A
inovação tecnológica gera uma
confusão: a
pressuposição imediata de que com ela se desbrava
um
terreno inaudito, descobre-se um mundo jamais visitado. Avatar vem
provar o contrário: o parceiro ideal da mais
avançada
tecnologia em efeitos visuais é o mais ancião dos
enredos. O recuo é monumental, pois recupera muito mais que
uma simples tradição cinematográfica
(Cameron
aproveita para alertar os cinéfilos de que o cinema
é
só uma fração de segundo na
duração
da história da humanidade), retornando ao ponto zero de um
antigo mito da criação, que fala de uma época em
que tudo nos
seres
humanos era duplo e eles tinham dois rostos, dois
órgãos
genitais, quatro mãos, quatro pés, etc. Essa
história
de Avatar,
de dois corpos que ocupam situações distintas
–
um acondicionado a uma cápsula enquanto seu duplo se imiscui
num mundo pleno de vida e movimento – até que um
decida
perecer para a prevalência do outro, essa história
nada
mais é que a re-encenação do momento
em que Zeus
decidiu dividir cada ser humano em duas partes, automaticamente
impelindo-as a querer se juntar e restabelecer o estado anterior,
quando as duas metades fundiam-se em um só ser.
Em Pandora, planeta no qual o filme
literalmente se
ambienta, tal estado anterior é passível de ser
atualizado e convidado a participar da realidade presente. A
população nativa é composta pelos
Na'vi,
humanóides com traços felinos e
hábitos
guerreiros que, nada por acaso, nos fazem pensar nos Navajos e em
outros povos indígenas exterminados em massa durante a
expansão da fronteira norte-americana. Eles só se
tornam grandes guerreiros quando conseguem formar uma unidade
visceral com algumas outras espécies locais. Para domar um
animal parecido com o cavalo, por exemplo, os Na'vi precisam juntar
as pontas de seus cabelos às da crina do animal, estabelecer
um circuito energético único e fazer os dois
corpos se
comportarem como um só. Pandora, esse lugar distante, essa
projeção futura, é no fim das contas
uma terra
primitiva, tão primitiva que nela as formas inteligentes de
vida ainda se enxergam como parte integrante da Natureza. A vida para
eles depende de uma porção de energia que tomam
emprestada da natureza e que, ao morrer, devolvem à fonte.
Entretanto, os humanos envolvidos na missão de
colonização
desse planeta, financiados pelo poder econômico de grandes
corporações e amparados por uma estupidez que se
legitimou como ideologia oficial, enxergam em Pandora
tão-somente
o reservatório de uma valiosa substância (um
petróleo
da era intergaláctica). Pandora funde os desertos das guerras do
Golfo, do Iraque e do Afeganistão às florestas do
Vietnã.
Fusão,
condensação, síntese: essa
é a tática
de Cameron. Sua versão para o mito do cinema-total
não
é a transparência absoluta que anularia as
fronteiras
entre o cinema e a percepção real da vida
(não é
para isso que lhe serve o 3D), mas sim a síntese perfeita de
inúmeros marcos históricos do cinema, misturados
meio
anarquicamente, sem muita hierarquia, de modo que elementos de 2001,
Jurassic Park
e Redacted
possam
se combinar espontaneamente (ou seja, sem
rejeição) aos
de Dança
com Lobos e
Coração
Valente.
Mas
as principais figuras de confronto/transformação
do
cinema de James Cameron possuem seu paralelo mais forte é na
biologia, mais até que na mitologia, nas
criações
de outros mestres da ilusão cinematográfica ou
nas
grandes aventuras do romance oitocentista. Uma cena típica e
indispensável em seus filmes é a da
aquisição
de um corpo ou de sua modificação: um
robô
exterminador vestindo uma pele elástica que simula o tecido
humano (O
Exterminador do Futuro),
ou então se metamorfoseando em algum outro ser, ou ainda se
camuflando no espaço tal qual um camaleão (O
Exterminador do Futuro 2);
uma mulher pilotando uma empilhadeira mecânica que parece um
exosqueleto crustáceo (Aliens),
prótese robótica que agora reaparece como um
equipamento de guerra dos humanos vilões em Avatar.
Em todos os casos, questão de sobrevivência.
