A filmografia de Johnnie To pode dificultar à beça os
arautos da idéia de autoria
cinematográfica, mas é instigante o suficiente para que nos aventuremos sobre
ela. Este texto pretende ser uma introdução à sua obra, uma abertura de portas
para posteriores viagens, ou simplesmente um atalho para servir de guia a quem
quiser mergulhar em sua fascinante, embora irregular, carreira.
Seus filmes são marcados pela idéia de parceria, seja com
atores de maior ou menor sucesso comercial, seja com diretores especializados
ou não em coreografias de ação. Boa parte de sua obra recebe influência das
pessoas com as quais trabalha, modulando o resultado de acordo com a
personalidade destas pessoas.
Com o popular Chow Yun Fat, realizou comédias que beiram o
constrangedor, mas também o belíssimo All About Ah Long, no qual o ator
se revela com um potencial melodramático apenas sugerido em seus trabalhos com
John Woo. Andy Lau, com seu sorriso estúpido que agrada inúmeras fãs, parecia
representar a porção bobo alegre do diretor, como fica claro no irregular e
afetado Fulltime Killer, mas também no superior – ainda que também
afetado – Running Out of Time. Com o careteiro e carismático Lau Ching
Wan, trabalhou algumas vezes, tanto como produtor quanto como diretor, mas o
auge foi na trilogia involuntária 1 composta por A Hero Never Dies, Where
a Good Man Goes (o melhor dos três, e a melhor interpretação de Lau em um
filme de To) e Running Out of Time. Nesses filmes Lau Ching Wan
demonstra sua versatilidade, passando de pequeno gangster metido a poderoso (A
Hero Never Dies) a ex-criminoso que procura se redimir e conquistar a viúva
dona de um pequeno hotel (Where a Good Man Goes). Dirigiu o versátil
Anthony Wong desde 1992, com destaque para o primeiro Heroic Trio, The
Mission e Exilados, além do mais recente Vengeance. Wong é um
ator que parece talhado para interpretar personagens escritos por Johnnie To.
Talvez seja por ter o rosto marcante, ou pela pose de cool que ele
apresenta mesmo nos momentos mais corriqueiros, ou naqueles em que seu
personagem é humilhado.
Mas existem também os filmes em que To assinou com um ou
mais cineastas, como o recente e interessante Triangle, em que divide a
direção com Tsui Hark e Ringo Lam. Nesse caso, o estilo de cada um parece se
mesclar com o de To, que prevalece, principalmente porque a trama está mais
próxima do que ele buscou diversas vezes em seus filmes. Outras co-direções
aconteceram com Andrew Kam (The Big Heat), com Chiu Siu-tung (Executioners)
e, principalmente, Wai Ka Fai, com quem montou a produtora Milkyway e dirigiu
uma porção de filmes insípidos.
Entre 2000 e 2002, To não dirigiu filme algum que não fosse
co-assinado por seu sócio Wai, exceto por Running Out of Time 2 (continuação não muito lembrada do elogiado filme de 1999, que conta com o
mesmo Lau Ching Wan, e a co-direção de Law Wing-Cheong). Como Wai age como
catalisador da pieguice que existe em To, podemos dizer que essa é sua pior
fase desde que montou a produtora. Todos os filmes dessa época têm cenas
constrangedoras, e um conjunto que não ultrapassa os momentos patéticos de
algumas de suas partes. A fase é deixada de lado, temporariamente, com o ótimo P.T.U.,
de 2003, um policial dirigido unicamente por To, com trama passada em uma única
noite, oportunidade para que o diretor desenvolva seu estilo ligeiro e
charmoso. Além disso, P.T.U. retoma um filme de 1998, assinado por
Patrick Yau e produzido por To e Wai, The Longest Nite, obra que também
se desenrola por uma única noite, e que conseguiu importante espaço no cenário
local. Ainda em 2003, fazem juntos o irregular Running on Karma, que tem
a audácia meio estéril de mostrar Andy Lau com um corpo fake de Mister Universo.
