NINE
Rob Marshall, Nine, EUA/Itália, 2009

É quase impossível deixar de lado Oito e Meio de Fellini ao escrever sobre Nine. Não porque um é refilmagem do outro, mas porque Rob Marshall, que havia enganado alguns com Chicago e afastado qualquer um que se reconheça como crítico em Memórias de uma Gueixa, faz o possível para vulgarizar cada nuance do filme original. É ele quem faz questão de puxar a comparação, como quem quisesse profanar território sagrado, ou bancar o moleque irreverente.

Não se trata de prevenir o mundo contra o fantasma das refilmagens. Muito equívoco já se cometeu nesse sentido, por gente que desconhece a história do cinema, e portanto não sabe que o M de Losey é tão bom ou melhor que o de Lang, que as refilmagens que Sirk realizou dos filmes de Stahl eram quase sempre superiores, enfim, que uma boa parte desta arte tão mal defendida se fez com boas releituras de idéias. Tampouco é o caso de colocar Fellini, esse diretor que não consegue ser unanimidade em lugar algum, muito menos aqui na Contracampo – injustamente, diria eu – num pedestal inalcançável, à prova de brutamontes como Marshall. O maior dos diretores pode muito bem ter uma idéia reaproveitada anos depois com habilidade por outro, menos qualificado. É a vida.

Trata-se, tão somente, de rechaçar o monumento à vulgaridade construído em Nine com extrema... vulgaridade. Bons tempos em que cineastas como Wilder realizavam odes irônicas e inteligentes ao vulgar que há em todos nós. Um cineasta como Marshall, quando muito, pode chegar às raias do cinismo involuntário em cenas como a da mãe reprovando o filho que via com amigos as pernas de uma prostituta grosseira na praia. Em Nine, a prostituta não é tão grosseira quanto a de Fellini, mas a cena toda sofre de uma limitação estética de dar dó, com cenários realistas, padres insípidos – em oposição ao cenário grandioso e irreal, pois filtrado pela mente de uma criança, e aos padres andróginos de Fellini. Marshall parece piscar o olho dizendo: "vejam só, esta é a maneira americana de filmar". Pobres americanos, sendo representados por diretor assim. A idéia de Itália que fala inglês macarrônico, transpira frivolidade e arrota frases feitas e mulheres fáceis também é mal exposta pelo diretor, se é que há maneira se de expor bem tal idéia. São inúmeras as seqüências musicais, quase todas abaixo da crítica, chegam a constranger.

Daria para traçar comparações mil entre os dois filmes, sempre observando que Marshall ora explica o que Fellini deixava nas entrelinhas, ora explicita o que era deixado ao imaginário do espectador, ora, mais comumente, traduz riqueza visual e estética apuradas por pobreza de espírito, pura e simplesmente. Mas seria desperdiçar tempo e paciência com um filme pavoroso assim. Melhor deixar para o leitor imaginar, que é justamente o que Marshall não permite em seu filme.

E como é que fica Daniel Day-Lewis nessa? Bem, seria o caso de recomendar mais cautela nas próximas escolhas, pois pelo visto seu senso crítico foi afetado pelas ambições artísticas de sua mulher, Rebecca Miller.

Sérgio Alpendre