A AUTORIA ESTILHAÇADA

Nos créditos do primeiro longa-metragem de Johnnie To, The Enigmatic Case (1979), ouvimos uma canção chinesa que dialoga perfeitamente com o tipo de música usada nos westerns spaghetti dos anos 1960. Está estabelecida, assim, a referência inicial da carreira do diretor que veio a ser um dos mais prolíficos dos últimos vinte anos. Essa referência pode ser notada em vários dos 87 minutos do filme, sobretudo no uso brilhante da câmera lenta. Tomemos como exemplo uma longa cena de luta com espadas entre o herói e um pária, enquanto a filha deste último, apaixonada pelo herói, tenta impedi-los de continuar. O balé realizado pelos três só se tornou possível de se admirar em toda sua beleza porque encenado em câmera lenta. To não fez como os diretores atuais, que transformam o espaço numa confusão de linhas, movimentos e sons para dar apenas a impressão de uma luta. Ao deixar os movimentos bem mais lentos, o diretor consegue um efeito fascinante, encenando uma luta que parece se realizar em outra dimensão, pintada por mãos impressionistas.

Nove anos depois dessa estreia animadora, a marca de um grande diretor apareceria num filme co-dirigido por Andrew Kam, o inacreditável The Big Heat. Com cenas de extrema violência, de um impacto físico impressionante e impecável, essa obra colocou de vez a assinatura de Johnnie To no mapa cinematográfico. Desde a abertura em que uma mão é atravessada por uma furadeira, até o desfecho que lembra o cinema de William Friedkin, passando por diversos clímaxes de deixar o espectador extasiado, The Big Heat comprova um talento fora do comum para encenações de movimentos acelerados. Para isso, não houve cerimônia no uso da câmera rápida, ainda que apareça com maior discrição do que as câmeras lentas, como sempre acontece nos filmes de To. 1

Entre um filme e outro, To passou uma temporada dirigindo filmes para a TV (segundo ele, porque ainda não dominava a direção cinematográfica). Foi em sua volta, no entanto, que começou a aprender, de fato, o ofício, errando em comédias insossas como Happy Ghost 3 (1986), sua primeira incursão no gênero. Desse filme inacreditavelmente infame, só retemos a habilidade demonstrada nas cenas de futebol, desafio que quase sempre constrange os cineastas brasileiros. Se é um pouco mais bem resolvido que os imediatamente posteriores Seven Years Itch (1987) e The Eighth Happiness (1988), ainda sobram ideias mal trabalhadas, como a do romance entre a fantasma e um médico, ou a escalação de Tsui Hark como o responsável pelo setor de reencarnações do céu. Algumas piadas, contudo, são mais bem realizadas do que em A Mulher Invisível, recente sucesso do cinema brasileiro com o qual guarda certa semelhança temática.

Após o excelente melodrama romântico All About Ah Long (1989), em que vemos uma faceta que To iria mostrar futuramente, de maneira mais ou menos incisiva, seria justo esperar boas coisas de seus trabalhos. Neste filme formidável, de uma ousadia sentimental autêntica, Chow Yun Fat tem uma interpretação formidável, mostrando por que foi um dos atores mais importantes de sua geração, responsável, entre outros, pelo culto ao cinema de Hong Kong a partir dos anos 1980. Cabeludo, motoqueiro, irresponsável, é sensivelmente apaixonado por uma mulher que julgava morta, e que reaparece muito bem de vida, como diretora de filmes publicitários. A história traumática por que eles passaram é vista por nós em flashbacks muito bem filmados.

Na década seguinte, o primeiro filme verdadeiramente marcante que To dirigiu foi The Heroic Trio (1993), com o qual ganhou reconhecimento no Ocidente. Trata-se de uma alegoria sobre a passagem de Hong Kong para a China, que iria acontecer 4 anos depois. É um passeio acelerado por alguns clichês do cinema de ação. Mas o diretor cuida para que duas coisas tenham amplitude na narrativa: a presença do melodrama, especialmente com a heroína interpretada por Anita Mui, e o dilema entre a vida familiar e a dedicação à busca de justiça (aspecto bem evidenciado em Heroic Trio 2: The Executioners, ainda que de maneira bem menos feliz).

