AVATAR
James Cameron, EUA, 2009

A inovação tecnológica gera uma confusão: a pressuposição imediata de que com ela se desbrava um terreno inaudito, descobre-se um mundo jamais visitado. Avatar vem provar o contrário: o parceiro ideal da mais avançada tecnologia em efeitos visuais é o mais ancião dos enredos. O recuo é monumental, pois recupera muito mais que uma simples tradição cinematográfica (Cameron aproveita para alertar os cinéfilos de que o cinema é só uma fração de segundo na duração da história da humanidade), retornando ao ponto zero de um antigo mito da criação, que fala de uma época em que tudo nos seres humanos era duplo e eles tinham dois rostos, dois órgãos genitais, quatro mãos, quatro pés, etc. Essa história de Avatar, de dois corpos que ocupam situações distintas – um acondicionado a uma cápsula enquanto seu duplo se imiscui num mundo pleno de vida e movimento – até que um decida perecer para a prevalência do outro, essa história nada mais é que a re-encenação do momento em que Zeus decidiu dividir cada ser humano em duas partes, automaticamente impelindo-as a querer se juntar e restabelecer o estado anterior, quando as duas metades fundiam-se em um só ser.

Em Pandora, planeta no qual o filme literalmente se ambienta, tal estado anterior é passível de ser atualizado e convidado a participar da realidade presente. A população nativa é composta pelos Na'vi, humanóides com traços felinos e hábitos guerreiros que, nada por acaso, nos fazem pensar nos Navajos e em outros povos indígenas exterminados em massa durante a expansão da fronteira norte-americana. Eles só se tornam grandes guerreiros quando conseguem formar uma unidade visceral com algumas outras espécies locais. Para domar um animal parecido com o cavalo, por exemplo, os Na'vi precisam juntar as pontas de seus cabelos às da crina do animal, estabelecer um circuito energético único e fazer os dois corpos se comportarem como um só. Pandora, esse lugar distante, essa projeção futura, é no fim das contas uma terra primitiva, tão primitiva que nela as formas inteligentes de vida ainda se enxergam como parte integrante da Natureza. A vida para eles depende de uma porção de energia que tomam emprestada da natureza e que, ao morrer, devolvem à fonte. Entretanto, os humanos envolvidos na missão de colonização desse planeta, financiados pelo poder econômico de grandes corporações e amparados por uma estupidez que se legitimou como ideologia oficial, enxergam em Pandora tão-somente o reservatório de uma valiosa substância (um petróleo da era intergaláctica). Pandora funde os desertos das guerras do Golfo, do Iraque e do Afeganistão às florestas do Vietnã.

Fusão, condensação, síntese: essa é a tática de Cameron. Sua versão para o mito do cinema-total não é a transparência absoluta que anularia as fronteiras entre o cinema e a percepção real da vida (não é para isso que lhe serve o 3D), mas sim a síntese perfeita de inúmeros marcos históricos do cinema, misturados meio anarquicamente, sem muita hierarquia, de modo que elementos de 2001, Jurassic Park e Redacted possam se combinar espontaneamente (ou seja, sem rejeição) aos de Dança com Lobos e Coração Valente.

Mas as principais figuras de confronto/transformação do cinema de James Cameron possuem seu paralelo mais forte é na biologia, mais até que na mitologia, nas criações de outros mestres da ilusão cinematográfica ou nas grandes aventuras do romance oitocentista. Uma cena típica e indispensável em seus filmes é a da aquisição de um corpo ou de sua modificação: um robô exterminador vestindo uma pele elástica que simula o tecido humano (O Exterminador do Futuro), ou então se metamorfoseando em algum outro ser, ou ainda se camuflando no espaço tal qual um camaleão (O Exterminador do Futuro 2); uma mulher pilotando uma empilhadeira mecânica que parece um exosqueleto crustáceo (Aliens), prótese robótica que agora reaparece como um equipamento de guerra dos humanos vilões em Avatar. Em todos os casos, questão de sobrevivência. Muitas vezes a adaptação a um outro corpo, outra atmosfera, outro nicho, obriga um retorno aos primeiros estágios da vida: o personagem de Ed Harris em O Segredo do Abismo aprende a respirar no interior de um ambiente líquido como se voltasse a ser um feto no útero; o Jake Sully de Avatar ensaia os primeiros passos com o novo corpo e esbarra em tudo (“você parece um bebê”, a nativa Neytiri repete várias vezes, reprovando Jake por ainda não saber se mover em silêncio na floresta de Pandora). Nesses universos a que Cameron nos transporta, as leis biológicas (metamorfose, seleção natural) pesam mais que quaisquer outras.

