ERÓTICA AVENTURA
Jean-Claude Brisseau, À l'Aventure, França, 2009

Sandrine é uma mulher jovem e bonita que se descobre insatisfeita com a vida que leva. Na cena de abertura, ela almoça um sanduíche sentada ao banco de uma agradável praça. Um senhor se intromete na conversa dela com sua amiga para dizer coisas como: “a verdade é que somos todos ovelhas, dormimos sempre na mesma hora, comemos na mesma hora, até transamos na mesma hora”. O papo intriga Sandrine e irrita sua amiga.

À noite, Sandrine (mesmo nome da personagem de Sabrina Seyvecou em Coisas Secretas) faz um sexo morno e rotineiro com o namorado (que a princípio tinha até se esquivado dela, dizendo que na manhã seguinte sairia cedo para trabalhar). O olhar da moça para o teto durante a transa denota toda sua frustração. Na cena seguinte, o namorado acorda no meio da madrugada e não a encontra na cama. Levanta, encaminha-se à sala e uma música de suspense acompanha o trajeto, até que ele encontra Sandrine se masturbando no sofá, num daqueles planos que ninguém soube filmar melhor que o Brisseau nesta década. O olhar do rapaz, parado à soleira da porta, parcialmente na sombra, é o perfeito retrato de uma perturbação súbita e profunda. “Por que você faz isso?”, ele pergunta, “Porque isso me dá prazer”, ela responde. Um prazer que afronta, que perturba aquele homem ali parado. “Você é uma puta” é tudo que ele consegue dizer, no limiar do ridículo. O despreparo dele advém, em parte, do fato de que Sandrine é certinha, virtuosa, formada em economia, tem MBA. Mas depois do episódio da masturbação flagrada, ela decide largar o emprego. A aventura começa.

Numa tarde aparentemente sem nada especial, Sandrine conhece um homem num café. Ele se chama Greg e está lendo livros sobre histeria, transe e hipnose quando ela se interessa e toma a iniciativa, sentando na mesa dele e pedindo que lhe explique o que é a psicanálise. “Tudo começa com a histeria”, Greg afirma. Ele conta que no fim do século XIX alguns pacientes apresentavam distúrbios como a cegueira e a paralisia sem relação alguma com afecções orgânicas. E não era fingimento. Por meio da hipnose e da regressão, um médico amigo de Freud descobriu que um ou mais eventos traumáticos situados no passado do paciente eram responsáveis pelo distúrbio. Algo muito intenso (como um desejo sexual incestuoso, por exemplo) ficara recalcado, e depois ressurgira sob a forma de sintoma físico. Um pensamento, um desejo, pode se transformar em algo que se manifesta fisicamente no corpo. “Hoje a psicanálise se transferiu da histeria para outros tipos de neurose. Ela busca compreender as manifestações do inconsciente. Nosso inconsciente fala o tempo todo”, Greg conclui após a breve explanação. Sandrine confessa que está atraída por ele. O aprendizado, então, passa pela segunda fase, a da prática: eles vão para um hotel e transam calorosamente. Ao chegar em casa, Sandrine conta para o namorado a aventura extraconjugal que acaba de ter, e ele de imediato resolve deixá-la.

Num novo encontro fortuito, o homem da praça inicia mais um de seus papos estranhos. Dessa vez ele diz que ao se observar as coisas, as pessoas, o espaço, o tempo, as distâncias, conclui-se que tudo está na mente. A matéria é constituída de átomos, e os átomos são constituídos de um núcleo e de elétrons que giram a seu redor. Mas a distância que separa o núcleo dos elétrons é mil vezes superior à sua dimensão. Em outras apalavras, há mais espaço vazio do que preenchido no universo. (Espero não aborrecer o leitor ao reproduzir e ampliar de modo tão detalhado as discussões teóricas que ocorrem no filme; o fato é que elas são de grande fascínio e interesse.) “Olhe para aquela árvore”, o homem diz a Sandrine. “De longe, parece uma massa compacta, mas se você chegar perto, verá que o vazio é maior que a matéria”. Enquanto ele dá o exemplo, Brisseau ilustra a explicação com planos cada vez mais aproximados da árvore. Num plano mais fechado, o foco transita das folhas para o espaço entre as folhas, expondo didaticamente a escassez da matéria se comparada à abundância do vazio (não custa lembrar que a “matéria comum”, de que nós e o mundo que conhecemos somos feitos, corresponde a apenas 4% da receita cósmica do Universo). O estranho homem é taxista e ex-professor de física, gosta de falar e de ensinar. Brisseau, também ex-professor, também adora ensinar, e seus filmes podem muito bem ser vistos como trajetos de aprendizado – pela experiência e pela razão.

