Por diversos motivos, Os Inquilinos é uma surpresa
inesperada. Em primeiro lugar, após alguns filmes que tomavam partido do
discurso escancarado que ignora o universo criado para fazer valer um enunciado
pura e simplesmente, Sergio Bianchi dedica-se à construção de um mundo
ficcional regido por dramas, suspenses e silêncios. E, ao eleger a violência
urbana como tema central, busca uma trincheira improvável: aquela entre a
classe baixa da periferia e a “favela”. Isto por si só já garantiria ao filme
um lugar de destaque em meio à produção brasileira contemporânea sobre o assunto.
Mas Bianchi vai além: em Os Inquilinos, a “favela” torna-se o território
mítico por excelência, representado apenas por uma imagem icônica e distanciada
– que corresponderia ao suposto ponto de vista da rua onde o filme se passa de
uma favela próxima. Território nunca penetrado, presente o tempo inteiro
somente como imaginário.
A distância, no entanto, é o que o filme problematiza: ela é
abolida, o território passa a ser o mesmo. O mal associado à favela passa a morar
(literalmente) ao lado. Esta contigüidade espacial não suprime, contudo, as
profundas barreiras existentes entre a idéia que aquela periferia faz de si e a
propagada idéia de “favela”. Isto gera um intenso incômodo, que é trazido para
o seio do cotidiano, para a banalidade de gestos corriqueiros que se vêem confrontados
com uma dinâmica comportamental de natureza radicalmente diferente.
Subitamente, o “outro” está próximo demais para que se possa apontar o dedo.
Tão próximo que as fronteiras começam a se confundir, e a contaminação aponta
como um risco.
Além deste perspicaz arcabouço narrativo, há no filme uma
operação engenhosa. Trata-se da associação entre o mencionado imaginário folclórico
de “favela” e o imaginário cinematográfico (seja ele consagrado pelo gênero ou
não). Os sentimentos de apreensão, insegurança e medo ligados à violência
urbana convertem-se na matéria-prima do filme. Tudo gira em torno deles. A
demonização da ameaça é simultaneamente fruto de um perigo autêntico e de uma
projeção mental desenfreada. Os fatos são empurrados para o campo da
especulação e da dúvida, a trama existe sem nunca existir, sem imagens e sem
certezas. Tudo o que temos são momentos em que algo de ordem abstrata se
materializa em cena: as suspeitas que passam a preencher o abismo monstruoso
entre a casa da família e a casa ao lado carregam um significado amplo, condensam
uma série de concepções que orientam em maior ou menor medida nossa vida em
sociedade. Concepções presentes em vivências ordinárias, reproduzidas em
instâncias diversas e promovidas, em último caso, pela mídia. Pelo cinema,
pelos “filmes de favela”, que pouco se preocupam em de fato compreender a
natureza dos conflitos que encenam.
E o que Os Inquilinos deseja é, sobretudo, indagar a
origem de certos sintomas. É um filme sobre palavras, frases, enunciações, que
busca os discursos tal como eles se formam. Na boca do pai, na boca da mãe, nas
conversas entre os vizinhos, nas colocações de um colega ou conhecido. No campo
restrito em torno do personagem principal, centrado no seu problema único, está
a engrenagem invisível que movimenta uma rotina comunitária que se vê como
pacata, que não se identifica com o caos urbano num primeiro momento. Mas que
aos poucos se percebe enredada na ampla teia que forma uma cidade. O filme
centra-se no particular, na família nuclear, para espelhar todo o resto. Num
cenário restrito, a partir de um dilema mínimo, ele atinge uma dimensão
reflexiva inexistente na maioria esmagadora dos filmes feitos hoje no Brasil
sobre conflitos sociais.
Tatiana Monassa
Maio de 2010
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