Enquanto a saga do casal de heróis de Titanic consistia em se livrar de um mundo agonizante (o Velho Continente e sua aristocracia decadente), o herói de Avatar precisa ir mais longe e se livrar de uma espécie moribunda, degradada por seus próprios meios: a espécie humana. Jake deixa o corpo humano paraplégico para trás e elege seu avatar no mundo alienígena como novo suporte vital. Outra dicotomia cara a James Cameron, aquela entre o soma (o corpo em sentido estrito, a metade mortal) e o plasma (potência imortal, devir permanente), recebe aqui uma sofisticada resolução: a parte imortal se transfere definitivamente de um corpo para outro, a alma de Jake passa inteiramente para o lado dos habitantes de Pandora, primeiro simbolicamente, tão-logo ele se apaixona pela natureza local, por Neytiri e pelo povo Na'vi, depois fisicamente, naquela cena já para o final, quando debaixo da grande árvore ele se submete a um transplante espiritual que o integra de vez ao mundo dos Na'vi. Essa cena retoma e fusiona duas outras: a da “ressurreição” da personagem de Mary Elizabeth Mastrantonio em O Segredo do Abismo e a da despedida de Leonardo Di Caprio em Titanic. O único objetivo dos heróis de Cameron é manter acesa a chama da vida. No primeiro caso, dispõe-se de um só corpo, não é ainda o caso de tentar transferir a vida de uma matéria fragilizada para outra em bom estado; a luta (respiração boca-a-boca, desfibrilação e tudo mais) é para não deixar a vida se esvair desse único corpo de que a personagem dispõe para alojar sua energia vital. Em Titanic, já se trata de um drama partilhado por dois corpos: a mocinha está sobre um destroço do navio e o rapaz está congelando na água do mar, sacrificando-se para manter a amada viva pelo tempo necessário até que chegue o resgate. No já clássico momento em que ela solta o corpo inerte do rapaz e ele finalmente afunda, podemos enxergar a mais romântica ou humanista das mensagens, ou podemos simplesmente constatar o instinto de sobrevivência: a moça se desprende de uma pele morta para melhor se adaptar à circunstância. Avatar, por sua vez, propõe o raccord definitivo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Jake também precisa se livrar de uma carcaça inútil, mas dessa vez é seu próprio corpo, e não o de outro, que deverá ser desertado. Acabou, para Cameron, o luto das grandes formas do passado, o cinema pode enfim prescindir de seus fantasmas, ou melhor, não vê-los mais como assombrações paralisantes. Uma vez plasmados pela mesma placenta digital, corpo real e corpo-imagem podem se resumir em um só.

