico, também lhe faltam forças para sustentar seu próprio peso. Freqüentemente,
os personagens imigrantes lançam comentários racistas sobre os nativos, mas em
nenhum momento isso parece se tornar uma questão dentro do olhar do filme.
Pensemos nas cenas que mais aproximam Uma Barragem Contra o Pacífico a
um drama histórico ordinário, justamente aquelas protagonizadas pelo povo cambojano
– se aqui usamos esse termo sem reservas é porque é assim que Rithy Panh filma
os nativos, como uma massa informe e passiva que precisa que alguém de fora os
lidere, apontando os problemas e ensinando o que precisa ser feito para que
possam agir contra as injustiças que sofrem. Não se trata exatamente de uma
vinculação ao olhar estrangeiro, uma vez que a família de protagonistas não
interessa mais ao filme do que o seu macro-discurso sobre o passado colonial do
país.
>Se o academicismo de Uma Barragem
Contra o Pacífico ao menos traz consigo a eficiência do modelo
clássico-narrativo, em Leite, a situação é talvez pior. Semih Kaplanoglu
lança em seu filme todas as cartas dessa nova “escola” do world cinema contemporâneo
ou, para usar termos mais acertados, o cinema feito para os festivais
internacionais. Estão lá os planos fixos de enorme duração – cujo emprego
excessivo e despreocupado esvazia-os de qualquer significado, o uso exaustivo
do espaço fora da tela (sobretudo na primeira metade de filme), a atuação
minimalista, o laconismo do roteiro, os silêncios totais. Não há nada de
errado, a princípio, em lançar mão desses elementos formais. O problema é
quando eles parecem partir antes de uma fidelidade incondicional à cartilha do
bom cinema, que desconsidera as reais necessidades do filme e de seus personagens.
Kaplanoglu se preocupa excessivamente com as imagens, mas muito mais em um
nível plástico/formal do que significante.
Também em Leite há dois
personagens interessantes cujas potencialidades são reduzidas pelo academicismo
da direção. O filme conta a história de Yusuf, um jovem que vive com a mãe em
uma cidade da região rural da Turquia, onde se ocupa da venda de leite e
escreve poesias. Frustrado diante das possibilidades de sua vida, ele
percorre os espaços espectralmente e se relaciona com as pessoas e com as
coisas sem entusiasmo. Enquanto os personagens do filme de Rithy Panh estão
presos a palavras que não lhes são próprias, os de Leite se esvaziam na
ausência total de palavras e de gestos. Trata-se de um filme todo passado em
tempos mortos, mas essa sensação vem antes da forma como os atores são
dirigidos do que das possibilidades dramáticas das cenas. É verdade que o filme
prefere relegar a último plano os acontecimentos mais significativos da
narrativa – lembrar da maneira discretíssima com que se sugere o affair entre a mãe de Yusuf e o funcionário da estação de trem, ou da cena em que
Yusuf corre a gritar em plano geral, comemorando a notícia da publicação de seu
poema. No entanto há ainda algumas seqüências de considerável importância
dramática em primeiro plano, como a chegada da carta de recusa de Yusuf no
serviço militar ou o encontro com uma jovem por quem se interessa, mas mesmo aí
o ator não esboça quase nenhuma mudança de expressão e o registro permanece o
mesmo do restante do filme. Isso porque Kaplanoglu quer pôr em quadro (ou em
campo) apenas a letargia, a ausência ou a contenção total do drama. Embora se procure
assim emular o sentimento de insipidez do protagonista, sua própria presença
atonal em cena e a clausura acadêmica que o cerca parecem impedir que nos
relacionemos minimamente com suas perturbações. Os atores de Leite parecem
antes funcionar como superfícies chapadas a serviço de um cinema elegante,
carregado de uma noção já conhecida de duração e latência, mas que aqui vem desacompanhada
de seus complementos indispensáveis, como a transformação ou a descoberta. Sim,
há uma transformação no final (talvez o melhor momento do filme), mas se foram
precisos uma hora e 40 minutos de assepsia cinematográfica para que ela
acontecesse, já não se pode considerá-la suficiente.
A
impressão é de que Semih Kaplanoglu passou tanto tempo estudando as lições de
como se fazer o bom cinema contemporâneo que deixou de se sensibilizar pelo
mundo. Rithy Panh também, por motivos desconhecidos, não soube ter um olhar
sensível sobre a matéria mesma de seu projeto – da origem nada humilde na obra
de Marguerite Duras à potência de seus atores, passando pela possibilidade de
falar com intimidade sobre o passado de seu próprio pais. Dois cineastas que
tomaram o mundo e aprisionaram-nos em regras, convenções e formalismos já
desgastados, ainda que seguindo caminhos inteiramente opostos. Tanto em Uma Barragem
contra o Pacífico quanto em Leite podemos ver muitos cinemas
fagocitados, mas a verdade é que deles pouco cinema pulsa.
Alice Furtado
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