Johnnie To demoraria mais cinco anos para emplacar outro filme digno de nota. Depois de alguns projetos muito comerciais, entre eles o sucesso de bilheteria Lifeline, que mostra a correria na vida de bombeiros, realiza A Hero Never Dies (1998), mostrando seu estilo baseado em cortes rápidos, geralmente no meio das ações (algo que desenvolveu com muita propriedade em The Heroic Trio), e desacelerações radicais da imagem aos píncaros do absurdo, implodindo de vez qualquer noção de verossimilhança. No ano seguinte, experimenta o período mais rico e subestimado de sua carreira, com três grandes filmes: Where a Good Man Goes, onde volta a explorar tintas gramaticais antes vistas em All About Ah Long; Running Out of Time, que conjuga viradas complicadas de roteiro ao maneirismo da direção; e The Mission, no qual flerta abertamente com o cinema clássico sem abandonar as características que o tornaram conhecido. Estaria finalmente estabelecido seu estilo. Excetuando-se os projetos feitos para ganhar dinheiro, tudo que veremos em seus trabalhos posteriores foi experimentado neste rico 1999. Nesse momento também começou a busca por uma conjunção perfeita entre as diversas facetas que revelou ao longo de sua carreira.

A multiplicidade de visões

A simples visão de uma sequência de filmes de Johnnie To, em ordem aleatória ou cronológica, nos revela que sua carreira desafia a noção de autoria. Por mais que algumas características se repitam em diversos de seus trabalhos, a variedade de estilos presente em sua obra completa é vasta demais para caber em um único ponto de vista. Quanto mais mergulhamos em sua filmografia, mais nos damos conta de que não há apenas um talentoso diretor com suas idiossincrasias, mas uma variedade de traços de sua personalidade que se multiplicam pelos meandros dos gêneros nos quais trabalha. Como Michael Curtiz ou Henry King, ou diversos outros artesãos da clássica Hollywood, To depende de uma conjunção de fatores para ser bem sucedido em suas experiências cinematográficas. Um desses fatores é a utilização das regras do gênero. Quanto mais se aproxima do policial ou das tríades (gangues sofisticadas que dominam diversos setores da economia em Hong Kong, incluindo a indústria cinematográfica), mais seu cinema é vibrante. Quanto mais envereda por um lado fantástico ou cômico, maior sua queda no lugar comum ou no patético. Assim tem sido sua carreira desde a década de 1980, passando pelos prolíficos primeiros anos de sua produtora Milkyway, em meados dos anos 1990, até os três últimos anos, quando foi do medíocre (Linger) ao sublime (Mad Detective), passando pelo piloto automático eficiente (Sparrow), estes dois últimos com a habitual destreza: movimentos incessantes de câmera, impressionante noção de ritmo e confiança em atores com os quais já havia trabalhado anteriormente.

A multiplicidade é expressa, voluntariamente ou não, em Mad Detective, o grande momento de purgação de sua estética, em co-direção com Wai Ka Fai, também um diretor de estilo marcante, e, para muitos, excessivo. 2 Neste grande filme de 2007, o vilão, tal como visto pelo detetive maluco e aposentado que intitula a obra, é constituído por sete personas. Co-existem, dentro desse vilão, a mulher elegante e enérgica, o homem gordo, bobo e covarde, o gangster impulsivo, além de outras facetas menos influentes. São aspectos que, além de compor o personagem em questão, aparecem em outros personagens da filmografia de To: o engravatado meio bobo, o jovem descolado, um cara que usa jaqueta vermelha e rabo de cavalo e um sujeito comum de influência mínima no grupo.

É tentador fazer uma analogia entre essa multiplicidade de personas e as facetas que To tem demonstrado ao longo de sua carreira. Nessa multiplicidade, delineiam-se com mais clareza três perfis. A mulher elegante seria sua parcela maneirista, dos filmes que esmiuçam os confrontos entre as tríades e os crimes dos pequenos gangsteres, ou do sofisticado aparato policial. É o diretor de obras estilosas como Running Out of Time, The Mission, Exilados, P.T.U, Breaking News, o próprio Mad Detective ou os dois Election. O gordo covarde representaria o To interessado em ganhar dinheiro (para bancar os filmes que não vão bem na bilheteria, mas que o deixam com prestígio em festivais internacionais), o diretor de comédias comerciais – românticas ou não – como Summer of Romance, My Left Eyes Sees Ghosts, Love on a Diet, Fat Choi Spirit e outros trabalhos constrangedores. Finalmente, temos o gangster impulsivo, que poderia ser visto como uma espécie de comentário de seus filmes mais destrambelhados e irregulares, obras como Running on Karma, Fulltime Killer, The Bare-footed Kid e Justice My Foot, mas que também está presente em alguns de seus melhores e mais arrojados trabalhos: The Mission, Exilados, Breaking News, o próprio Mad Detective e The Heroic Trio (neste último co-existem os três perfis mencionados). Praticamente toda a filmografia de To é perpassada por uma ou duas entre essas três características dominantes, com algumas pequenas variações entre elas, e diferenças de qualidade dentro de cada bloco de filmes. Se esta parece uma associação livre, e, concedo, estranha, é possível observar, contudo, que o próprio To parece se espelhar, na criação da múltipla personalidade do vilão, em uma espécie de autocrítica de suas diversas personas como cineasta.

