Originalmente
concebido para a TV Cultura como uma minissérie que queria
ser
uma espécie de reality show alternativo,
o material que serviu de base para O Amor
Segundo B.
Schianberg
continha horas e
horas do dia-a-dia de um casal formado por um ator de teatro e uma
vídeo-artista. Beto Brant instalou câmeras num
apartamento e registrou o convívio dos dois. Ele
pôs de
lado o principal procedimento dos reality shows,
que é o confinamento, e permitiu que os atores continuassem
com suas vidas normais fora do apartamento, trazendo sempre algo do
mundo exterior para dentro do filme. As janelas do apartamento ficam
abertas para que se possa
ouvir o rumor do mundo, o ruído de suas
transformações.
A experiência proposta por Brant – além de ser um eco tardio de uma
série de
acontecimentos que, vindos de longa data mas intensificados nos anos
noventa, tornaram porosas as fronteiras do cinema com as artes de
performance ao vivo, instalação, grafismo,
vídeo-arte
etc – resulta
daquela já conhecida reciclagem do cotidiano como obra de arte potencial:
não
é preciso refletir sobre o mundo captado pela(s)
câmera(s),
mas tão-somente o isolar num espaço onde se possa
observá-lo em sua insignificância mesma.
Cada
plano, se é que dá para chamar de plano,
é uma
área de performance onde o ator se instala sob a
“vigilância afetiva” do diretor. As
câmeras cobrem vários cantos do apartamento e
cercam a cena por todos os lados, como se dessem olhos eletrônicos
à
platéia de um teatro de arena (como aquele
em que o ator aparece
atuando numa encenação de Navalha
na Carne). A
iluminação é precária, os
“enquadramentos” (não dá
realmente para
falar de “quadro” nesse filme) são
fragmentários
e muito próximos dos corpos, o ponto de vista varia meio
aleatoriamente, Brant compõe mais com manchas e
grãos
do que com pessoas e objetos.
O
filme tende, por um lado, à abstração,
e não
por acaso se encerra com o vídeo experimental feito pela
atriz. A princípio destoante do resto do filme, o clipe
termina por rimar com os temas orgânicos antes evocados por
meio de imagens (um coração
sendo operado, por exemplo) ou de conversas sobre vísceras,
corpo, doença, os músculos envolvidos no beijo e
por aí
vai (Brant já demonstrara um interesse pelas entranhas
humanas
em Cão
sem dono,
na cena da endoscopia de estômago). O vídeo ao
final de
O Amor
Segundo B. Schianberg é
de certo modo um órgão enxertado na extremidade
do
corpo-filme, pertence a ele não pertencendo.
Por
outro lado, o filme reconhece sua necessidade de imaginário
e
de construção psicológica. A captura
do banal
não lhe basta, Brant não acredita tanto assim na
aparição miraculosa da
ficção no
cotidiano, e por isso fornece um material literário aos
atores
(ele se inspirou no personagem Bernardo Schianberg do livro Eu
receberia as piores notícias dos seus lindos
lábios,
de Marçal Aquino). Ao chamar Julio
Andrade, ator de Cão
sem dono,
para montar O
Amor Segundo B.
Schianberg,
Brant parece tê-lo incitado a buscar, no vasto material
à
disposição, os pedaços de
vídeo-drama
capazes de remeter este filme ao anterior, no qual a literatura
também desempenhava papel importante (em qual filme de Brant
ela não desempenha?).
Referências
literárias e
teatrais à parte, O Amor Segundo
B. Schianberg
nasce mesmo é do inevitável confronto entre os
universos ególatras dos dois atores. Tinha tudo para ser
insuportável, mas não é, pois as
situações
criadas revelam uma química bem bacana entre eles e, ao tencionar as fronteiras entre o ego e o mundo exterior, provocam
sentimentos que extrapolam em muito o universo de artistinha
contemporâneo em que o filme poderia ter se enclausurado para
o
prejuízo de todos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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