HOTEL ATLÂNTICO
Suzana Amaral, Hotel Atlântico, Brasil, 2009

O personagem de Hotel Atlântico não possui nome, como também não possui uma casa, família, ocupação, pertences nem nada. Ele é um ator, e o filme é sobre sua jornada pessoal por lugares diversos ao lado de outros personagens diversos. Um ator aqui é como um não-ser, alguém que em si não é nada e que vive de representar papéis ao sabor de suas andanças pelo mundo. A própria escolha por Júlio Andrade para o papel principal revela um pouco a idéia do filme: é um ator com um rosto e corpo neutros. É o mundo que se apresenta e que dá ao personagem seu caráter e seu papel – de padre, de amigo, de amante ou de perneta.

Hotel Atlântico tem duas ou três boas cenas, a saber: quando o protagonista se vê diante de um desfile de propaganda política na rua, vendo que ele próprio havia se tornado (ou pelo menos que haviam tentado torná-lo) um símbolo político para o médico que o havia operado; quando o mesmo personagem, enquanto conversa com Sebastião (João Miguel) e este diz que deseja ir embora, por um instante praticamente implora para que ele, um estranho, quase desconhecido, o leve embora dali. São as únicas cenas em que o personagem do filme de Suzana Amaral parece de fato representar um papel, onde ele parece de fato afetado pelos rodopios de um mundo trágico espiralado – ou, dito de outra forma, quando o mundo parece ter enfim vencido, superado o personagem, subjugando-o a uma posição que ele, o ator, não pode mais controlar.

(As duas cenas de sexo também são bastante espirituosas, ainda que a primeira seja filmada de forma exageradamente pudica – visto que a jocosidade jamais excluiu o erotismo, que inclusive é um elemento caro à obra de João Gilberto Noll, de quem o filme é adaptado. Mas Suzana Amaral preferiu varrê-lo para baixo do tapete – voltaremos depois a isso)

O maior problema do filme de Suzana Amaral é que a diretora se apega a seu conceitualismo oco, do artista que se faz a partir do mundo, deixando-se impregnar por ele. E é somente quando os danos físicos chegam, transformando o personagem, que este mundo começa a se manifestar de forma mais intensa e grave. A perda da perna transfigura o personagem, e ele a partir daí se torna parte irrecuperável do mundo. O pouco impacto dos primeiros eventos do filme, quando o personagem vê uma passageira morrer ao seu lado no ônibus, sofre uma emboscada e convive com outros personagens, se dá justamente porque é quando o protagonista vive plenamente sua condição de não-ser: tudo soa frouxo porque não há um pólo de identificação constituído entre espectador e personagem.

Em literatura, esse “problema” suposto de ponto-de-vista se resolve com a escolha das palavras. Em cinema, com a escolha do lugar da câmera. Mas tom vertiginoso típico obra de Noll, que se instala a partir de um materialismo que se transborda e se perde no tempo e na alma, jamais aparece por aqui. Tudo em Hotel Atlântico soa sempre excessivamente controlado e limpo – os fades vão e vêm, acertando as cenas e apagando as arestas deixadas pelos planos. Os acontecimentos como que se perdem neles mesmos. O tempo não possui rastros, ele é uma mera construção. O final do filme, com a volta a uma cena do início, retorno cíclico ao mar, pode então até dar a idéia de um mundo terrível (a cena é triste, certamente), no qual a errância só conduz ao mesmo lugar, somado à autodestruição. Mas é um mundo cuja ferocidade definitivamente Suzana Amaral não parece disposta a encarar frente a frente, para além da idéia, com seu “cinema de qualidade” – pudico (ou não-gratuito, não-escatológico, bem ao contrário da literatura de Noll), conceitualmente embasado, de fotografia neutro-acinzentada e planos distanciados.


Calac Nogueira