Momentos de beleza

Existe sempre ao menos uma sequência de impacto nos filmes livres 3 de Johnnie To. Nem sempre esses momentos são verdadeiramente bons. Mas percebe-se um esforço incrível da parte dele para ter um estilo marcante, um cuidado na composição de cenas e planos que façam cinéfilos suspirarem. Tais momentos servem, na maioria dos casos, como um alívio hedonístico, a vivência do cinema pelo cinema, não como a arte de contar uma história; são a supremacia do charme e do maneirismo sobre a dramaturgia, ainda que esta última exista. Ameaçam a unidade narrativa pelo risco da alternância entre tempos acelerados e tempos mortos, e pelo excesso de clímaxes. A sorte é que Johnnie To filma muito bem, fazendo com que sua ambição de criar impacto pela beleza na sucessão dos planos fique muito perto de ser consumada.

De qualquer forma, é divertido acompanhar, em alguns exemplos, como e quando esses momentos de impacto aparecem, e como e quando se aproximam dessa consumação. Em The Big Heat existe a perseguição na avenida, logo no começo. Há confusão no trânsito, queda, atropelamento, tudo muito físico, rápido e envolvente. Uma câmera esperta, que acompanha toda a ação sempre em lugares privilegiados, permite que o público tenha as sensações dessa aceleração constante. The Enigmatic Case apresenta um duelo de espadas em câmera lenta que só poderia ter sido apresentado dessa forma, graças ao domínio que o diretor tem das mudanças na velocidade da ação. Em Breaking News, há o início de tirar o fôlego, um plano-sequência que nos permite fazer uma aproximação estreita com o estilo de Brian De Palma. Em Sparrow, a cena da travessia da rua com os guarda-chuvas é um primor de construção em câmera lenta, comprovando que To é um dos melhores diretores a usar esse recurso. O excelente Exilados parece uma coletânea desses momentos, o que deixa a fruição comprometida, enquanto os sentidos são paparicados por uma brilhante câmera que desliza pelos cenários, como um artista de circo. Ou seja, ao mesmo tempo temos o maior número de momentos de gênio e o maior número de momentos mornos. Ainda assim, é notável a maneira lúdica como esses trechos são costurados dentro do filme. Em The Mission, provavelmente a obra máxima da carreira do cineasta, o maior exemplo do vigor e da elegância de seu estilo: seguranças de um figurão são encurralados dentro de um Shopping Center deserto. Silêncio e troca de olhares e posições dominam a cena, num dos melhores clímaxes do cinema recente. Há outro: o atirador em cima do telhado do prédio de uma outra rua, portanto numa posição ideal para atacar os seguranças e o figurão. Em Eleição 2, uma perseguição a um menino termina mal para o chefão da tríade. Em Mad Detective, é inesquecível a sequência na sala de espelhos. 4 A inspiração continua sendo a imbatível sequência de A Dama de Xangai, filme dirigido por Orson Welles em 1948. E Mad Detective fica bem perto de igualar o feito. Como Welles, To e Wai aproveitam a construção enigmática dos personagens para explorar todas as possibilidades de reflexão nos espelhos, bem como os tiros, que provocam incontáveis estilhaços, multiplicando ainda mais as personas que se encontravam agrupadas em um único personagem.

As repetições de fórmulas

Johnnie To descobriu muito cedo uma fórmula para o prestígio, outra para o sucesso comercial, e passou a utilizá-las alterando levemente alguns dos ingredientes, de acordo com o roteiro e os atores que tinha nas mãos. A repetição dessas fórmulas, por um lado, enfraquece os filmes, quando são vistos em conjunto num curto espaço de tempo, com seus truques estilísticos se repetindo à exaustão (exemplo: a câmera lenta e certa inconsequência nas reações dos personagens); por outro, enriquece o panorama internacional com uma estética que, se não é inovadora, é muito bem burilada.

