OS INQUILINOS
Sergio Bianchi, Brasil, 2009

Por diversos motivos, Os Inquilinos é uma surpresa inesperada. Em primeiro lugar, após alguns filmes que tomavam partido do discurso escancarado que ignora o universo criado para fazer valer um enunciado pura e simplesmente, Sergio Bianchi dedica-se à construção de um mundo ficcional regido por dramas, suspenses e silêncios. E, ao eleger a violência urbana como tema central, busca uma trincheira improvável: aquela entre a classe baixa da periferia e a “favela”. Isto por si só já garantiria ao filme um lugar de destaque em meio à produção brasileira contemporânea sobre o assunto. Mas Bianchi vai além: em Os Inquilinos, a “favela” torna-se o território mítico por excelência, representado apenas por uma imagem icônica e distanciada – que corresponderia ao suposto ponto de vista da rua onde o filme se passa de uma favela próxima. Território nunca penetrado, presente o tempo inteiro somente como imaginário.

A distância, no entanto, é o que o filme problematiza: ela é abolida, o território passa a ser o mesmo. O mal associado à favela passa a morar (literalmente) ao lado. Esta contigüidade espacial não suprime, contudo, as profundas barreiras existentes entre a idéia que aquela periferia faz de si e a propagada idéia de “favela”. Isto gera um intenso incômodo, que é trazido para o seio do cotidiano, para a banalidade de gestos corriqueiros que se vêem confrontados com uma dinâmica comportamental de natureza radicalmente diferente. Subitamente, o “outro” está próximo demais para que se possa apontar o dedo. Tão próximo que as fronteiras começam a se confundir, e a contaminação aponta como um risco.

Além deste perspicaz arcabouço narrativo, há no filme uma operação engenhosa. Trata-se da associação entre o mencionado imaginário folclórico de “favela” e o imaginário cinematográfico (seja ele consagrado pelo gênero ou não). Os sentimentos de apreensão, insegurança e medo ligados à violência urbana convertem-se na matéria-prima do filme. Tudo gira em torno deles. A demonização da ameaça é simultaneamente fruto de um perigo autêntico e de uma projeção mental desenfreada. Os fatos são empurrados para o campo da especulação e da dúvida, a trama existe sem nunca existir, sem imagens e sem certezas. Tudo o que temos são momentos em que algo de ordem abstrata se materializa em cena: as suspeitas que passam a preencher o abismo monstruoso entre a casa da família e a casa ao lado carregam um significado amplo, condensam uma série de concepções que orientam em maior ou menor medida nossa vida em sociedade. Concepções presentes em vivências ordinárias, reproduzidas em instâncias diversas e promovidas, em último caso, pela mídia. Pelo cinema, pelos “filmes de favela”, que pouco se preocupam em de fato compreender a natureza dos conflitos que encenam.

E o que Os Inquilinos deseja é, sobretudo, indagar a origem de certos sintomas. É um filme sobre palavras, frases, enunciações, que busca os discursos tal como eles se formam. Na boca do pai, na boca da mãe, nas conversas entre os vizinhos, nas colocações de um colega ou conhecido. No campo restrito em torno do personagem principal, centrado no seu problema único, está a engrenagem invisível que movimenta uma rotina comunitária que se vê como pacata, que não se identifica com o caos urbano num primeiro momento. Mas que aos poucos se percebe enredada na ampla teia que forma uma cidade. O filme centra-se no particular, na família nuclear, para espelhar todo o resto. Num cenário restrito, a partir de um dilema mínimo, ele atinge uma dimensão reflexiva inexistente na maioria esmagadora dos filmes feitos hoje no Brasil sobre conflitos sociais.


Tatiana Monassa

Maio de 2010