Sandrine
é uma mulher jovem e bonita que se descobre insatisfeita com
a
vida que leva. Na cena de abertura, ela almoça um
sanduíche
sentada ao banco de uma agradável praça. Um
senhor se
intromete na conversa dela com sua amiga para dizer coisas como:
“a
verdade é que somos todos ovelhas, dormimos sempre na mesma
hora, comemos na mesma hora, até transamos na mesma
hora”.
O papo intriga Sandrine e irrita sua amiga.
À
noite, Sandrine (mesmo nome da personagem de Sabrina Seyvecou em
Coisas Secretas) faz um sexo morno e rotineiro com o
namorado
(que a princípio tinha até se esquivado dela,
dizendo
que na manhã seguinte sairia cedo para trabalhar). O olhar
da
moça para o teto durante a transa denota toda sua
frustração.
Na cena seguinte, o namorado acorda no meio da madrugada e
não
a encontra na cama. Levanta, encaminha-se à sala e uma
música
de suspense acompanha o trajeto, até que ele encontra
Sandrine
se masturbando no sofá, num daqueles planos que
ninguém
soube filmar melhor que o Brisseau nesta década. O olhar do
rapaz, parado à soleira da porta, parcialmente na sombra,
é
o perfeito retrato de uma perturbação
súbita e
profunda. “Por que você faz isso?”, ele
pergunta,
“Porque isso me dá prazer”, ela
responde. Um
prazer que afronta, que perturba aquele homem ali parado.
“Você
é uma puta” é tudo que ele consegue
dizer, no
limiar do ridículo. O despreparo dele advém, em
parte,
do fato de que Sandrine é certinha, virtuosa, formada em
economia, tem MBA. Mas depois do episódio da
masturbação
flagrada, ela decide largar o emprego. A aventura começa.
Numa
tarde aparentemente sem nada especial, Sandrine conhece um homem num
café. Ele se chama Greg e está lendo livros sobre
histeria, transe e hipnose quando ela se interessa e toma a
iniciativa, sentando na mesa dele e pedindo que lhe explique o que
é
a psicanálise. “Tudo começa com a
histeria”,
Greg afirma. Ele conta que no fim do século XIX alguns
pacientes apresentavam distúrbios como a cegueira e a
paralisia sem relação alguma com
afecções
orgânicas. E não era fingimento. Por meio da
hipnose e
da regressão, um médico amigo de Freud descobriu
que um
ou mais eventos traumáticos situados no passado do paciente
eram responsáveis pelo distúrbio. Algo muito
intenso
(como um desejo sexual incestuoso, por exemplo) ficara recalcado, e
depois ressurgira sob a forma de sintoma físico. Um
pensamento, um desejo, pode se transformar em algo que se manifesta
fisicamente no corpo. “Hoje a psicanálise se
transferiu
da histeria para outros tipos de neurose. Ela busca compreender as
manifestações do inconsciente. Nosso inconsciente
fala
o tempo todo”, Greg conclui após a breve
explanação.
Sandrine confessa que está atraída por ele. O
aprendizado, então, passa pela segunda fase, a da
prática:
eles vão para um hotel e transam calorosamente. Ao chegar em
casa, Sandrine conta para o namorado a aventura extraconjugal que
acaba de ter, e ele de imediato resolve deixá-la.
Num
novo encontro fortuito, o homem da praça inicia mais um de
seus papos estranhos. Dessa vez ele diz que ao se observar as coisas, as
pessoas, o espaço, o tempo, as distâncias,
conclui-se
que tudo está na mente. A matéria é
constituída
de átomos, e os átomos são
constituídos
de um núcleo e de elétrons que giram a seu redor.
Mas a
distância que separa o núcleo dos
elétrons é
mil vezes superior à sua dimensão. Em outras
apalavras,
há mais espaço vazio do que preenchido no
universo.
