O AMOR SEGUNDO B. SCHIANBERG
Beto Brant, Brasil, 2009

Originalmente concebido para a TV Cultura como uma minissérie que queria ser uma espécie de reality show alternativo, o material que serviu de base para O Amor Segundo B. Schianberg continha horas e horas do dia-a-dia de um casal formado por um ator de teatro e uma vídeo-artista. Beto Brant instalou câmeras num apartamento e registrou o convívio dos dois. Ele pôs de lado o principal procedimento dos reality shows, que é o confinamento, e permitiu que os atores continuassem com suas vidas normais fora do apartamento, trazendo sempre algo do mundo exterior para dentro do filme. As janelas do apartamento ficam abertas para que se possa ouvir o rumor do mundo, o ruído de suas transformações.

A experiência proposta por Brant – além de ser um eco tardio de uma série de acontecimentos que, vindos de longa data mas intensificados nos anos noventa, tornaram porosas as fronteiras do cinema com as artes de performance ao vivo, instalação, grafismo, vídeo-arte etc – resulta daquela já conhecida reciclagem do cotidiano como obra de arte potencial: não é preciso refletir sobre o mundo captado pela(s) câmera(s), mas tão-somente o isolar num espaço onde se possa observá-lo em sua insignificância mesma. Cada plano, se é que dá para chamar de plano, é uma área de performance onde o ator se instala sob a “vigilância afetiva” do diretor. As câmeras cobrem vários cantos do apartamento e cercam a cena por todos os lados, como se dessem olhos eletrônicos à platéia de um teatro de arena (como aquele em que o ator aparece atuando numa encenação de Navalha na Carne). A iluminação é precária, os “enquadramentos” (não dá realmente para falar de “quadro” nesse filme) são fragmentários e muito próximos dos corpos, o ponto de vista varia meio aleatoriamente, Brant compõe mais com manchas e grãos do que com pessoas e objetos.

O filme tende, por um lado, à abstração, e não por acaso se encerra com o vídeo experimental feito pela atriz. A princípio destoante do resto do filme, o clipe termina por rimar com os temas orgânicos antes evocados por meio de imagens (um coração sendo operado, por exemplo) ou de conversas sobre vísceras, corpo, doença, os músculos envolvidos no beijo e por aí vai (Brant já demonstrara um interesse pelas entranhas humanas em Cão sem dono, na cena da endoscopia de estômago). O vídeo ao final de O Amor Segundo B. Schianberg é de certo modo um órgão enxertado na extremidade do corpo-filme, pertence a ele não pertencendo.

Por outro lado, o filme reconhece sua necessidade de imaginário e de construção psicológica. A captura do banal não lhe basta, Brant não acredita tanto assim na aparição miraculosa da ficção no cotidiano, e por isso fornece um material literário aos atores (ele se inspirou no personagem Bernardo Schianberg do livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino). Ao chamar Julio Andrade, ator de Cão sem dono, para montar O Amor Segundo B. Schianberg, Brant parece tê-lo incitado a buscar, no vasto material à disposição, os pedaços de vídeo-drama capazes de remeter este filme ao anterior, no qual a literatura também desempenhava papel importante (em qual filme de Brant ela não desempenha?).

Referências literárias e teatrais à parte, O Amor Segundo B. Schianberg nasce mesmo é do inevitável confronto entre os universos ególatras dos dois atores. Tinha tudo para ser insuportável, mas não é, pois as situações criadas revelam uma química bem bacana entre eles e, ao tencionar as fronteiras entre o ego e o mundo exterior, provocam sentimentos que extrapolam em muito o universo de artistinha contemporâneo em que o filme poderia ter se enclausurado para o prejuízo de todos.

Luiz Carlos Oliveira Jr.