É quase impossível deixar de lado Oito e Meio de
Fellini ao escrever sobre Nine. Não porque um é refilmagem do outro, mas
porque Rob Marshall, que havia enganado alguns com Chicago e afastado
qualquer um que se reconheça como crítico em Memórias de uma Gueixa, faz
o possível para vulgarizar cada nuance do filme original. É ele quem faz
questão de puxar a comparação, como quem quisesse profanar território sagrado,
ou bancar o moleque irreverente.
Não se trata de prevenir o mundo contra o fantasma das refilmagens.
Muito equívoco já se cometeu nesse sentido, por gente que desconhece a história
do cinema, e portanto não sabe que o M de Losey é tão bom ou melhor que
o de Lang, que as refilmagens que Sirk realizou dos filmes de Stahl eram quase
sempre superiores, enfim, que uma boa parte desta arte tão mal defendida se fez
com boas releituras de idéias. Tampouco é o caso de colocar Fellini, esse
diretor que não consegue ser unanimidade em lugar algum, muito menos aqui na
Contracampo – injustamente, diria eu – num pedestal inalcançável, à prova de
brutamontes como Marshall. O maior dos diretores pode muito bem ter uma idéia
reaproveitada anos depois com habilidade por outro, menos qualificado. É a
vida.
Trata-se, tão somente, de rechaçar o monumento à vulgaridade
construído em Nine com extrema... vulgaridade. Bons tempos em que
cineastas como Wilder realizavam odes irônicas e inteligentes ao vulgar que há
em todos nós. Um cineasta como Marshall, quando muito, pode chegar às raias do
cinismo involuntário em cenas como a da mãe reprovando o filho que via com
amigos as pernas de uma prostituta grosseira na praia. Em Nine, a
prostituta não é tão grosseira quanto a de Fellini, mas a cena toda sofre de
uma limitação estética de dar dó, com cenários realistas, padres insípidos – em
oposição ao cenário grandioso e irreal, pois filtrado pela mente de uma
criança, e aos padres andróginos de Fellini. Marshall parece piscar o olho
dizendo: "vejam só, esta é a maneira americana de filmar". Pobres
americanos, sendo representados por diretor assim. A idéia de Itália que fala
inglês macarrônico, transpira frivolidade e arrota frases feitas e mulheres
fáceis também é mal exposta pelo diretor, se é que há maneira se de expor bem
tal idéia. São inúmeras as seqüências musicais, quase todas abaixo da crítica,
chegam a constranger.
Daria para traçar comparações mil entre os dois filmes,
sempre observando que Marshall ora explica o que Fellini deixava nas
entrelinhas, ora explicita o que era deixado ao imaginário do espectador, ora,
mais comumente, traduz riqueza visual e estética apuradas por pobreza de
espírito, pura e simplesmente. Mas seria desperdiçar tempo e paciência com um
filme pavoroso assim. Melhor deixar para o leitor imaginar, que é justamente o
que Marshall não permite em seu filme.
E como é que fica Daniel Day-Lewis nessa? Bem, seria o caso
de recomendar mais cautela nas próximas escolhas, pois pelo visto seu senso
crítico foi afetado pelas ambições artísticas de sua mulher, Rebecca Miller.
Sérgio Alpendre
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