Dois mundos, portanto, abrem-se para Sandrine. Um, o da psicanálise, postula que tudo o que se passou na vida mental pode ter ficado preservado e pode retornar em condições especiais (indução via hipnose, por exemplo). O outro, da cosmologia, postula que o Universo provém de uma explosão. Um mergulha nas entranhas da mente humana; o outro, no infinito do cosmo. Ambos levam a um mesmo lugar: o mundo originário – que continua atuante, flui sob nossa existência cotidiana da mesma forma que as ruínas da Roma antiga permanecem sob as construções modernas da cidade. A mise en scène de Brisseau é uma busca escrupulosa desse mundo originário que guarda as senhas da Beleza e dos mistérios sagrados. Um mundo que é pura violência e poesia. Para alcançá-lo, Brisseau põe tudo em confronto e conluio ao mesmo tempo: psicanálise e cosmologia, racionalismo e misticismo, natureza e paranormalidade, Freud e Marx, materialismo e espiritualismo, etc. Essas doutrinas não disputam por espaço em seu cinema, não são necessariamente contraditórias. Podem conviver revelando suas diferenças – mas sem se aniquilar.

No mesmo café em que se conheceram, Greg apresenta Sandrine a uma amiga, Sophie (Lise Bellynck, a loira de Anjos Exterminadores). Sophie acaba de se divorciar. Ela conta das novas experiências sexuais masoquistas que vem tendo com um arquiteto e sua esposa Mina. Greg e Sandrine aceitam o convite de assistir a uma das “sessões”. O ritual erótico, desde os primeiros gemidos de excitação até o orgasmo, é filmado praticamente todo em um único plano. A continuidade real da cena sublinha seu aspecto teatral, mas empresta também uma incontrovertível carga de verdade à progressão do prazer e do jogo.

À mesa de jantar, depois da sessão, em meio à conversa, Mina diz que “não mais pensar é se liberar do sofrimento”. E que uma forma de não pensar é obedecer. Pela obediência ela aprendeu a controlar a ansiedade e descobrir sensações novas em seu corpo. “Isso é uma forma de escravidão?”, pergunta Sandrine. “Não exatamente. Isso anula os mecanismos de autodefesa, e você descobre realidades interiores até então escondidas”. A liberação do inconsciente aparece aqui como umas das possibilidades de afloramento do mundo originário. Mina se demonstrará bastante suscetível à hipnose – as sessões conduzidas por Greg a afetarão fisicamente. A primeira hipnose de Mina é filmada em plano-sequência, como havia sido a sessão erótica. Ela entra e sai do transe num registro contínuo: o filme nos transporta suavemente do racional ao irracional e vice-versa. Brisseau é daqueles cineastas que ainda conferem um valor ontológico à duração, à extensão, à decupagem. Como Rohmer definiu certa vez, a decupagem consiste basicamente em saber onde ficará a câmera e por quanto tempo. Simples assim – e, apesar de ou justamente por isso, é ela que guarda o mistério da mise en scène.