A parceria com Wai cessa por um tempo maior desta vez (em se tratando de
carreiras prolíficas, claro). Volta com força total três anos depois, naquele
que é disparado o melhor filme que a dupla assina (ou, podemos dizer com segurança,
o único que realmente convence): Mad Detective, no qual volta a trabalhar
com o ator Lau Ching Wan.
Saindo da famigerada parceria com Wai, To entrou no
período mais celebrado de sua carreira. Breaking News e Election são
os filmes que inauguram uma série de standards, quando To foi alçado ao
panteão máximo da cinefilia internacional – evidentemente com a crítica
francesa legitimando o cânone. Entre um e outro, mas num mundo à parte que
parece não prejudicar essa celebração um tanto míope, dois filmes simpáticos e
limitados, Throw Down e Yesterday Once More, porque é necessário
continuar ganhando dinheiro para poder realizar obras de prestígio em seguida.
De 2004 em diante, com o sinal verde imposto pelos críticos de consumo,
preocupados sempre com um ideal de bom gosto, é fazer um filme e correr para o
abraço, pois autor legitimado não erra, não peca, e impressiona mesmo quando em
piloto automático. Só que para isso ser possível, seria necessário ignorar que
em 2008 To realizou Linger, um dos pontos mais baixos de sua carreira.
Ou seja, uma autoria que só é sustentada completamente num exercício de
idealização crítica, que enxerga traços autorais cativantes nos momentos em que
não há autor de fato.
x x x
Assim como Tag Gallagher fez com seu brilhante texto sobre
Raoul Walsh, publicado na revista eletrônica Senses of Cinema, lanço mão aqui
do mesmo expediente, na tentativa talvez infrutífera de dar um brilho a este
texto pretensamente didático. Atribuo cotações a cada um dos filmes dirigidos
por Johnnie To, exceto àqueles que porventura eu não pude rever, ou não tive
tempo de ver inteiros. As cotações obedecem rigorosamente ao padrão do quadro
da Contracampo.
- The Enigmatic Case (1980)
- The Happy Ghost II (1986)
- Seven Year Itch (1987)
- The Eight Happiness (1988)
- The Big Heat (com Andrew Kam, 1988)
- All About Ah Long (1989)
- The Fun, The Luck and the Tycoon (1989)
- The Story of My Son (1990) -
- The Royal Scoundrel (1991) -
- Lucky Encounter (1992) -
- Justice My Foot (1992)
- Casino Raiders II (1993)
- Bare-Footed Kid (1993)
- The Mad Monk (1993) -
- The Heroic Trio (1993)
- Executioners (com Chiu Siu-tung, 1993)
- Loving You (1995) -
- A Moment of Romance 3 (1996)
- Lifeline (1997)
- A Hero Never Dies (1998)
- Running Out of Time (1999)
- Where a Good Man Goes (1999)
- The Mission (1999)
- Needing You... (com Wai Ka Fai, 2000)
- Love on a Diet (com Wai Ka Fai, 2001)
- Running Out of Time 2 (com Law Wing-Cheong,
2001) -
- Fulltime Killer (com Wai Ka Fai, 2001)
- Fat Choi Spirit (com Wai Ka Fai, 2002)
- My Left Eye Sees Ghost (com Wai Ka Fai,
2002)
- Love For All Seasons (com Wai Ka Fai, 2003)
-
- PTU - Police Tactical Unit (2003)
- Turn Left, Turn Right (com Wai Ka Fai,
2003)
- Running on Karma (com Wai Ka Fai, 2003)
- Breaking News (2004)
- Throw Down (2004)
- Yesterday Once More (2004)
- Election (2005)
- Election 2 (2006)
- Exilados (2006)
- Triangle (com Tsui Hark e Ringo Lam, 2007)
- Mad Detective (com Wai Ka Fai, 2007)
- Linger (2008)
- Sparrow (2008)
- Vengeance (2009) -
Sérgio Alpendre
1. Existe uma outra trilogia de fato, dentro da produtora Milkyway, formada pelos filmes The Longest Nite e Expect the Unexpected, ambos de Patrick Yau, e A Hero Never Dies, de Johnnie To. Essa trilogia ficou conhecida como "Trilogia Sombria de 1998".
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