“Boa sorte com o Mundo”
(frase de Beatrice para sua filha
caçula, em O Preço da Solidão)
Antes de tudo, melhor eliminar uma possível confusão: o
título deste texto não pretende dizer que Paul Newman era um diretor omisso ou
discreto. Deixemos para outra ocasião (e para outras revistas, que certamente
já o fizeram quando de sua morte) a discussão sobre sua personalidade nos sets.
O que buscamos aqui é uma reflexão estética sobre os filmes que ele dirigiu.
Detendo-nos sobre os três primeiros filmes que ele realizou,
privilegiaremos as questões (existenciais) que mais lhe eram caras – ao menos
naquele período de sua vida. Mais do que detalhar cada filme de maneira
individual, é importante que tentemos detectar recorrências, reflexos, rimas e
dissonâncias dentro de um conjunto. Portanto, buscar a Obra através dos filmes
e a partir dos detalhes.
Em primeiro lugar, é curioso notar a extrema atenção
dedicada às mulheres. Ele, que como ator transitou por diferentes papéis em
que, na maior parte das vezes, sua masculinidade e virilidade eram traços
marcantes e constitutivos dos personagens, que agiam em universos cuja
violência era característica natural (uma vez que regidos por homens). Mas não
surpreende que Newman tenha preferido filmar as mulheres ao invés de
conspirações, perseguições e tiroteios. Ao contrário, parece ter sido um
caminho extraordinariamente lógico: para todo homem, o alívio ou o conforto
podem ser encontrados nas mulheres. Ou, ao menos (ou também), um foco de
interesse sensível e sensual que possa balancear um pouco a muitas vezes áspera
guerra na qual vivem os homens em seu cotidiano marcados pelo trabalho, missões
e responsabilidades de todo gênero.
Em Uma Lição Para não Esquecer, há um momento em que
o patriarca da família de madeireiros (interpretado por Henry Fonda), quando
questionado pela nora, Viv Stamper, sobre o porquê dos homens da família não
pararem de trabalhar, responde: “Para seguir em frente. Trabalhar, dormir,
fazer sexo, comer e beber. E a vida é só isso, querida”. A nora, no caso,
anseia pelo dia em que seu marido, ao invés de sair para trabalhar bem cedo e
só de noite retornar, possa simplesmente acordar, tomar café, fazer amor,
almoçar, conversar, em suma: anseia pela companhia de seu homem. Esse dia nunca
chegará e, cansada pela rotina entediante de dona de casa, ela terá que fugir
em busca de algo que a satisfaça de maneira integral. Insatisfação que
encontra-se também na protagonista de Rachel, Rachel, porém com a diferença
de que esta é uma “menina” de 35 anos que ainda não descobriu o mundo>. Como que em uma evolução cronológica da vida, seu
terceiro filme, O Preço da Solidão, é centrado em Beatrice, uma mulher mais
madura, que já cumpriu boa parte de seu trajeto pelo mundo – inclusa aí a
desilusão com o casamento –, mãe de duas filhas e viúva.
Beatrice, frustrada e neurótica com o fardo de criar duas meninas
sozinha, pode ser vista como a Rachel em um estágio mais avançado da vida, uma
vez que Rachel, Rachel termina com uma senhora andando de mãos dadas com
um menino pequeno, na praia: uma sugestão de que a protagonista, após
desilusões amorosas, criará um filho sozinha. Rachel, Rachel possui em
seu enredo aquilo que pode ser considerado o germe de toda a história das
personagens femininas de Paul Newman: o desapontamento com um homem. Nos filmes
seguintes, continua-se a explorar de maneira prática as conseqüências naturais
do desencanto. Não são somente as mulheres solitárias (abandonadas ou
fugitivas) que materializam na tela os dissabores da (des)união entre os sexos.
Abundam nos filmes filhos sem pai, ou frutos de relações
anteriores já dadas por encerradas pelos patriarcas. É o caso de Leland Stamper,
o filho pródigo que a casa retorna em Uma Lição Para Não Esquecer. Com o
pai (Henry Fonda) já envelhecido e sem mãe, ele encontra em Viv Stamper (a
mulher insatisfeita de seu irmão) um ponto de identificação: ambos são pessoas
frágeis que ninguém ainda assumiu de maneira integral. Ele esboça uma fuga com
Viv, mas termina o filme dando continuidade a sua vida ao lado do irmão.
Dentre os vários temas que poderiam ser extraídos dos filmes
de Paul Newman, escolheu-se o da condição feminina não só por ele ser o mais
evidente (reforçado pelo fato de que estes filmes foram realizados no início da
década de 70, quando o dito movimento feminista estava em pauta), mas,
principalmente, porque é uma visão sobre a (e da) mulher na abordagem de um
homem.
É essa questão que parece guiar todo o aspecto estilístico
da direção de Newman. Não estamos falando apenas de concepção de câmera e
enquadramentos (por mais que estes sejam decisivos), mas sim da estrutura geral
de seus filmes. A galeria de personagens, já comentada, é uma delas. Seus
roteiros (baseados em peças ou romances de viés existencialista) procuram
seguir a direção natural da vida e, com maior ou menor êxito estético, pode-se sempre ver ali a expressão de algo muito
sincero. Sincero no sentido de não ter vergonha ou pudor de mostrar aquilo que
o aflige.
