Elia
Suleiman
finalmente fecha sua trilogia – iniciada em 1996 com Crônica
de uma Desaparição – sobre o
conturbado
cotidiano de um povo sem território próprio. Ele
remonta a 1948, data da criação do Estado de
Israel, e
encena momentos críticos da relação
palestinos-israelenses naquela e em outras épocas,
até
chegar aos dias de hoje, reforçando ainda mais o aspecto
pessoal de seu envolvimento com o tema, já que faz aqui uma
pequena crônica familiar autobiográfica.
O Que Resta do
Tempo, como o
anterior
Intervenção Divina, é um filme em esquetes. Não
há uma
articulação dramática unindo uma
seqüência
à outra. O verdadeiro ligante das cenas é um
mesmo
sentimento que perpassa todas as épocas mostradas: um
sentimento de violência latente, de
repetição, de
falta de projetos, de uma vida encerrada
no presente, absorvida na tarefa de se amoldar ao cotidiano de um
território ocupado. O
enredo sem
progressão dramática e sem arquitetura narrativa
propriamente dita é um desdobramento da principal
questão
do filme. Na primeira parte, durante o início da
ocupação,
o que vemos são ruas desertas, onde passam apenas jipes do
exército israelense anunciando o toque de recolher. O raccord
entre uma rua e outra, entre uma porção e outra
do
espaço, começa a se mostrar defeituoso. Suleiman
filma
a desintegração de um lugar, a
dissolução
dos cimentos comunitários que mantinham sua
coerência.
Isso já se revela na cena em que homens sentados
à mesa
de um café, localizado numa esquina que sempre reaparece no
filme, desorientam um soldado com suas
informações,
fazendo-o hesitar entre um caminho e outro: o espaço agora
está acometido por um defeito de sentido e de
direção.
Essa cena, de decupagem complexa, é a
apresentação
perfeita de uma problemática espacial que resume o filme.
O
problema enfrentado
pelos palestinos é basicamente um problema de
espaço.
“O cinema, arte do espaço”, lembrando
aqui o
título de um importante texto de Rohmer coincidentemente
escrito em 1948, fornece um meio privilegiado para abordar tal
problema. E existe um gênero que, mais do que qualquer outro,
trata precisamente das relações de
confusão
entre um corpo e um espaço: o burlesco. No caso de Suleiman,
um burlesco minimalista. Ao invés da folia e da
hiperatividade
do burlesco americano (Keaton, Chaplin, Lloyd), Suleiman tende
à
imobilidade. Ele ainda tenta algo no sentido da mirabolância
física, fazendo um salto com vara e transpondo o muro de
segregação construído por Israel, mas o ato é
derrisório, um
devaneio. A partir do momento em que o espaço deixa de se apresentar
como
uma zona de influência do corpo, como uma área de
atuação possível, as
relações que
daí derivam são relações de
introversão
e encarceramento. Privado de seu impulso expansivo, o corpo
burlesco se reduz a seu elemento mais neutro: a face inalterável do comediante, o olhar paralisado diante das coisas.
Os recorrentes quadros dentro do quadro não
deixam dúvida quanto à
redução do espaço
a uma mera visão de alguma coisa, espaço
inacessível
à ação. A certa altura, o vizinho que
volta e
meia falha em tentativas patéticas de suicídio
diz ao
pai de Suleiman que já sabe como derrotar os israelenses:
quando ele fica bêbado, vê os aviões inimigos a uma distância em que pode derrubá-los
com a
mão. A anedota é um desses momentos do filme em
que o
humor serve de contraponto para os diagnósticos de
impotência
(há também a inesquecível cena em que
um tanque
de guerra acompanha de perto cada movimento de um rapaz que fala ao
celular em frente à sua casa). Os projetos motores
progressivamente se desfazem, até se resumirem a um olhar
anestesiado que se fixa num cotidiano feito de quase nenhuma
liberdade, uma vida reduzida a pequenos nadas, uma comunidade
disfuncional pautada por relações de
vizinhança
que se afirmam mais pelo estranhamento do que pelo convívio.
No
segmento final do filme, os olhares de Suleiman e de sua mãe
já não estão conectados a nenhuma
possibilidade
de ação concreta. Antes havia pelo menos a
pescaria
noturna de seu pai, ação voltada para o horizonte
vazio
daquele mar totalmente às escuras, mas ainda assim uma
ação.
Seu pai é um personagem muito forte, aliás. Numa
das
cenas mais impressionantes do filme, ele desafia o perigo e vai
até
um caminhão do exército que tombou numa ponte,
já
em chamas. Quando chega no caminhão e avista o soldado
ferido
que salvará em gesto heróico, há um
contra-plongé dele com o céu azul ao fundo e a fumaça do
incêndio
se acumulando ao seu redor. O plano, mesmo em meio à
estranheza, tem um quê de glorioso, traz o peso daqueles
planos
que imortalizaram heróis do cinema clássico (e o
ator
de fato tem pinta de galã).
Quando
Suleiman mostra sua mãe já velhinha, vez ou outra
ele
se detém na imagem dela sentada na varanda olhando uma
paisagem que, se trocada por uma pintura panorâmica,
não
alteraria em nada a expressão do olhar. A um povo sem
espaço,
resta esse olhar sem horizonte, sem perspectiva. O eixo de onde se constrói o
ponto de vista da parte final do filme é um corpo amputado
do
espaço, um olhar distanciado, que rende
ligações
improdutivas entre plano e contraplano. O próprio Suleiman
é
só um visitante, está de passagem, estrangeiro em
sua
terra de origem. Na última cena, ele senta no banco de um
hospital e observa toda aquela movimentação que
lhe é
absolutamente estranha. Em algum lugar entre a tristeza e a persistência desse olhar de exilado, Suleiman tenta construir
seu cinema.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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