Mina quer ir mais fundo na experiência, quer descobrir se é possível, como em alguns de seus sonhos, vivenciar o êxtase absoluto. “Êxtase sexual ou místico?”, Greg interroga. “E qual a diferença?”, ela retruca. Sandrine e Sophie também se mostram interessadas em tentar atingir o êxtase. Uma nova aventura se anuncia. As sessões ocorrem em aposentos feitos de paredes de pedra, pé-direito alto, iluminação rústica, como num pequeno castelo fora do tempo. O que as mulheres de Erótica Aventura almejam na hipnose é talvez aquele sentimento oceânico, aquela diluição do ser no universo, aquele “não pensar em nada para estar no todo” de que falava a jovem protagonista de Céline, o filme de Brisseau que num primeiro momento me parece o mais próximo de Erótica Aventura (as cenas de levitação dos dois filmes têm suas similaridades, inclusive). Somente Mina consegue chegar perto desse sentimento (provocando ciúme em Sandrine, que descobre, ao lado de suas liberações, suas limitações). Mesmo assim, quando tentar ir além, empurrar os limites, irá se defrontar com uma força negativa, uma energia obscura. Greg, ao se dizer apaixonado por Mina, parece na verdade obcecado pelo tal “estado de beatitude” que ele enxergou no prolongado orgasmo que ela teve ao final da cena da hipnose coletiva. A aventura do corpo, para eles, leva a uma outra, nem antagônica nem sinérgica, mas tão-somente concomitante: a da busca pelo êxtase em estado límpido, destacado de qualquer interferência sensível. Numa cena já quase no final, Greg quer que Mina, toda vestida de branco, atinja o orgasmo mais violento de sua vida sem nenhum estímulo físico, só com o poder da mente (é quando ocorre a levitação e a ventania que derruba tudo, no momento mais tourneriano do filme).

Esse espaço puramente mental já havia sido posto em conflito na cena anterior, em que o taxista leva Sandrine para conhecer sua casa no alto das montanhas (as mesmas montanhas de Les Savates du bon Dieu?) e o trajeto é mostrado através de planos feitos de dentro do carro em movimento. O taxista vai explicando, em off, a teoria da relatividade, depois a do Big Bang, a da origem e expansão do universo etc. Todo o som externo, nesse momento, é anulado; só ouvimos a voz do taxista, como se o filme entrasse no seu pensamento ou, mais ainda, quisesse dar razão ao que ele disse lá no início: o espaço, as distâncias, os seres, as coisas, tudo está na mente. O mundo, em si, é o espelho de uma paisagem interior. Estamos mergulhados no pensamento, no raciocínio humano, na sua tentativa de enxergar o desenho do criador, a ordem do cosmo, o conceito regulador da natureza. Mas – eis o outro lado da moeda – estamos igualmente em contato com a luz do sol, com a cor, com a carne da natureza, com a presença física das montanhas, das árvores, do vento, da relva. É como se o filme, naquela travessia, fundisse o Rossellini de Sócrates e Descartes ao de Stromboli e Viagem à Itália.

Cada corpo em Erótica Aventura carrega uma energia luminosa íntima, um “fluido fotogênico” que Brisseau não fabrica, apenas suscita por meio de uma luz que tinge na pele das personagens alguma parte de sua interioridade, como um pintor que suscita a beleza das coisas sem todavia inventá-la. “Não se pode agarrar nem ultrapassar a luz”, diz o taxista numa de suas conversas com Sandrine no banco da praça – evidência física da qual Brisseau nem pensa em discordar.

Erótica Aventura é, portanto, um grande filme místico, cósmico, lírico, erótico. É nesse entrecruzamento que Jean-Claude Brisseau nos situa. Seu olhar sobre a vida se nutre da dualidade que está na sua origem: luz e trevas, ordem e caos, Eros e Tânatos. Dessas forças mutuamente opostas, inversas porém cúmplices, nasceram também as obras de Hitchcock, Lang, Tourneur. O homem, nesse sistema, é somente uma partícula suspensa entre o céu e a terra, entre a manifestação carnal do mundo e a insolência da matemática divina, entre a palpabilidade dos fenômenos e a superestrutura conceitual que define o Universo e suas leis. A contrapartida é que o homem, embora ínfimo, irrelevante, tem a possibilidade de compreender – ou ao menos de tentar compreender – tudo isso. O que também constitui, a seu modo, uma aventura.

Luiz Carlos Oliveira Jr.