24 CITY
Jia Zhang-ke, Er shi si cheng ji, China, 2008

Jia Zhang-ke é um artista da superfície. Se encontrou no digital seu melhor aliado ultimamente, é justamente pela dureza e compressão do formato, que cai como uma luva para um cinema que encontra seu ápice em fabulações plásticas, de teor um tanto artificial ou mesmo discursivo. O princípio do cinema de Jia é como uma enorme superfície chapada (a imagem digital) na qual ele dispõe imagens, signos megalômanos, poemas, trilhas sonoras, elementos que se articulam sob o rigor da câmera enquanto parecem querer sufocar a existência humana no plano. Seu mundo particular, em seus últimos trabalhos, mais parece o mundo de um videoartista – os óvnis de Em Busca da Vida pareciam anunciar isso.

Em Inútil, seu longa anterior, Jia havia exercitado bem certas técnicas do documentário – em especial: o depoimento e a montagem associativa. Agora, sem uma pauta tão definida, ele retorna, em 24 City, ao tema principal de sua carreira: as transformações na China e seus imbricamentos – humanos, sociais, históricos, econômicos. Na cidade de Chengdu, a velha fábrica 420 está sendo demolida para dar lugar a um moderno complexo de edifícios. Jia explora as vicissitudes da situação: a imagem se duplica ou se triplica, acompanhando os movimentos de um mundo complexo. 24 City é um filme ambicioso em sua falta de eixo, que parece querer absorver tudo o que for permitido à imagem – os prolongamentos entre ficção e documentário, a discussão sobre representação, o que pode uma imagem.

Faz todo sentido que Jia tenha lançado mão aqui de depoimentos encenados por atrizes como Joan Chen e Zhao Tao: pelo menos desde Plataforma, o que lhe interessou foi sempre a potência plástica do signo. Os planos longos, longe de reiterarem a qualidade referencial da imagem, enfatizam, ao contrário, sua plasticidade. Isso é curioso porque gera uma certa confusão frente à imagem, já que, se por um lado os filmes de Jia teriam muito a dizer “sobre o mundo”, por outro, são mundos carregados de plena artificialidade. Trata-se de um cinema para o qual o termo “verdade” nunca foi exatamente uma questão, de forma que os depoimentos são um artifício para o cineasta como outro qualquer. E onde ficaria, aliás, essa “verdade” em um cinema que é movido sobretudo pela construção de novas formas, novas possibilidades e soluções narrativas e cênicas?

Do real, portanto, somente traços longínquos e a aridez – que o DV não apenas captura e interpreta como intensifica. No espaço chapado, sem volume do digital, os elementos se igualam em valor. Um depoimento vale tanto quanto uma citação expressa sobre a tela – e este é justamente um dos grandes baratos do cinema de Jia: a combinação, na superfície do plano, de imagens heterogêneas (lembremos dos ideogramas que surgiam na tela ou dos próprios óvnis de Em Busca da Vida). O roteiro de 24 City foi escrito em parceria com a poeta Zhai Yongming, e isto transparece forte no filme não apenas pela presença intensa (talvez exagerada) de citações sobre a tela, mas pelo próprio tom mais aberto, pelas articulações mais livres e mais à mostra – mais à superfície do plano, justamente.

E é dessa proposta que deriva ao mesmo tempo toda beleza e toda a dificuldade de 24 City. Pois se fica bem claro que o filme não possui a fluidez das ficções do diretor, isso se dá pela própria estrutura do filme – as imagens, excessivas, se somam e coagulam, congelam sobre a tela. Falta como que uma válvula de escoamento (do tempo, talvez?). O que não quer dizer que o filme não tenha momentos de franca beleza: alguns depoimentos (especialmente os das mulheres), as saídas da fábrica, o plano “tomado” por cabeças de operários ou a panorâmica no final sobre a cidade sob a neblina (poucos diretores até o momento conseguiram extrair tanta beleza do digital como Jia neste plano). Como em Em Busca da vida, são marcantes também os planos em que ele filma máquinas e aparelhos pesados: mais uma vez, é o rigor do quadro, somado à aspereza e artificialidade da imagem, que imprimem homem e máquina como parte do mesmo corpo, ou como pares.

Se como um todo, no entanto, 24 City deixa a clara sensação de um projeto irregular, disperso em sua ambição, é necessário dizer que isso pouco importa. Jia Zhang-ke é um dos maiores diretores da atualidade, e há poucas coisas mais bonitas do que ver um diretor perder-se em sua própria ambição. O excesso que move 24 City é o princípio de toda sua carreira – o que faz de O Mundo e Em busca da vida grandes filmes senão seu excesso e sua ambição? Ele pode não ter feito um filme brilhante, mas nem por isso o resultado deixou de ser fundamental.


Calac Nogueira