AVATAR
James Cameron, Avatar, EUA, 2009

Avatar é um filme de encanto e de descoberta. No aspecto empreendedor, com a tecnologia, no ficcional, com um mundo fantástico e, em sua monumentalidade , com o cinema – e seu sempre renovável poder de promover o espetáculo e cooptar afetos. Uma vez tragados para o interior deste universo, envolvidos pelos brilhos, volumes e texturas voláteis do 3D, como não se deixar magnetizar pela magia de uma celebração tão grandiosa do meio? Pois se há uma questão fundamental na obra recente de James Cameron, é a necessidade de afirmar e reafirmar o cinema como meio único e privilegiado, capaz de proezas além da imaginação e de proporcionar uma vida mais completa, absurda e maravilhosa do que a própria vida.

O que faz deste filme, portanto, um real divisor de águas na história do cinema – se é que podemos sustentar tal colocação no calor do momento histórico – não é exatamente a façanha tecnológica de sua realização, mas a visão de um empreendimento monumental que não poderia ser menos do que a “corporificação” completa de um estado de espírito e de uma mentalidade de época – que passasse, sim, pela tecnologia (em suas implicações materiais e imateriais), mas se estendesse também para a expressão de aspirações e medos que mobilizam a vasta comunidade terrestre ocidental hoje. Desta forma, podemos dizer que, se Titanic foi o testamento de um mundo que se despedia do século XX e dos sonhos por ele alimentados, cunhando a maior das histórias de amor romântico ao avesso, Avatar é o testemunho dos anseios de um milênio que já nasce receoso em relação ao futuro, solicitando uma reavaliação profunda de nossos ideais formadores. E do renascimento destes sob uma outra configuração.

Constata-se, pois, que a imagem projetada (forjada à nossa semelhança) transmutou-se em indistinguível misto de traço criativo e captura direta do “real”, fagocitando inexoravelmente a questão ontológica, e, em algum lugar do espaço entre nós e o anteparo, flutua agora como uma nuvem de informação em constante modulação, solicitando que demos nosso “input” e nos tornemos também dados em movimento. E a sociedade, regida pelos imperativos do capital e da ciência, chocou-se irremediavelmente com a natureza do mundo que habita; para o ciclo irrefreável da vida, o sentimento de progresso não advém do confronto entre dois pólos, mas de uma troca equilibrada de energias que compreende mortes e nascimentos ad eternum.

A idéia de transferência, simbolizada pela própria concepção do “avatar”, e concretizada em termos “espirituais” na cena final, percorre todo o filme como um subtexto que informa a passagem de um mundo a outro. Pandora é uma Terra magnificada em sua potência e exuberância, num tempo em que nosso próprio planeta estaria desertificado de vegetação; um mundo para o qual o jovem Jake deve operar uma transição, que implicará necessariamente numa reformatação de sua sensibilidade. Esta “mudança de lado” do personagem representa ainda a necessária transformação de uma mentalidade: contra o belicismo mecanicista movido a lucro, uma força que celebre intensidades e a ligação harmônica entre tudo o que vive.

Em sua reinterpretação particular da história prototípica de Pocahontas, no entanto, James Cameron não recorre a uma civilização “pré-homem branco” como depositário de um ideal de saberoria maior, mas a uma raça que consiste numa espécie de “pós-homem”: visual futurista, potencialização de utopias do nosso tempo e plena realização de desejos que projetamos no futuro. A floresta florescente de Pandora e suas mirabolantes “conexões”, que permitem a circulação de vontades, sentimentos e memórias como dados em uma rede de computadores; os corpos magros e esguios dos Na’vi, que movimentam-se com leveza impressionante numa atmosfera com baixa gravidade; uma existência plena em que a liberdade corresponde à ausência de culpa por qualquer ato incidente no entorno.

Toda esta configuração do universo fantasioso, somada ao paralalismo entre os “dois mundos” instaurado pela duplicação de Jake, que torna-se presente de ambos os lados e promove, por fim, a “passagem”, cria ainda uma outra e bastante eficaz transferência: a do espectador para os personagens. Seja reconhecendo-se no impulso de prosperidade econômica e desejo de ordem num primeiro momento, seja encantando-se pela perfeição de uma união impecável com a natureza num segundo. Ou, ainda: atravessando o processo de “tomada de consciência” – que Jake simplifica com as palavras “eu me apaixonei” (pela floresta, pela cultura Na’vi, por Neytiri).

E para este intrincado complexo que espelha o intuito narrativo na forma cinematográfica, Cameron opera a maior de todas as convergências, unindo máquinas de um lado, animais monstruosos do outro e a sempre fascinante ciência a serviço da ficção servindo de elo. Seu roteiro funciona à perfeição, apropriando-se de todos os clichês possíveis para reapresentá-los revigorados, sob dimensão mítica. Sua narrativa se apresenta, como sempre, absoluta, simultaneamente síntese de tudo o que a precedeu e origem para tudo que a sucederá. E, num paradoxo desconcertante, pretendendo-se também única e insuperável, quase ignorante de todo o entorno com o qual supostamente estaria em diálogo. O encadeamento absurdamente ágil de cenas, em que nada sobra ou falta, capaz de transmitir com exatidão uma mensagem sem nunca prescindir de situações autênticas entre os personagens e diálogos precisos e de efeito, contribui ainda para a sensação de que nada existe fora daquilo que está sendo apresentado. O cinema, o mundo, os sonhos, estariam totalmente contidos no fluxo de imagens. Por todas estas razões e ainda outras talvez menos tangíveis, Avatar é sem dúvida o grande filme-síntese de seu tempo.


Tatiana Monassa