BASTARDOS INGLÓRIOS
Quentin Tarantino, Inglorious Basterds, EUA/Alemanha, 2009

Na seqüência inicial de Bastardos Inglórios, em frente a uma casinha numa colina uma moça estende um lençol no varal e, ao som de motor de um carro que se aproxima, o afasta, avistando então o jipe que traz o comandante nazista Hans Landa e seus soldados à sua residência. O cenário e a aproximação gradual do inimigo vindo de outras bandas para adentrar um recanto pacífico nos remetem ao faroeste, e o jogo entre o primeiro plano e o fundo da imagem nos faz pensar em Sergio Leone. No entanto, as semelhanças param por aí, e o filme prossegue para revelar um cineasta em completo domínio da sua arte, na qual as referências e as imagens “de segundo grau” foram incorporadas a tal ponto que sua origem já se apaga no horizonte.

Da mesma forma, inútil tentar buscar em Bastardos Inglórios a narrativa do filme homônimo de Enzo Castellari que lhe serviu de base. Tarantino possui um universo em ebulição, no qual nada permanece tal como é. O grupo liderado por Brad Pitt não é um bando de soldados desertores que age de acordo com a conveniência, mas uma gangue de “justiceiros” selvagens que, encarnando o espírito dos índios americanos que se tornaram insígnia fácil no panteão do cinema clássico, sai colecionando escalpos de nazistas. O deslocamento é a uma só vez ideológico e histórico-cinematográfico. O homem branco incorporou a barbárie como método e os heróis perderam qualquer senso de justiça, apenas agem em retaliação aventuresca, sem sombra de motivações além de uma missão brancaleônica a cumprir. Os nazistas, por sua vez, são seres astutos, cuja sagacidade lunática os torna meros executores de ações, guiados pela excelência e sem traço de uma emoção qualquer. Por fim, torna-se impossível distinguir entre a brutalidade de uns e de outros.

A detentora do verdadeiro status de herói é, portanto, Shosanna. Aquela que cinematograficamente consegue escapar da chacina de sua família. Aquela cuja inteligência é capaz de armar um plano de gênio para eliminar o alto escalão do Terceiro Reich. Uma amante do cinema sobre todas as coisas. Shosanna é a heroína improvável, a personificação das ações impossíveis que nos fazem tanto amar a sétima arte. Porque, afinal, é pelo cinema que tudo se processa em Tarantino. Sua história rocambolesca só poderia, portanto, desembocar numa sala de cinema. E o entrecruzamento entre o filme de propaganda nazista, o uso da tela para a projeção de uma mensagem de vingança por Shosanna e o próprio Bastardos Inglórios como veículo para uma aventura romanesca avizinhada de uma epopéia fantástica revelam uma celebração do meio para além da referencialidade sempre tão destacada em sua obra.

Em Bastardos Inglórios, Tarantino parece trabalhar elementos diversos cada um a seu turno de modo a potencializá-los. E o formato em capítulos apenas facilitaria isto. Pequenos módulos narrativos, eles permitem que o cineasta condense conflitos, tensões e distensões, tornando-os mais límpidos e proeminentes à luz do filme inteiro. As longas conversas, por exemplo, não se dissipam em força como em À Prova de Morte, elas são nós precisos em pontos-chave da narrativa – que, por ser episódica, concede ainda mais valor aos tour-de force. Só o essencial subsiste. Ainda que o essencial para Tarantino seja repleto de excessos – quase sempre maravilhosos. Cada passo em direção à inverossimilhança ou ao estiramento de uma situação (como o bate-papo no restaurante entre Hans Landa e Shosanna, ou a conversa no bar entre os conspiradores e um soldado alemão) é em seu cinema motivo de deleite em consonância com a identificação de uma consciência extra-fílmica a orquestrar o que é visto. Este dom, de claramente expor a construção e condução da narrativa sem em nenhum momento quebrar o pacto com a ficção e o envolvimento do espectador com ela, é raro e corresponde à sua habilidade em costurar citações de forma a criar um pastiche absolutamente autêntico. Pela força impressionante que suas marcas autorais adquirem em Bastardos Inglórios e pelo frescor renovado que seu estilo mostra-se capaz de apresentar, podemos dizer sem medo que Tarantino fez um dos melhores filmes dos últimos tempos.


Tatiana Monassa