BARBA AZUL
Catherine Breillat, Barbe Bleue, França, 2009

A incorporação de um olhar "infantil" é a grande ambição que cineastas como Eugène Green e Éric Rohmer (pensamos aqui, por exemplo, em Les Amours d’Astrée et de Celadon e Le monde vivant) se encarregam. Focados em longínquas épocas medievais, submissos a compromissos figurativos, e ainda enclausurados no limites da pele dos personagens, é a partir destas “constrições” que eles estabelecem um olhar que desbrava as coisas pela primeira vez, adesão incondicional à exterioridade, sem abrir mão da qualidade provocativa. Em Barba Azul, este olhar que tentei descrever, e que representa um estado efusivo de encantamento para Green e Rohmer, é desdobrado, submetido à análise, dissecado até encontrar seus estigmas.

O filme é a adaptação da clássica fábula do título, mas não só: duas irmãs pequeninas e sozinhas num sótão intervêm no fluxo narrativo, chamando a si o próprio papel de narradoras. Temos, portanto, uma narração duplicada, como se fosse uma maneira de igualar aquilo que lêem com as imagens vistas por nós. O filme trabalha como uma espécie de documentário de sua própria ficção. Breillat, que tem sempre como ponto de partida um olhar, e a representação inscrita neste olhar, torna esse princípio, em Barba Azul, explícito, precisando contorcer a unidade narrativa para este olhar ser criado.



Os ares misteriosos e imponentes de Barba Azul, e as ambições de sua pequena princesa, chapados em um cenário rústico e ironicamente realista, talvez já fosse material suficiente para aquilo que a cineasta pretende atingir. Os dois personagens postos um ao lado do outro, na frontalidade exigente com que a diretora estabelece a cena, como se fosse um exercício de medição das figuras e itens do quadro, já traduz as sugestões sexuais e o comentário histórico que ela pretende evocar. Percebe-se que Breillat se interessa menos pela força centrípeta da cena (como Green e Rohmer), mas a utiliza para resgatar a profundidade e o décor e trazê-los à tona, na superfície, na atualidade da tela. Asia Argento é, digamos, o elemento catalisador disto em A Última Amante (2007). Aqui, a matriz da fábula. Nos dois casos, uma mesma pergunta muito simples poderia expressar tal processo: qual é a distância entre a narração e narrativa? Se a pergunta está inscrita no casting e na decupagem de A Última Amante, Barba Azul quis ser auxiliado por um “recurso extra” – as tais crianças fofinhas que lêem a fábula.

Impedindo a fruição da história original, elas são uma presença dissonante e lacônica da obra. Ora, é a partir destas crianças enquanto narradoras que se pretende incorporar o que seria um olhar infantil? Isto me parece muito pouco. Numa câmera titubeante e estranhamente colada aos rostos destas crianças, algo, ainda suspenso, parece estar sendo chamado. Algo que ainda não se apresentou e que não se representou. A efervescência dos corpos e a brutalidade de suas ações, capacidade essencial às dramaturgias de Breillat – em que a gravidade do corpo equilibra o efeito centrífugo do cenário (ou, dito de outra forma: quando a força narrativa combate sua força figurativa) –, está desta vez em estado latente, a despeito das expectativas da conhecida história e do fervor com que as crianças a desenvolvem. Assim, temos um mundo estático, simétrico, que não esboça reações. O personagem de Barba Azul, igualmente, se apresenta mais como um homem entediado e tristemente sereno, do que uma ameaça iminente.



É então que toda a descarga de violência é despejada subitamente, como se não pudesse ser contida pelo olhar agora ingênuo das crianças. A narrativa recobra para si seus estigmas; a narração se vê diante de algo além da cena; o cenário não consegue prevalecer seu caráter figurativo. A duplicidade da narração implode, e agora é este olhar infantil que se fortalece, no instante em que descobre novos territórios. Regressamos inesperadamente a uma nova unidade narrativa: de frente à morte, sem possibilidade de escape, nenhum outro olhar senão aquele que se traz de dentro da cena, e o silêncio de quem vê as coisas pela primeira vez.

João Gabriel Paixão