Quantos filmes poderíamos dizer que são feitos hoje sobre um
assunto? Não sobre um tópico urgente qualquer, ou sobre algum tema em moda, mas
sobre um assunto mesmo, uma conjugação entre acontecimentos e questões deles
derivadas, na qual os dados expostos carregariam consigo uma significação. Se
filmes sobre um estilo de filmar, ou sobre uma forma de atuar ou, ainda, sobre simplesmente
comunicar uma narrativa abundam, filmes sobre um assunto se tornaram algo
absolutamente raro.
Invictus causa, de início, um estranhamento: parece
sem alma, mecânico, ilustrativo até. Mas, aos poucos, sua força se revela: não
se trata de um filme sobre um personagem ou sobre uma história a ser contada,
mas um filme sobre um assunto. (Seria uma tentativa de fazer um melodrama sobre
um momento histórico?) Elaborando sua argumentação paulatinamente na montagem,
Clint Eastwood escreve uma espécie de ensaio (um quase-manifesto?) sobre
estratégias de liderança, superação de barreiras (físicas, sociais, políticas)
e abdicação de si em nome de um ideal. Em suma, sobre a inevitável conjugação
entre público e privado e seus desdobramentos.
Mandela não é construído como o personagem histórico por
excelência, grandioso (em suas qualidades e defeitos), senhor de suas ações e
pivô de tudo o que acontece ao seu redor. O Mandela de Eastwood é uma figura ao
mesmo tempo humana e simbólica que irradia a energia da transformação pela
forma como se porta e por sua escolha de palavras (ou seja, pelo discurso). Ele
é o portador de uma mensagem – não seu emissor – e o grande jogador (um estrategista?)
capaz de mover as peças com cuidado para garantir o funcionamento de uma intrincada
engrenagem. O paralelo entre política e esporte não é gratuito nem acidental: o
moral de um jogador é essencial para uma boa performance e a coordenação de
ações que leva a uma vitória em campo não são fáceis de mapear. O grande líder
é aquele que pensa, antes de tudo, no quesito humano, que é capaz, ao invés de
simplesmente enunciar ordens, guiar e orientar as mentalidades para que estas
se transmutem em ações construtivas a médio e longo prazo.
Se a aura de “tratado” paira sobre os filmes de Eastwood desde Sobre Meninos e Lobos, o termo ganha aqui outras implicações, pela
ausência justamente de um fio condutor evidente para a narrativa (o dilema de
um personagem ou um impasse específico). A mensagem difusa (Eastwood nunca nos
entregaria um simples “panfleto”) que garante unidade a Invictus discorre sobretudo a respeito da complexidade daquilo a que conferimos o termo
redutor de “política”. Basicamente, o que ele diz é que o tecido social possui
tantas reentrâncias que a estrutura rígida do que entendemos como governo não é
apta a geri-lo e que a História é moldada por enormes pequenas ondas de
humores, que se produzem dentro das casas, nos bairros, nos clubes, nas
emissoras de TV, enfim, nas diversas esferas dinâmicas que compõem uma
sociedade. E que a cultura de um país é algo que se furta a circunscrições por
estar sujeita ao movimento incessante do tempo.
Trata-se, de certa forma, de um desdobramento de algumas
questões presentes em Gran Torino, apesar dos dois filmes serem razoavelmente
antípodas em termos narrativos. Invictus progride eternamente, quase
ignorando plot-points, avançando em suas conexões de sentido e em sua
construção de um todo. O que de início são movimentos caóticos de corpos
num gramado, torna-se aos poucos um jogo dotado de regras e funcionamento
ordenado; o que eram dois campos opostos (como o plano de abertura faz questão
de escancarar), contaminam-se lentamente até tornarem-se um só: os brancos e o
rúgbi e os negros e Mandela.
O desfecho do campeonato é balanceado pelo costurar de
diversos “núcleos” que emergiram como ilustrações de espectadores pelo país:
torcedores negros em um bar, policiais brancos ouvindo o rádio acompanhados de
um menino negro, uma família de negros na sala de estar. A união destes grupos
pela montagem corresponde ao nascimento de uma idéia de nação. Trata-se, pois,
de um filme sobre o geral, e não sobre o particular. Sobre um cenário e não
sobre pessoas. E, o que é mais fascinante: um filme que existe para dar conta
de um discurso sem transmiti-lo tão e somente por uma “moral da história”. Pois
a moral para Eastwood, como bem sabemos, é uma questão de postura e de pequenos
gestos. Da responsabilidade sobre o todo que cada indivíduo carrega
inexoravelmente.
Tatiana Monassa
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