GUERRA AO TERROR
Kathryn Bigelow, The Hurt Locker, EUA, 2008

A guerra promovida por papai Bush no início da década de 1990 ficou conhecida como a guerra da CNN. A emissora de notícias viveu seu momento máximo naqueles dias em que acompanhávamos pela TV os desempenhos dos mísseis scud e patriot, bem como os clarões que assombravam a noite oriental. Havia até torcida e clima de Copa do Mundo.

Bush filho quis encerrar o assunto, cometendo o mesmo erro do pai e invadindo uma terra cuja cultura desconhece. Mas sua guerra não foi predominantemente filmada por profissionais. Pelo menos não foram eles os detentores das imagens mais fortes, e sim os iraquianos munidos de câmeras amadoras e conexão com a internet. A guerra ao terror deste século XXI foi a guerra do YouTube.

Kathryn Bigelow, diretora irregular, com belos filmes no currículo (Pointbreak - Caçadores de Emoção, Jogo Perverso), mas também algumas coisas inexplicáveis (Near Dark, Strange Days) foi muito feliz ao associar a famigerada câmera tremida a essa idéia em Guerra ao Terror. Se quase todos podem filmar, a qualidade dessas imagens já não é mais a mesma das providas por pessoas treinadas para isso, como bem mostrou o problemático Pacific, de Marcelo Pedroso, na Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro de 2010. Esconde-se o profissional, surge o pseudo-jornalista conectado ao urgente pela tecnologia. Mas esse jornalista de ocasião não pode estar sempre presente. Nem mesmo o mais enxerido dos filmadores teria coragem de se aproximar de uma bomba no exato momento em que está sendo desmontada, e é nesse momento que temos, finalmente e graças a uma trapaça da diretora, bom cinema. Enquanto vemos, em silêncio enervante, o Sargento William James cortar alguns fios que podem ser os errados, não conseguimos pensar em outra coisa que não a iminente explosão. A tensão deixa de vir da câmera que chacoalha como se o operador sofresse de alguma abstinência tóxica e passa a vir da cena, com a câmera sendo o olhar privilegiado que temos diante dos momentos de maior impacto. Por isso é notável a habilidade de estrategista de Bigelow, que se apropria, logo no início, do princípio que Cronenberg aperfeiçoou em Scanners – uma cabeça explode nos primeiros minutos, fazendo com que fiquemos tensos sempre que os scanners do título entram em ação. Em Guerra ao Terror, acompanhamos uma detonação por celular ainda no prólogo. É uma explosão bárbara, em câmera lenta, impressionante em seu balé de pedras e estilhaços pelo ar. Uma explosão certamente inesquecível pelo espectador envolvido já naquele momento. Tal envolvimento, por sinal, é mais um sinal da habilidade da diretora em controlar tensões. Pessoa alguma ficaria indiferente aos gritos desesperados para que um iraquiano largue o celular. Indiferenças combatidas com precisão, temos um xeque-mate. Essa explosão jamais será esquecida durante toda a projeção, e a tensão está garantida e amplificada pelos testemunhos silenciosos de iraquianos, alguns com câmeras ou escondendo as mãos, numa atmosfera de terror que diz respeito à maneira como os americanos (os soldados, mas não só) lidam com o desconhecido, o árabe, o iraquiano.

Graças a essa trapaça, Bigelow pode também centrar o drama no personagem mais suicida e interessante do filme, o já mencionado sargento James (vivido pelo agora celebrado ator Jeremy Renner), especialista em desarmar bombas modernas. Em alguns momentos seu drama não corresponde às imagens trôpegas que vemos na tela. A sensação é de estarmos diante de algum veículo que passa por uma rua toda esburacada, nossa visão é a mesma de um motorista em um rally. Sei que é moda filmar assim, e este é um dos raros casos em que a tremedeira absurda, que privilegia sensações, mas sonega entornos, descontextualizando a ação do espaço cênico, é justificável. Mas Bigelow exagera em alguns momentos, tornando a experiência mais nauseante do que especificamente tensa. É uma ressalva que se pode fazer a Guerra ao Terror. Ressalva a que os detratores não se apegam com firmeza, e que os entusiastas praticamente ignoram.

Os trunfos, contudo, superam os equívocos – e que o leitor me perdoe pelo clichê. A opção por seguir o sargento de perto se revela o maior trunfo após o período de sua patrulha no Iraque, quando acompanhamos seu retorno ao lar, com mulher e filho pequeno, onde o máximo de emoção a que parece ser submetido reside na hora de escolher cereais num supermercado (azar do homem que compra uma mercadoria diferente da que sua mulher pensava) ou de remover as folhas que entopem as calhas do telhado. É quando faz todo sentido a frase inicial, que o filme faz questão de assinalar na abertura e no plano final, plano combatido por muitos como uma ode ao militarismo (o que é uma tremenda bobagem): "a guerra é uma droga".

Sérgio Alpendre