Avatar é um filme de encanto e de descoberta. No
aspecto empreendedor, com a tecnologia, no ficcional, com um mundo fantástico
e, em sua monumentalidade , com o cinema – e seu sempre renovável poder de promover
o espetáculo e cooptar afetos. Uma vez tragados para o interior deste universo,
envolvidos pelos brilhos, volumes e texturas voláteis do 3D, como não se deixar
magnetizar pela magia de uma celebração tão grandiosa do meio? Pois se há uma
questão fundamental na obra recente de James Cameron, é a necessidade de
afirmar e reafirmar o cinema como meio único e privilegiado, capaz de proezas
além da imaginação e de proporcionar uma vida mais completa, absurda e maravilhosa
do que a própria vida.
O que faz deste filme, portanto, um real divisor de águas na
história do cinema – se é que podemos sustentar tal colocação no calor do
momento histórico – não é exatamente a façanha tecnológica de sua realização,
mas a visão de um empreendimento monumental que não poderia ser menos do que a
“corporificação” completa de um estado de espírito e de uma mentalidade
de época – que passasse, sim, pela tecnologia (em suas implicações materiais e
imateriais), mas se estendesse também para a expressão de aspirações e medos
que mobilizam a vasta comunidade terrestre ocidental hoje. Desta forma, podemos
dizer que, se Titanic foi o testamento de um mundo que se despedia do
século XX e dos sonhos por ele alimentados, cunhando a maior das histórias de
amor romântico ao avesso, Avatar é o testemunho dos anseios de um
milênio que já nasce receoso em relação ao futuro, solicitando uma reavaliação
profunda de nossos ideais formadores. E do renascimento destes sob uma outra configuração.
Constata-se, pois, que a imagem projetada (forjada à nossa
semelhança) transmutou-se em indistinguível misto de traço criativo e captura
direta do “real”, fagocitando inexoravelmente a questão ontológica, e, em algum
lugar do espaço entre nós e o anteparo, flutua agora como uma nuvem de
informação em constante modulação, solicitando que demos nosso “input” e nos
tornemos também dados em movimento. E a sociedade, regida pelos imperativos do
capital e da ciência, chocou-se irremediavelmente com a natureza do mundo que
habita; para o ciclo irrefreável da vida, o sentimento de progresso não advém
do confronto entre dois pólos, mas de uma troca equilibrada de energias que
compreende mortes e nascimentos ad eternum.
A idéia de transferência, simbolizada pela própria concepção
do “avatar”, e concretizada em termos “espirituais” na cena final, percorre
todo o filme como um subtexto que informa a passagem de um mundo a outro.
Pandora é uma Terra magnificada em sua potência e exuberância, num tempo em que
nosso próprio planeta estaria desertificado de vegetação; um mundo para o qual
o jovem Jake deve operar uma transição, que implicará necessariamente numa reformatação
de sua sensibilidade. Esta “mudança de lado” do personagem representa ainda a
necessária transformação de uma mentalidade: contra o belicismo mecanicista
movido a lucro, uma força que celebre intensidades e a ligação harmônica entre
tudo o que vive.
Em sua reinterpretação particular da história prototípica de
Pocahontas, no entanto, James Cameron não recorre a uma civilização “pré-homem
branco” como depositário de um ideal de saberoria maior, mas a uma raça que
consiste numa espécie de “pós-homem”: visual futurista, potencialização de
utopias do nosso tempo e plena realização de desejos que projetamos no futuro.
A floresta florescente de Pandora e suas mirabolantes “conexões”, que permitem
a circulação de vontades, sentimentos e memórias como dados em uma rede de
computadores; os corpos magros e esguios dos Na’vi, que movimentam-se com
leveza impressionante numa atmosfera com baixa gravidade; uma existência plena
em que a liberdade corresponde à ausência de culpa por qualquer ato incidente
no entorno.
Toda esta configuração do universo fantasioso, somada ao
paralalismo entre os “dois mundos” instaurado pela duplicação de Jake, que
torna-se presente de ambos os lados e promove, por fim, a “passagem”, cria
ainda uma outra e bastante eficaz transferência: a do espectador para os
personagens. Seja reconhecendo-se no impulso de prosperidade econômica e desejo
de ordem num primeiro momento, seja encantando-se pela perfeição de uma união
impecável com a natureza num segundo. Ou, ainda: atravessando o processo de
“tomada de consciência” – que Jake simplifica com as palavras “eu me apaixonei”
(pela floresta, pela cultura Na’vi, por Neytiri).
E para este intrincado complexo que espelha o intuito
narrativo na forma cinematográfica, Cameron opera a maior de todas as convergências,
unindo máquinas de um lado, animais monstruosos do outro e a sempre fascinante
ciência a serviço da ficção servindo de elo. Seu roteiro funciona à perfeição,
apropriando-se de todos os clichês possíveis para reapresentá-los revigorados, sob
dimensão mítica. Sua narrativa se apresenta, como sempre, absoluta,
simultaneamente síntese de tudo o que a precedeu e origem para tudo que a
sucederá. E, num paradoxo desconcertante, pretendendo-se também única e
insuperável, quase ignorante de todo o entorno com o qual supostamente estaria
em diálogo. O encadeamento absurdamente ágil de cenas, em que nada sobra ou
falta, capaz de transmitir com exatidão uma mensagem sem nunca prescindir de
situações autênticas entre os personagens e diálogos precisos e de efeito,
contribui ainda para a sensação de que nada existe fora daquilo que está
sendo apresentado. O cinema, o mundo, os sonhos, estariam totalmente contidos
no fluxo de imagens. Por todas estas razões e ainda outras talvez menos
tangíveis, Avatar é sem dúvida o grande filme-síntese de seu tempo.
Tatiana Monassa
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