Johnnie
To realizou seu filme de estreia em 1979. Insatisfeito com o
resultado, concluiu que ainda tinha muito o que aprender sobre
cinema, e recusou projetos durante alguns anos, só voltando
a
dirigir um longa-metragem em 1986. Difícil imaginar isso de
um
diretor que depois filmaria dois longas por ano, às vezes
até
mais, porém a verdade é que To começou
sua
carreira dessa forma tenaz e cautelosa.
Seu
primeiro grande filme, The Big Heat
(1988), segue aquelas que eram as características mais
marcantes do cinema de ação de Hong Kong nos anos
dourados: iconicidade de gestuais atípicos, visual
incandescente, sentimentalismo over,
reconstrução cubista dos signos já
desgastados
em Hollywood, uso inflacionista da câmera lenta, do sangue
espirrado e de tudo mais que vise potencializar a performance da
violência criando um absurdo espetáculo do mundo
físico.
Tiroteios, perseguições, emboscadas e outros
diversos
elementos do thriller policial, do filme de gangster ou do western se
transformam em signos puramente plásticos, que To fermenta,
dilata ou distorce a seu bel prazer.
O
contraponto dessa
folia de imagens incendiárias é aquela melancolia
saturnina conhecida desde que Melville decidiu filmar determinados
gêneros – o noir,
em especial – num momento em que estes não mais
correspondiam à realidade cultural e social do
público
que frequentava os cinemas. As figuras outrora febris do cinema
policial vagavam taciturnas pelas ruas de um mundo frio, lento e
silencioso. Em Johnnie To, ainda que em versão atenuada, a
melancolia retorna (notar a quantidade de romances frustrados, de
doenças incuráveis e de personagens que vivem uma
contagem regressiva para a morte), fazendo eco à
visão
desencantada dos cineastas de Hong Kong de sua
geração.
Mas o desenho da
ação
não é descarnado e descolorido como em Melville
(de
quem ele fará um remake agora, O
Círculo
Vermelho): To
trabalha o
maneirismo em meio quente, agitado, brûlé.
O
momento atual de seu cinema é o reflexo de uma passagem
começada após ele alcançar uma certa
excelência
de estilo no final dos anos 1990: passagem do círculo
à
elipse e à hipérbole, da forma depurada (The
Mission, Running
Out
of Time, A
Hero Never
Dies)
à forma exacerbada
(Exilados, Mad
Detective, Sparrow).
De um alinhamento quase geométrico das
ações,
ele passa à excentricidade completa.
Encenação e
decupagem, que eram redondas em The Mission (1999),
agora mais parecem serpentes de vapor. A câmera e o que
está
na frente dela se tornam voláteis, e a mise en
scène
esmiuça a ação num tipo de registro
que vai
descambar naquele tour de force farsesco dos finais
de
Exilados e Mad Detective. Em Sparrow,
num formato mais singelo, a ação se
contrai para
dentro do instante, do ínfimo, como na magnífica
cena
dos guarda-chuvas: o
tempo congela e
a ficção abre espaço para um jogo que
só
pode acontecer no vazio, na abstração. To leva ao
paroxismo aquele desprendimento narrativo, aquela
duração
desperdiçante, aquela desaceleração
típica
de um cinema que chegou “depois”.
Importante
deixar claro
que não há passagem no sentido
esquemático. É
possível verificar, de um filme para outro ou mesmo de uma
sequência para outra, uma oscilação
interna entre
as qualidades do diretor. No ano de 2004, por exemplo, ele vai do
virtuosismo épico (Breaking News)
à leveza de estilo (Yesterday Once More)
e à junção de ambos (Throw
Down).
Este terceiro homenageia as “sagas de
judô” de
Akira Kurosawa através de uma receita antiga em HK:
comédia
+ artes marciais. A sequência da pancadaria no restaurante
lounge onde os
protagonistas trabalham como músicos é das
melhores da
carreira do diretor: o som ambiente é abafado e tudo que
ouvimos é a cantoria improvisada por um personagem
abobalhado;
sua voz ecoando pelo espaço, enquanto assistimos
à
briga em câmera lenta, dá à cena um
clima etéreo
que será retomado no duelo final. As principais
características de Throw Down são
justamente as que se tornariam ainda mais recorrentes a partir de
Exilados: cenas
detalhistas sem finalidade dramática imediata,
dissolução
brincalhona do clima pesado do cinema de ação,
prazer
diante do que não tem regras a não ser as
inventadas
pelo cineasta no intuito de criar mais confusão e mais
espetáculo.
Como
John Woo fizera antes dele, Johnnie To transforma o mundo numa
superfície icônica e faz dessa
superfície a
própria “realidade” dos filmes.