(Espero não aborrecer o leitor ao reproduzir e ampliar de modo tão detalhado as
discussões
teóricas que ocorrem no filme; o fato é que elas
são
de grande fascínio e interesse.) “Olhe para aquela
árvore”, o homem diz a Sandrine. “De
longe, parece
uma massa compacta, mas se você chegar perto, verá
que o
vazio é maior que a matéria”. Enquanto
ele dá
o exemplo, Brisseau ilustra a explicação com
planos
cada vez mais aproximados da árvore. Num plano mais fechado,
o
foco transita das folhas para o espaço entre as folhas,
expondo didaticamente a escassez da matéria se comparada
à
abundância do vazio (não custa lembrar que a
“matéria
comum”, de que nós e o mundo que conhecemos somos
feitos, corresponde a apenas 4% da receita cósmica do
Universo). O estranho homem é taxista e ex-professor de
física, gosta de falar e de ensinar. Brisseau,
também
ex-professor, também adora ensinar, e seus filmes podem
muito
bem ser vistos como trajetos de aprendizado – pela
experiência
e pela razão.
Dois
mundos, portanto, abrem-se para Sandrine. Um, o da
psicanálise,
postula que tudo o que se passou na vida mental pode ter ficado
preservado e pode retornar em condições especiais
(indução via hipnose, por exemplo). O outro, da
cosmologia, postula que o Universo provém de uma
explosão. Um
mergulha nas entranhas da mente humana; o outro, no infinito do
cosmo. Ambos levam a um mesmo lugar: o mundo
originário
– que continua atuante, flui sob nossa existência
cotidiana da mesma forma que as ruínas da Roma antiga
permanecem sob as construções modernas da cidade.
A
mise en scène de Brisseau é
uma busca
escrupulosa desse mundo originário que guarda as senhas da
Beleza e dos mistérios sagrados. Um mundo que é
pura
violência e poesia. Para alcançá-lo,
Brisseau põe
tudo em confronto e conluio ao mesmo tempo: psicanálise e
cosmologia, racionalismo e misticismo, natureza e paranormalidade,
Freud e Marx, materialismo e espiritualismo, etc. Essas doutrinas
não
disputam por espaço em seu cinema, não
são
necessariamente contraditórias. Podem conviver revelando
suas
diferenças – mas sem se aniquilar.
No
mesmo café em que se conheceram, Greg apresenta Sandrine a
uma
amiga, Sophie (Lise Bellynck, a loira de Anjos Exterminadores).
Sophie acaba de se divorciar. Ela conta das novas
experiências
sexuais masoquistas que vem tendo com um arquiteto e sua esposa Mina.
Greg e Sandrine aceitam o convite de assistir a uma das
“sessões”.
O ritual erótico, desde os primeiros gemidos de
excitação
até o orgasmo, é filmado praticamente todo em um
único
plano. A continuidade real da cena sublinha seu aspecto teatral, mas
empresta também uma incontrovertível carga de
verdade à
progressão do prazer e do jogo.
À
mesa de jantar, depois da sessão, em meio à
conversa,
Mina diz que “não mais pensar é se
liberar do
sofrimento”. E que uma forma de não pensar
é
obedecer. Pela obediência ela aprendeu a controlar a
ansiedade
e descobrir sensações novas em seu corpo.
“Isso é
uma forma de escravidão?”, pergunta Sandrine.
“Não
exatamente. Isso anula os mecanismos de autodefesa, e você
descobre realidades interiores até então
escondidas”.
A liberação do inconsciente aparece aqui como
umas das
possibilidades de afloramento do mundo originário. Mina se
demonstrará bastante suscetível à
hipnose –
as sessões conduzidas por Greg a afetarão
fisicamente.
A primeira hipnose de Mina é filmada em
plano-sequência,
como havia sido a sessão erótica. Ela entra e sai
do
transe num registro contínuo: o filme nos transporta
suavemente do racional ao irracional e vice-versa. Brisseau
é
daqueles cineastas que ainda conferem um valor ontológico
à
duração, à extensão,
à decupagem.
Como Rohmer definiu certa vez, a decupagem consiste basicamente em
saber onde ficará a câmera e por quanto tempo.
Simples
assim – e, apesar de ou justamente por isso, é ela
que
guarda o mistério da mise en scène.
Mina
quer ir mais fundo na experiência, quer descobrir se
é
possível, como em alguns de seus sonhos, vivenciar o
êxtase
absoluto. “Êxtase sexual ou
místico?”, Greg
interroga. “E qual a diferença?”, ela
retruca.