Muitas
vezes a adaptação a um outro corpo, outra
atmosfera,
outro nicho, obriga um retorno aos primeiros estágios da
vida:
o personagem de Ed Harris em O
Segredo do Abismo
aprende a respirar no interior de um ambiente líquido como
se
voltasse a ser um feto no útero; o Jake Sully de Avatar
ensaia os primeiros passos com o novo corpo e esbarra em tudo
(“você
parece um bebê”, a nativa Neytiri repete
várias
vezes, reprovando Jake por ainda não saber se mover em
silêncio na floresta de Pandora). Nesses universos a que
Cameron nos transporta, as leis biológicas (metamorfose,
seleção natural) pesam mais que quaisquer outras.
Enquanto
a saga do casal de heróis de Titanic
consistia em se livrar de um mundo agonizante (o Velho Continente e
sua aristocracia decadente), o herói de Avatar
precisa ir mais longe e se livrar de uma espécie moribunda,
degradada por seus próprios meios: a espécie
humana.
Jake deixa o corpo humano paraplégico para trás e
elege
seu avatar no mundo alienígena como novo suporte vital.
Outra
dicotomia cara a James Cameron, aquela entre o soma (o corpo em sentido estrito, a metade mortal) e o plasma (potência imortal, devir permanente), recebe aqui uma
sofisticada resolução: a parte imortal se
transfere
definitivamente de um corpo para outro, a alma de Jake passa
inteiramente para o lado dos habitantes de Pandora, primeiro
simbolicamente, tão-logo ele se apaixona pela natureza
local,
por Neytiri e pelo povo Na'vi, depois fisicamente, naquela cena
já
para o final, quando debaixo da grande árvore ele se submete
a
um transplante espiritual que o integra de vez ao mundo dos Na'vi.
Essa cena retoma e fusiona duas
outras: a da
“ressurreição” da personagem
de Mary
Elizabeth Mastrantonio em O
Segredo do Abismo
e a da despedida de Leonardo Di Caprio em Titanic.
O único objetivo dos heróis de Cameron
é manter
acesa a chama da vida. No primeiro caso, dispõe-se de um
só
corpo, não é ainda o caso de tentar transferir a
vida
de uma matéria fragilizada para outra em bom estado; a luta
(respiração boca-a-boca,
desfibrilação e
tudo mais) é para não deixar a vida se esvair
desse
único corpo de que a personagem dispõe para
alojar sua
energia vital. Em Titanic,
já se trata de um drama partilhado por dois corpos: a
mocinha
está sobre um destroço do navio e o rapaz
está
congelando na água do mar, sacrificando-se para manter a
amada
viva pelo tempo necessário até que chegue o
resgate. No
já clássico momento em que ela solta o corpo
inerte do
rapaz e ele finalmente afunda, podemos enxergar a mais
romântica
ou humanista das mensagens, ou podemos simplesmente constatar o
instinto de sobrevivência: a
moça
se desprende de uma pele morta para melhor se adaptar à
circunstância. Avatar,
por sua vez, propõe o raccord
definitivo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Jake
também precisa se livrar de uma carcaça inútil,
mas dessa vez é seu próprio corpo, e não o de
outro, que deverá ser desertado. Acabou, para Cameron, o
luto das grandes formas do passado, o cinema pode enfim prescindir de
seus fantasmas, ou melhor, não vê-los mais como
assombrações paralisantes. Uma vez plasmados pela mesma
placenta digital, corpo
real e corpo-imagem podem se resumir em um só.
A
passagem da energia
vital de Jake de um corpo humano aleijado para um corpo
alienígena
sadio realiza ainda a utopia da comunhão do homem com o
Outro.