Até mesmo
os componentes psicológicos, espirituais e sentimentais dos
personagens se encontram achatados ou transfigurados em envelopes
externos, a exemplo do corpo-prótese de Andy Lau em Running
on Karma
(2003), uma capa de
músculos que nada mais é que o disfarce de uma
alma
robusta, que de certa forma reencarnou em um mesmo corpo, buscou uma
segunda vida no mesmo suporte carnal que já
possuía
(ele é um monge que, após sofrer um trauma, se
torna
fisiculturista e stripper): a vida interior dos personagens interessa
ao filme – um de seus melhores – apenas na medida
em que
se presta ao baile de fantasias promovido pelo diretor.
Os
personagens de Johnnie To nascem das ações que
executam, e só existem no presente dessas
ações.
Antes e depois do filme, eles não existem – o
oposto,
portanto, dos personagens de Garrel ou Pialat, que sempre
pressupõem
uma vida para além do filme. Paralisados na pose ou
embalados
no movimento, os personagens de To precisam do quadro para viver. PTU
(2003) é esclarecedor a esse respeito: roteiro
mínimo,
narrativa condensada numa única noite em que tudo acontece,
dilatação das ações bem
como dos
intervalos entre as ações. O tempo de
existência
dos personagens é só o tempo de
duração
do filme (ou do plano, dependendo da situação), e
portanto eles têm de aproveitá-lo ao
máximo,
fazer tudo que der e o que não der. O
inverossímil não
é apenas artifício, mas lei e necessidade.
Paralelamente
à
indolência, ao torpor, alguns filmes recentes de To
têm
ficado também mais líricos. É um
aspecto que ele
tornou mais forte depois do dístico Eleição (2005 e 2006),
no qual, embora
não rejeitasse de todo os códigos e procedimentos
extraídos do filme de gangster em chave
operística, ele
saía um pouco do mundo onírico da
referencialidade e da
iconicidade para abordar uma violência intimamente ligada
à
organização da sociedade tal como a compreende.
Nos
filmes seguintes, To sentirá a necessidade de
contrabalançar
a seriedade de seu grande afresco político por meio de uma
atmosfera menos realista e mais feérica. E mais
diversificada: em algumas cenas de Mad Detective (2007),
um
thriller paranormal encantadoramente destrambelhado, somos
surpreendidos menos pela virtuose da encenação do
que
pelo aspecto poético de uma chuva, de uma esquina, de uma
rua.
Em Sparrow (2008),
idem. O resultado é a composição de
uma visão
lúdica do espaço urbano que revela bastante sobre
a
sensibilidade de To às particularidades de Hong Kong.
O
lado menos
interessante das mudanças recentes consiste na acentuação de uma atmosfera asséptica
– já
anteriormente presente, e observada sobretudo nas fracas
comédias
românticas do diretor – que amortece as qualidades
do
artista circense de Heroic Trio e
Mad Monk. A limpidez
de Sparrow tem um quê
de “cinema executivo”, feito com
sofisticação
e bom gosto, mas sem gordura e sem pimenta, ou seja, sem uma parcela
da graça (decorrência natural de uma arte de feira
que
se tornou arte de galeria). Aquelas cenas de Chow Yun-Fat
de
cabelos longos à anos 70, pilotando uma moto, trabalhando
como
operário e cuidando de um menino de dez anos que mais parece
seu irmão caçula do que seu filho, em All
About Ah
Long (1989),
ficam cada vez mais
distantes da realidade atual do cinema de To. Existe lá um
valor corporal do conteúdo afetivo da narrativa, expresso na
relação de Ah Long com o filho e com a ex-mulher
(interpretada por Sylvia Chang, diretora que começou a
filmar
na mesma época de To e é um dos nomes de relevo
da
primeira geração da Nouvelle Vague taiwanesa),
que faz
bastante falta nos filmes românticos rodados por ele
recentemente. All About Ah Long é
ambientado em locações que têm o exato
peso
dramático de cada situação encenada,
enquanto a
luz arty dos seus
últimos filmes, por sua natureza mesma, atua apenas nas
camadas fantasmáticas dos espaços. O que se perde
é
evidente. O que se ganha está melhor representado nos filmes
de ação do diretor, que tiram sua beleza da
própria
diluição líquido-vaporosa do mundo,
com a perda
do volume real das coisas favorecendo a aparição
de uma
versão abstrata das figuras violentas do thriller.
Cabe,
por fim, ressaltar a importância dos atores no cinema de
Johnnie To, em particular daqueles que trabalham com ele
frequentemente: Simon Yam, Andy Lau, Roy Cheung, Cing Wan Lau e,
sobretudo, Suet Lam, cujo rosto redondo, meio clown,
meio herói, encarna perfeitamente um cinema que, em seus
melhores momentos, é flácido e sem vaidade
excessiva.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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