Sandrine e Sophie também se mostram interessadas em tentar
atingir o êxtase. Uma nova aventura se anuncia. As
sessões
ocorrem em aposentos feitos de paredes de pedra, pé-direito
alto, iluminação rústica, como num
pequeno
castelo fora do tempo. O que as mulheres de Erótica
Aventura almejam na hipnose é talvez
aquele sentimento oceânico, aquela
diluição do
ser no universo, aquele “não pensar em nada para
estar
no todo” de que falava a jovem protagonista de Céline,
o filme de Brisseau que num primeiro momento me parece o mais
próximo
de Erótica Aventura (as
cenas de
levitação
dos dois filmes têm suas similaridades, inclusive). Somente Mina
consegue chegar perto desse sentimento (provocando ciúme em
Sandrine, que descobre, ao lado de suas liberações, suas
limitações). Mesmo assim, quando tentar ir além,
empurrar os limites, irá se defrontar com uma força
negativa, uma energia obscura. Greg, ao
se
dizer apaixonado por Mina, parece na verdade obcecado pelo tal
“estado de beatitude” que ele enxergou no
prolongado
orgasmo que ela teve ao final da cena da hipnose coletiva. A aventura
do corpo, para eles, leva a uma outra, nem
antagônica
nem sinérgica, mas tão-somente concomitante: a da
busca
pelo êxtase em estado límpido, destacado de
qualquer
interferência sensível. Numa cena já
quase no
final, Greg quer que Mina, toda vestida de branco, atinja o orgasmo
mais violento de sua vida sem nenhum estímulo
físico,
só com o poder da mente (é quando ocorre a
levitação
e a ventania que derruba tudo, no momento mais tourneriano do filme).
Esse
espaço puramente mental já havia sido posto em
conflito
na cena anterior, em que o taxista leva Sandrine para conhecer sua
casa no alto das montanhas (as mesmas montanhas de Les
Savates du
bon Dieu?) e o trajeto é mostrado
através de planos
feitos de dentro do carro em movimento. O taxista vai explicando, em
off, a teoria da relatividade, depois a do Big Bang,
a da
origem e expansão do universo etc. Todo o som externo, nesse
momento, é anulado; só ouvimos a voz do taxista,
como
se o filme entrasse no seu pensamento ou, mais ainda, quisesse dar
razão ao que ele disse lá no início: o
espaço,
as distâncias, os seres, as coisas, tudo está na
mente.
O mundo, em si, é o espelho de uma paisagem interior.
Estamos
mergulhados no pensamento, no raciocínio humano, na sua
tentativa de enxergar o desenho do criador, a ordem do cosmo, o
conceito regulador da natureza.
Mas – eis o
outro lado da moeda – estamos igualmente em contato com a luz
do sol, com a cor, com a carne da natureza, com a presença
física das montanhas, das árvores, do vento, da relva.
É como
se o filme, naquela travessia, fundisse o Rossellini de Sócrates
e Descartes ao de Stromboli e Viagem
à Itália.
Cada
corpo em Erótica Aventura carrega uma
energia luminosa
íntima, um “fluido fotogênico”
que Brisseau
não fabrica, apenas suscita por meio de uma luz que tinge na
pele das personagens alguma parte de sua interioridade, como um
pintor que suscita a beleza das coisas sem todavia
inventá-la.
“Não se pode agarrar nem ultrapassar a
luz”, diz o
taxista numa de suas conversas com Sandrine no banco da
praça
– evidência física da qual Brisseau nem
pensa em
discordar.
Erótica
Aventura é, portanto, um grande filme
místico,
cósmico, lírico, erótico. É
nesse
entrecruzamento que Jean-Claude Brisseau nos situa. Seu olhar sobre
a vida se nutre da dualidade que está na sua origem: luz e
trevas,
ordem e caos, Eros e Tânatos. Dessas forças
mutuamente
opostas, inversas porém cúmplices, nasceram
também
as obras de Hitchcock, Lang, Tourneur. O homem, nesse sistema,
é
somente uma partícula suspensa entre o céu e a
terra,
entre a manifestação carnal do mundo e a
insolência
da matemática divina, entre a palpabilidade dos
fenômenos
e a superestrutura conceitual que define o Universo e suas leis. A
contrapartida é que o homem, embora ínfimo,
irrelevante, tem a possibilidade de compreender – ou ao menos
de tentar compreender – tudo isso. O que também
constitui, a seu modo, uma aventura.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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