No
Meu Lugar
mete a mão num vespeiro. Mas usa luvas grossas que se
traduzem
na estrutura, no eficaz
jogo cênico
com o fora-de-campo, no sistema retórico
construído na
montagem. O acesso frontal e direto às
determinações
materiais de um ato violento não tem lugar no filme.
É
muito mais fácil, aliás, saber o que o filme
não
quer do que sondar o que ele realmente quer. Sabemos que ele
rechaça
uma visão de sociedade totalizante e sublinha a pessoalidade
do ponto de vista. Sabemos que ele rechaça
também,
desde os primeiros minutos, uma metafísica da
violência
fundada sobre confrontos maniqueístas. Em se tratando da
violência urbana no Rio de Janeiro, é uma premissa
a se
louvar. O filme foge das explicações
simplórias.
Por outro lado, não as rebate com uma visão
dialética
do processo social concreto que desencadeia a violência.
Falta
o contracampo, o lugar do outro, já que este
também foi
transformado em “meu lugar”. Com essa
suavização
da alteridade, o filme ganha tanto quanto perde. O tempo
pré-tragédia, centrado na figura
carismática do
rapaz entregador que cometerá o assalto, é o mais
comprometido nessa construção, e perde o sentido
político da tensão entre as classes. Talvez fosse
mais
interessante mostrar a trincheira, e não encobri-la com uma
bolha de afetividade que a violência virá estourar
pelas
conjunções infelizes do acaso.
A
narrativa planifica o drama, coloca os personagens no mesmo relevo. O
verdadeiro objeto do filme é um tempo de
convivência que
ele instala entre nós, espectadores, e todas as partes
envolvidas na ação polarizadora (o assalto que
terminou
em tragédia). Esse é o aspecto mais importante e
mais
bem sucedido de No Meu Lugar.
As cenas na casa são as mais significativas, tanto as com a
família, já passado algum tempo após a
desgraça,
quanto as com o policial retornando ao local, seja para reconstituir
o crime (ainda no começo do filme, numa ótima
cena),
seja para passar a noite e ter um face-a-face com o fantasma do dono
da casa. Essas cenas são as que melhor elaboram o tal
convívio
espectador-filme, aquele impasse temporal em que não
é
possível nem reverter o passado nem ignorar o presente. A
casa
é de certo modo um acúmulo dos três
tempos
narrativos, assim como a família de classe média
alta é
o núcleo para o qual converge toda a energia liberada pela
eclosão da violência. É sobre ela que
recaem as
consequências últimas, o tempo
pós-pós-tragédia.
O “no meu lugar” do filme se faz mais forte ali.
A
composição em diferentes estratos não
é
só efeito de montagem, há na
desarticulação
da lógica causal uma seriedade perante a complexidade do
tema.
Mas a estrutura prejudica um pouco o filme. Não é
coincidência o fato de que uma das grandes cenas, quando
é
conseguido um acesso privilegiado aos atores e o espectador
desenvolve por eles uma empatia tão gratuita quanto
verdadeira, é aquela conversa do rapaz com o tio que
está
tentando parar de beber, justamente a cena que não
desempenha
nenhuma função imediata na
construção
narrativa. Em alguns momentos há uma mão
discursiva
claramente induzindo o espectador a criar essa empatia pelos
personagens (exemplo: o rapaz e a namorada passeando de bicicleta ao
som de música sentimental). O olhar está
demasiadamente
preocupado em mostrar que é carinhoso e que sua tarefa
é
nos convidar a observar sem julgar esses seres humanos em sua
complexa relação entre si. Naquele momento da
conversa
com o tio, quando o filme esqueceu que estava fincado sobre um tema
específico e uma base discursiva sólida, a
afetividade
se criou espontaneamente. Melhor assim.
No
Meu Lugar é
um filme cujos bons momentos estão associados a esses
encontros de personagens que Valente transforma em cenas vivas e
verdadeiras, com nuances de gestos e falas que ainda nos fazem crer
que um filme brasileiro, ao abordar as realidades
incontornáveis
do país, é capaz de enxergar além do
óbvio
e do preconceito.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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