A passagem da energia vital de Jake de um corpo humano aleijado para um corpo alienígena sadio realiza ainda a utopia da comunhão do homem com o Outro. O filme que começara como uma espécie de remake em 3D de Aliens acaba sendo seu oposto radical. No filme de 1986, o trauma da maternidade indesejada – que é quando um ser humano se torna hospedeiro do alienígena – acha seu inverso, a boa maternidade, no momento em que Ripley adota a menina Newt, encontrada órfã no planeta LV-426 (escuro, soturno, cinzento, hostil, feio, inóspito, enfim, um negativo de Pandora). A verdadeira cena traumática, para a qual a catarse deve convergir, é aquela em que um alien rasga o peito de uma pessoa e vem à luz. É com essa cena que Ripley tem um pesadelo na primeira parte do filme, quando ela vive à semelhança de uma traumatizada de guerra. E é ao assistir a um alien saindo do peito de uma vítima, já durante a missão, que Ripley se dá conta de que está de volta ao inferno – ela assiste à cena através de um monitor de vídeo, e o rosto de Sigourney Weaver transmite toda a sensação de pavor de sua personagem ao ver aquilo acontecendo de novo. A menina Newt, portanto, será o agente positivo da catarse de Ripley: a única forma eficaz de exorcizar o medo do feto indesejado. Ripley não pode suportar sequer a idéia de trazer dentro de si um outro. Newt, sendo uma filha adotiva, poupa a mãe do trauma, afasta de Ripley a própria noção de gravidez e, mais ainda, de parto (que é a expulsão traumática, a violência originária da qual ela, mulher anulada em sua sexualidade, precisa fugir).

Avatar já vai no sentido oposto. Diferentemente de Ripley, Jake não teme uma invasão alienígena em seu corpo. Ele mesmo é o invasor, que se depara com a mais positiva das alteridades e se converte a ela. À imagem grotesca do alien rasgando o peito de um humano se substitui essa outra imagem, poética, de um olho se abrindo uma vez que a alma de um humano habitou pacificamente o corpo de um alienígena. Tudo se inverteu. Avatar materializa um desejo – totalmente fora do contexto de Aliens – de se tornar o outro, de viver lá o que não se viveu plenamente aqui.

Então, o classicismo?

“Então, o barroco?”. Assim Serge Daney terminava em 1982 o artigo “A rampa (bis)”, ampliação de um texto publicado numa edição especial dos Cahiers du Cinéma sobre cenografia no cinema. Tomando por base o sistema hegeliano das artes – popularizado na França por André Malraux –, modelo que desde cedo fora incorporado nos Cahiers, Daney indagava se o maneirismo que ele e outros detectavam em cineastas tão diversos como Syberberg e Coppola precipitaria uma era barroca.

Dezesseis anos depois de “A rampa”, e seis após a morte de Daney, Titanic obrigou um outro crítico, Jean-Marc Lalanne, de uma outra geração dos Cahiers, a especular se James Cameron não estaria levando ao limite um novo sonho do cinema americano, um sonho neoclássico de “encontrar na morte uma forma de retornar às fontes, situar-se de novo nas origens”. “Será Titanic um ponto de mutação maior na história do cinema norte-americano, sua passagem do maneirismo ao neoclassicismo?”, interrogava Lalanne.

Titanic era um filme menos sobre um naufrágio do que sobre um artista aventureiro, persuasivo e, acima de tudo, louco o suficiente para resgatar um gigante abandonado – a saber, o melodrama épico cujo segredo e cuja magia Hollywood havia esquecido no fundo do mar – e colocá-lo para funcionar novamente.

Com Avatar, Cameron faz um recuo ainda mais lento e extenso, e dá razão ao que Rohmer vivia dizendo nos anos 1950: o classicismo, no cinema, pertence ao futuro, está sempre à nossa frente. No caso específico de Avatar, isso significa afirmar a forma clássica como a única que vai sempre casar com qualquer tecnologia, em qualquer época. Cameron se reconciliou com facilidade a um mundo do qual quase todos os outros cineastas se sentem completamente alienados. Nesse mundo, o artista sabe o que quer e pode o que quer, tem uma idéia perfeitamente clara do conteúdo substancial que deseja tornar perceptível e possui o poder técnico que sua realização exige; ele encontra seus conteúdos em mitos que precedem idéias originais, e suas obras se destinam à emoção das massas bem como ao ensinamento dos homens.

Em geral, quando um cineasta filma o mundo de hoje com a paixão de ontem, o resultado é uma forma doente, fracassada. Cameron, contudo, triunfou mais uma vez.

Luiz Carlos Oliveira Jr.