Na seqüência inicial de Bastardos Inglórios, em
frente a uma casinha numa colina uma moça estende um lençol no varal e, ao som
de motor de um carro que se aproxima, o afasta, avistando então o jipe que traz
o comandante nazista Hans Landa e seus soldados à sua residência. O cenário e a
aproximação gradual do inimigo vindo de outras bandas para adentrar um recanto
pacífico nos remetem ao faroeste, e o jogo entre o primeiro plano e o fundo da
imagem nos faz pensar em Sergio Leone. No entanto, as semelhanças param por aí,
e o filme prossegue para revelar um cineasta em completo domínio da sua arte,
na qual as referências e as imagens “de segundo grau” foram incorporadas a tal
ponto que sua origem já se apaga no horizonte.
Da mesma forma, inútil tentar buscar em Bastardos
Inglórios a narrativa do filme homônimo de Enzo Castellari que lhe serviu
de base. Tarantino possui um universo em ebulição, no qual nada permanece tal
como é. O grupo liderado por Brad Pitt não é um bando de soldados desertores
que age de acordo com a conveniência, mas uma gangue de “justiceiros” selvagens
que, encarnando o espírito dos índios americanos que se tornaram insígnia fácil
no panteão do cinema clássico, sai colecionando escalpos de nazistas. O
deslocamento é a uma só vez ideológico e histórico-cinematográfico. O homem
branco incorporou a barbárie como método e os heróis perderam qualquer senso de
justiça, apenas agem em retaliação aventuresca, sem sombra de motivações além
de uma missão brancaleônica a cumprir. Os nazistas, por sua vez, são seres astutos,
cuja sagacidade lunática os torna meros executores de ações, guiados pela
excelência e sem traço de uma emoção qualquer. Por fim, torna-se impossível
distinguir entre a brutalidade de uns e de outros.
A detentora do verdadeiro status de herói é, portanto,
Shosanna. Aquela que cinematograficamente consegue escapar da chacina de sua
família. Aquela cuja inteligência é capaz de armar um plano de gênio para
eliminar o alto escalão do Terceiro Reich. Uma amante do cinema sobre todas as
coisas. Shosanna é a heroína improvável, a personificação das ações impossíveis
que nos fazem tanto amar a sétima arte. Porque, afinal, é pelo cinema que tudo se processa em Tarantino. Sua história rocambolesca só poderia,
portanto, desembocar numa sala de cinema. E o entrecruzamento entre o filme de
propaganda nazista, o uso da tela para a projeção de uma mensagem de vingança
por Shosanna e o próprio Bastardos Inglórios como veículo para uma
aventura romanesca avizinhada de uma epopéia fantástica revelam uma celebração
do meio para além da referencialidade sempre tão destacada em sua obra.
Em Bastardos Inglórios, Tarantino parece trabalhar
elementos diversos cada um a seu turno de modo a potencializá-los. E o formato
em capítulos apenas facilitaria isto. Pequenos módulos narrativos, eles
permitem que o cineasta condense conflitos, tensões e distensões, tornando-os
mais límpidos e proeminentes à luz do filme inteiro. As longas conversas, por
exemplo, não se dissipam em força como em À Prova de Morte, elas são nós
precisos em pontos-chave da narrativa – que, por ser episódica, concede ainda
mais valor aos tour-de force. Só o essencial subsiste. Ainda que o
essencial para Tarantino seja repleto de excessos – quase sempre maravilhosos.
Cada passo em direção à inverossimilhança ou ao estiramento de uma situação (como
o bate-papo no restaurante entre Hans Landa e Shosanna, ou a conversa no bar
entre os conspiradores e um soldado alemão) é em seu cinema motivo de deleite em
consonância com a identificação de uma consciência extra-fílmica a orquestrar o
que é visto. Este dom, de claramente expor a construção e condução da narrativa
sem em nenhum momento quebrar o pacto com a ficção e o envolvimento do
espectador com ela, é raro e corresponde à sua habilidade em costurar citações de
forma a criar um pastiche absolutamente autêntico. Pela força impressionante
que suas marcas autorais adquirem em Bastardos Inglórios e pelo frescor renovado
que seu estilo mostra-se capaz de apresentar, podemos dizer sem medo que
Tarantino fez um dos melhores filmes dos últimos tempos.
Tatiana Monassa
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