O filme que começara como uma espécie de remake
em 3D
de Aliens acaba
sendo seu oposto radical. No
filme de 1986,
o trauma da maternidade indesejada – que é quando
um ser
humano se torna hospedeiro do alienígena – acha
seu
inverso, a boa maternidade, no momento em que Ripley adota a menina
Newt, encontrada órfã no planeta LV-426 (escuro,
soturno, cinzento, hostil, feio, inóspito, enfim, um
negativo
de Pandora). A verdadeira cena traumática, para a qual a
catarse deve convergir, é aquela em que um alien rasga o
peito
de uma pessoa e vem à luz. É com essa cena que
Ripley
tem um pesadelo na primeira parte do filme, quando ela vive
à
semelhança de uma traumatizada de guerra. E é ao
assistir a um alien saindo do peito de uma vítima,
já
durante a missão, que Ripley se dá conta de que
está
de volta ao inferno – ela assiste à cena
através
de um monitor de vídeo, e o rosto de Sigourney Weaver
transmite toda a sensação de pavor de sua
personagem ao
ver aquilo acontecendo de novo. A menina Newt, portanto,
será
o agente positivo da catarse de Ripley: a única forma eficaz
de exorcizar o medo do feto indesejado. Ripley não pode
suportar sequer a idéia de trazer dentro de si um outro.
Newt,
sendo uma filha adotiva, poupa a mãe do trauma, afasta de
Ripley a própria noção de gravidez e,
mais
ainda, de parto (que é a expulsão
traumática, a
violência originária da qual ela, mulher anulada
em sua
sexualidade, precisa fugir).
Avatar
já vai no sentido oposto. Diferentemente de Ripley, Jake não teme uma
invasão alienígena em seu corpo. Ele mesmo
é o
invasor, que se depara com a mais positiva das alteridades e se
converte a ela. À imagem grotesca do alien rasgando o peito
de
um humano se substitui essa outra imagem, poética, de um
olho
se abrindo uma vez que a alma de um humano habitou pacificamente o
corpo de um alienígena. Tudo se inverteu. Avatar
materializa um desejo – totalmente fora do contexto de Aliens
– de se tornar o outro, de viver lá o que
não se
viveu plenamente aqui.
Então,
o classicismo?
“Então,
o
barroco?”. Assim Serge Daney terminava em 1982 o artigo
“A
rampa (bis)”, ampliação de um texto
publicado
numa edição especial dos Cahiers du
Cinéma
sobre cenografia no cinema. Tomando por base o sistema hegeliano das
artes – popularizado na França por
André Malraux
–, modelo que desde cedo fora incorporado nos Cahiers,
Daney indagava se o maneirismo que ele e outros detectavam em
cineastas tão diversos como Syberberg e Coppola precipitaria
uma era barroca.
Dezesseis
anos depois
de “A rampa”, e seis após a morte de
Daney,
Titanic obrigou um outro crítico,
Jean-Marc Lalanne, de
uma outra geração dos Cahiers,
a especular se
James Cameron não estaria levando ao limite um novo sonho do
cinema americano, um sonho neoclássico de
“encontrar na
morte uma forma de retornar às fontes, situar-se de novo nas
origens”. “Será Titanic
um ponto de mutação
maior na história do cinema norte-americano, sua passagem do
maneirismo ao neoclassicismo?”, interrogava Lalanne.
Titanic era um filme menos sobre um naufrágio do que sobre um
artista
aventureiro, persuasivo e, acima de tudo, louco o suficiente para
resgatar um gigante abandonado – a saber, o melodrama
épico
cujo segredo e cuja magia Hollywood havia esquecido no fundo do mar
–
e colocá-lo para funcionar novamente.
Com
Avatar,
Cameron faz um recuo ainda mais lento e extenso, e dá
razão
ao que Rohmer vivia dizendo nos anos 1950: o classicismo, no cinema,
pertence ao futuro, está sempre à nossa frente.
No caso
específico de Avatar,
isso significa afirmar a forma clássica como a
única
que vai sempre casar com qualquer tecnologia, em qualquer
época.
Cameron se reconciliou com facilidade a um mundo do qual quase todos
os outros cineastas se sentem completamente alienados. Nesse mundo,
o
artista sabe o que quer e pode o que quer, tem
uma
idéia perfeitamente clara do conteúdo substancial
que
deseja tornar perceptível e possui o poder
técnico que
sua realização exige; ele encontra seus conteúdos
em mitos que precedem idéias originais, e suas obras se destinam
à emoção das
massas bem
como ao ensinamento dos homens.
Em
geral, quando um
cineasta filma o mundo de hoje com a paixão de ontem, o
resultado é uma forma doente, fracassada. Cameron, contudo,
triunfou mais uma vez.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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