NO MEU LUGAR
Eduardo Valente, Brasil, 2009

No Meu Lugar mete a mão num vespeiro. Mas usa luvas grossas que se traduzem na estrutura, no eficaz jogo cênico com o fora-de-campo, no sistema retórico construído na montagem. O acesso frontal e direto às determinações materiais de um ato violento não tem lugar no filme. É muito mais fácil, aliás, saber o que o filme não quer do que sondar o que ele realmente quer. Sabemos que ele rechaça uma visão de sociedade totalizante e sublinha a pessoalidade do ponto de vista. Sabemos que ele rechaça também, desde os primeiros minutos, uma metafísica da violência fundada sobre confrontos maniqueístas. Em se tratando da violência urbana no Rio de Janeiro, é uma premissa a se louvar. O filme foge das explicações simplórias. Por outro lado, não as rebate com uma visão dialética do processo social concreto que desencadeia a violência. Falta o contracampo, o lugar do outro, já que este também foi transformado em “meu lugar”. Com essa suavização da alteridade, o filme ganha tanto quanto perde. O tempo pré-tragédia, centrado na figura carismática do rapaz entregador que cometerá o assalto, é o mais comprometido nessa construção, e perde o sentido político da tensão entre as classes. Talvez fosse mais interessante mostrar a trincheira, e não encobri-la com uma bolha de afetividade que a violência virá estourar pelas conjunções infelizes do acaso.

A narrativa planifica o drama, coloca os personagens no mesmo relevo. O verdadeiro objeto do filme é um tempo de convivência que ele instala entre nós, espectadores, e todas as partes envolvidas na ação polarizadora (o assalto que terminou em tragédia). Esse é o aspecto mais importante e mais bem sucedido de No Meu Lugar. As cenas na casa são as mais significativas, tanto as com a família, já passado algum tempo após a desgraça, quanto as com o policial retornando ao local, seja para reconstituir o crime (ainda no começo do filme, numa ótima cena), seja para passar a noite e ter um face-a-face com o fantasma do dono da casa. Essas cenas são as que melhor elaboram o tal convívio espectador-filme, aquele impasse temporal em que não é possível nem reverter o passado nem ignorar o presente. A casa é de certo modo um acúmulo dos três tempos narrativos, assim como a família de classe média alta é o núcleo para o qual converge toda a energia liberada pela eclosão da violência. É sobre ela que recaem as consequências últimas, o tempo pós-pós-tragédia. O “no meu lugar” do filme se faz mais forte ali.

A composição em diferentes estratos não é só efeito de montagem, há na desarticulação da lógica causal uma seriedade perante a complexidade do tema. Mas a estrutura prejudica um pouco o filme. Não é coincidência o fato de que uma das grandes cenas, quando é conseguido um acesso privilegiado aos atores e o espectador desenvolve por eles uma empatia tão gratuita quanto verdadeira, é aquela conversa do rapaz com o tio que está tentando parar de beber, justamente a cena que não desempenha nenhuma função imediata na construção narrativa. Em alguns momentos há uma mão discursiva claramente induzindo o espectador a criar essa empatia pelos personagens (exemplo: o rapaz e a namorada passeando de bicicleta ao som de música sentimental). O olhar está demasiadamente preocupado em mostrar que é carinhoso e que sua tarefa é nos convidar a observar sem julgar esses seres humanos em sua complexa relação entre si. Naquele momento da conversa com o tio, quando o filme esqueceu que estava fincado sobre um tema específico e uma base discursiva sólida, a afetividade se criou espontaneamente. Melhor assim.

No Meu Lugar é um filme cujos bons momentos estão associados a esses encontros de personagens que Valente transforma em cenas vivas e verdadeiras, com nuances de gestos e falas que ainda nos fazem crer que um filme brasileiro, ao abordar as realidades incontornáveis do país, é capaz de enxergar além do óbvio e do preconceito.

Luiz Carlos Oliveira Jr.