A repetição de fórmulas não é necessariamente um mal. A questão é como usar os ingredientes, como dosar os componentes sem que a fruição seja prejudicada, ainda mais em se tratando de To, em que o estilo é dependente de arroubos e excessos da câmera. Exilados e Mad Detective são belos exemplos de repetições que funcionam a favor. Vistos ou revistos após diversos outros itens de sua filmografia, de preferência aqueles que se assemelham aos dois citados, fica mais evidente o porquê dos mesmos truques terem efeitos diferentes. Dependem de ambientação, do roteiro comportar as ousadias com a manipulação do tempo, da inverossimilhança não atrapalhar nossa apreensão do mundo, da organização dos elementos em cena – algo que pode ser prejudicado caso haja o menor descuido. Se algum desses elementos vibrar em outra sintonia, a dissonância pode alterar completamente a maneira como o filme é apreendido, modificando, também, a capacidade de nos entregar ao balé que se descortina à nossa frente.

Para entender os mecanismos que levam Johnnie To à construção de uma carreira sólida como diretor de prestígio, mas paradoxalmente inconsistente em seu desenvolvimento irregular, é necessário um desprendimento de tudo que se escreveu recentemente sobre seus filmes. Sem o entendimento das gafes como peças importantes em sua trajetória, não há possibilidade de se chegar a uma conclusão se ele é ou não um autor. Por outro lado, com a condescendência habitual dos que insistem em promover uma noção cega de autoria, também se torna difícil vislumbrar os momentos em que To se mostra vulnerável e desinteressante mesmo dentro do gênero em que se consagrou, e contornar os clichês de autor consciente de seus pecados, em favor de uma compreensão do movimento pendular que o diretor realmente realizou, entre o flerte aberto com as bilheterias locais e a gratificante reputação de artista nos festivais internacionais.

Talvez a chave para entender o cinema de To esteja mesmo no vilão de Mad Detective. Não temos um único autor, mas sete autores brigando, ora pelos holofotes do reconhecimento artístico, ora por uma posição lucrativa na indústria. O que equivale a dizer que não há caminho a seguir, para o crítico, a não ser o da eterna virgindade diante de seus filmes, pois a multiplicidade anula o ponto de vista, e faz com que cada peça de sua filmografia revele o traço de uma autoria impossível de ser consumada. Esta conclusão deixa seu cinema muito mais interessante, e seus passos futuros ainda mais enigmáticos e instigantes.

Sérgio Alpendre


1. Johnnie To já declarou em entrevistas que substituiu o diretor Andrew Kam, que abandonou a filmagem na metade, e que outros diretores trabalharam no filme, por indecisão criativa do produtor Tsui Hark. Ele não considera The Big Heat como um filme genuinamente seu.

2. Wai Ka Fai, seu sócio na Milkyway, diretor, produtor e roteirista de um filme só, antes da associação com To, Peace Hotel, um bizarro faroeste chinês, produzido por John Woo em 1995. Wai explodiu com seu segundo filme, o alucinado e histérico Too Many Ways to Be Nº1, no qual tentou impressionar a qualquer custo (sobreenquadramentos radicais, lentes grande-angulares dominando, atores superinterpretando). A junção desses dois sócios irresponsáveis (muitas vezes no mau sentido) deu em vários desastres. To desacelera com a mesma facilidade com que acelera as ações, Wai simplesmente entende a filmagem como um parque de diversões, com a câmera se mexendo freneticamente e de ponta-cabeça várias vezes. Em Mad Detective, pela primeira vez, a afetação de um termina no classicismo do outro, originando uma verdadeira obra com um único ponto de vista (situação ideal no cinema).

3. Prefiro livres a autorais, para manter a ideia de autoria estilhaçada, e deixar claro que a noção de autoria, quando se trata de um cineasta tão prolífico quanto Johnnie To, é muito embaralhada. Existem traços autorais mesmo nos filmes mais comerciais. Assim como alguns filmes livres apresentam cenas que parecem aprisionadas por uma fórmula de sucesso.

4. Uma sequência inspirada na casa de espelhos de A Dama de Xangai já havia sido filmada em The Longest Nite (1998), dirigido por Patrick Yau e produzido por Johnnie To e Wai Ka Fai. Curiosamente, Johnnie To, em algumas entrevistas, refere-se a esse filme como sendo seu, o que dá a entender que ele foi mais do que produtor.