Nesse sentido, Rachel, Rachel é seu filme mais
problemático. A evolução do roteiro se dá de maneira extremamente convencional
(Rachel ingênua – encontro com “a vida” – desilusão – seguir em frente mesmo assim),
recheado de um onirismo que, por meio de uma montagem de inserções e
lembranças, procura dar conta do subconsciente de sua personagem. Não são raras
as vezes em que a Rachel adulta, vivenciando situações no presente narrativo, é
substituída na tela por sua versão infantil, numa alusão ao fato de que aquela
personagem nunca superou os traumas de infância. É um tipo de procedimento que
pode ser visto em alguns filmes de Buñuel ou Maya Deren, com a diferença de que
estes usaram o mecanismo principalmente (mas não apenas) para criar filmes
unicamente “mentais”, derivados do subconsciente, ao passo que Newman explora o
choque entre a realidade narrativa e a mental. Contraste, complemento e
dependência mútua entre essas duas realidades, nem tão facilmente discerníveis
assim. A infância e seus traumas, cronologicamente já passados, habitam o
presente com tamanha força que, mais do que simples influência da memória, se
tornam o próprio condicionante do presente. Pode-se
deduzir disto uma certa concepção de personagens (e por extensão, de seres
humanos) que Paul Newman deixou muito claro nestes filmes. É a idéia de que
todos seríamos crianças que não nos sentimos em casa no mundo.
Em reação a esta condição inescapável, só restaria algo: se
mover. De maneira mais ampla (que diz respeito a planos de vida) temos Viv
Stamper, que foge da casa do marido em busca de algo diferente, Rachel que
deixa a mãe para trás e entra em um ônibus sem destino certo, Beatrice que
planeja abrir uma lanchonete (que seria provocativamente chamada de “O Homem na
Lua”) mesmo sem ter condições reais para isso, ou ainda a filha de Beatrice,
Matilda, que tem planos de carreira relacionados a descobertas científicas e
que, neste conjunto de filmes, representa o contraponto de positividade em
relação à negatividade das outras mulheres. Apesar de muito jovem, ela possui
um projeto, ou seja, um otimismo que fecha os olhos para a realidade
racionalmente pessimista a fim de seguir em frente. O que é mais
cinematográfico, no caso, é como nos detalhes – naquilo que não é mais roteiro
e sim direção – essa busca por movimento se materializa nos corpos. Em sua
primeira cena, Rachel reluta em se levantar da cama para mais um dia de vida.
Acaba retirando seu corpo da inércia e irá encarar o mundo. Já sua mãe e as
velhas senhoras da pensão de Beatrice não possuem mais a mesma energia para
mover seus corpos. Utilizam “andadores”, passam a maior parte do tempo
sentadas, precisam de ajuda para pegar ônibus. A própria Beatrice, frenética e
estressada, reluta em não parar quieta por um segundo sequer, e encontra um
momento de alegria quando lhe é oferecida a chance de dançar. Uma imagem de O
Preço da Solidão, em especial, é definidora deste desejo de reação:
Beatrice e suas filhas observam pela janela uma velha senhora que está imóvel
em seu quarto há 3 dias. “Será que está morta?”, indagam. A senhora então faz
um leve movimento com a cabeça, vagarosa e sem energia, mas ainda assim um
movimento. Ainda assim um desejo de resistir.
Em complemento aos impulsos de movimento (metas de vida ou
ações do corpo), há os momentos de fuga psíquica. Nesses momentos de
interiorização, a realização é garantida, ao contrário de quando a satisfação
depende do mundo externo. É isso que ocorre quando Viv Stamper ouve uma música
na sala de estar e quando Rachel cantarola na sala de aula vazia. Momentos de
introspecção que, por breves instantes, oferecem desligamento do exterior
hostil. No entanto, tanto a ligação urgente (que vem anunciar um fato perigoso)
para a casa dos Stamper quanto o diretor da escola que vem comunicar a Rachel
um problema envolvendo um aluno acabam por interromper abruptamente os momentos
de paz. A realidade exterior não tem hora para chamar; ela não oferece
descanso.
Já a realidade interior é carregada de solidão, incompletude
e do vazio não preenchido. De novo, são os detalhes que dizem mais do que
qualquer roteiro ou montagem rebuscada – são eles que dizem mais sobre a obra
de Newman do que filmes inteiros em si. Há sempre várias imagens dessas mulheres
enquadradas em plano geral, diminuídas graficamente pois frágeis, tendo ao seu
redor cadeiras vazias que as cercam. Corpos femininos enquadrados pelo espaço.
Ou projeção do interior de suas mentes no espaço? Exterior e interior não podem
ser completamente separados sem que com isso haja perda significativa de
compreensão. Viv Stamper desabafando sobre sua vida é filmada com os fios do
varal funcionando como anteparos, aprisionando-a como um passarinho. São esses
varais que a separam de Leland, que a ouve com atenção, que a deseja, mas que
talvez não a compreenda por inteiro. Os homens de Uma Lição Para Não
Esquecer, apesar de sua força e bravura dedicadas ao trabalho de cortar
madeira, muitas vezes são enquadrados em planos muito abertos (amplificados pelo
uso do scope) que mostram o quanto a natureza é muito maior que eles, e
não importa se irão vencer ou falhar em sua missão, pois quanto mais lutam,
mais suas mulheres cultivam o ressentimento pelas suas ausências.
Rachel, Viv Stamper e Beatrice. Todas possuem uma certa
mudança de rota, todas se movimentam em busca de modificações para suas vidas.
Em suas individualidades, há sempre um ponto de fuga. Mas, observando-as em
conjunto e vendo como elas representam diferentes estágios de vida daquilo que
poderia ser uma única mulher, o que fica então é a marca de uma profunda ferida
aliada a um sentido de desespero sem fim, cíclico. Nesse conjunto de três
filmes, a continuidade natural, o futuro, é materializado na filha de Beatrice,
Matilda. A imagem final de O Preço da Solidão mostra o seu rosto e sua
esperança – não sem melancolia – de que as coisas irão melhorar. A imagem é
congelada.
Fernando Watanabe
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