O QUE RESTA DO TEMPO
Elia Suleiman, The Time That Remains, Palestina/França, 2009

Elia Suleiman finalmente fecha sua trilogia – iniciada em 1996 com Crônica de uma Desaparição – sobre o conturbado cotidiano de um povo sem território próprio. Ele remonta a 1948, data da criação do Estado de Israel, e encena momentos críticos da relação palestinos-israelenses naquela e em outras épocas, até chegar aos dias de hoje, reforçando ainda mais o aspecto pessoal de seu envolvimento com o tema, já que faz aqui uma pequena crônica familiar autobiográfica.

O Que Resta do Tempo, como o anterior Intervenção Divina, é um filme em esquetes. Não há uma articulação dramática unindo uma seqüência à outra. O verdadeiro ligante das cenas é um mesmo sentimento que perpassa todas as épocas mostradas: um sentimento de violência latente, de repetição, de falta de projetos, de uma vida encerrada no presente, absorvida na tarefa de se amoldar ao cotidiano de um território ocupado. O enredo sem progressão dramática e sem arquitetura narrativa propriamente dita é um desdobramento da principal questão do filme. Na primeira parte, durante o início da ocupação, o que vemos são ruas desertas, onde passam apenas jipes do exército israelense anunciando o toque de recolher. O raccord entre uma rua e outra, entre uma porção e outra do espaço, começa a se mostrar defeituoso. Suleiman filma a desintegração de um lugar, a dissolução dos cimentos comunitários que mantinham sua coerência. Isso já se revela na cena em que homens sentados à mesa de um café, localizado numa esquina que sempre reaparece no filme, desorientam um soldado com suas informações, fazendo-o hesitar entre um caminho e outro: o espaço agora está acometido por um defeito de sentido e de direção. Essa cena, de decupagem complexa, é a apresentação perfeita de uma problemática espacial que resume o filme.

O problema enfrentado pelos palestinos é basicamente um problema de espaço. “O cinema, arte do espaço”, lembrando aqui o título de um importante texto de Rohmer coincidentemente escrito em 1948, fornece um meio privilegiado para abordar tal problema. E existe um gênero que, mais do que qualquer outro, trata precisamente das relações de confusão entre um corpo e um espaço: o burlesco. No caso de Suleiman, um burlesco minimalista. Ao invés da folia e da hiperatividade do burlesco americano (Keaton, Chaplin, Lloyd), Suleiman tende à imobilidade. Ele ainda tenta algo no sentido da mirabolância física, fazendo um salto com vara e transpondo o muro de segregação construído por Israel, mas o ato é derrisório, um devaneio. A partir do momento em que o espaço deixa de se apresentar como uma zona de influência do corpo, como uma área de atuação possível, as relações que daí derivam são relações de introversão e encarceramento. Privado de seu impulso expansivo, o corpo burlesco se reduz a seu elemento mais neutro: a face inalterável do comediante, o olhar paralisado diante das coisas.

Os recorrentes quadros dentro do quadro não deixam dúvida quanto à redução do espaço a uma mera visão de alguma coisa, espaço inacessível à ação. A certa altura, o vizinho que volta e meia falha em tentativas patéticas de suicídio diz ao pai de Suleiman que já sabe como derrotar os israelenses: quando ele fica bêbado, vê os aviões inimigos a uma distância em que pode derrubá-los com a mão. A anedota é um desses momentos do filme em que o humor serve de contraponto para os diagnósticos de impotência (há também a inesquecível cena em que um tanque de guerra acompanha de perto cada movimento de um rapaz que fala ao celular em frente à sua casa). Os projetos motores progressivamente se desfazem, até se resumirem a um olhar anestesiado que se fixa num cotidiano feito de quase nenhuma liberdade, uma vida reduzida a pequenos nadas, uma comunidade disfuncional pautada por relações de vizinhança que se afirmam mais pelo estranhamento do que pelo convívio.

No segmento final do filme, os olhares de Suleiman e de sua mãe já não estão conectados a nenhuma possibilidade de ação concreta. Antes havia pelo menos a pescaria noturna de seu pai, ação voltada para o horizonte vazio daquele mar totalmente às escuras, mas ainda assim uma ação. Seu pai é um personagem muito forte, aliás. Numa das cenas mais impressionantes do filme, ele desafia o perigo e vai até um caminhão do exército que tombou numa ponte, já em chamas. Quando chega no caminhão e avista o soldado ferido que salvará em gesto heróico, há um contra-plongé dele com o céu azul ao fundo e a fumaça do incêndio se acumulando ao seu redor. O plano, mesmo em meio à estranheza, tem um quê de glorioso, traz o peso daqueles planos que imortalizaram heróis do cinema clássico (e o ator de fato tem pinta de galã).

Quando Suleiman mostra sua mãe já velhinha, vez ou outra ele se detém na imagem dela sentada na varanda olhando uma paisagem que, se trocada por uma pintura panorâmica, não alteraria em nada a expressão do olhar. A um povo sem espaço, resta esse olhar sem horizonte, sem perspectiva. O eixo de onde se constrói o ponto de vista da parte final do filme é um corpo amputado do espaço, um olhar distanciado, que rende ligações improdutivas entre plano e contraplano. O próprio Suleiman é só um visitante, está de passagem, estrangeiro em sua terra de origem. Na última cena, ele senta no banco de um hospital e observa toda aquela movimentação que lhe é absolutamente estranha. Em algum lugar entre a tristeza e a persistência desse olhar de exilado, Suleiman tenta construir seu cinema.

Luiz Carlos Oliveira Jr.