Como um segredo bem-guardado, os filmes de Paul Newman como diretor
desvelam-se aos poucos, uma peça complementando a outra, formando um tecido
frágil, do qual nos aproximamos de forma tentadora e receosa ao mesmo tempo. A
exemplo do experimento de Matilda em O Preço da Solidão, a cena em seus filmes é um pequeno
laboratório no qual os personagens são dispostos de determinada forma para
reagirem um com os outros. O resultado é um cinema de observação “controlada”,
de apresentação do desenrolar de acontecimentos dentro do (pequeno) escopo
proposto. Não à toa a teatralidade se faz presente de forma tão marcante. O
teatro não está apenas na origem de seus roteiros, mas na própria concepção do
seu cinema. Os atores assumem um palco central cuja falta de amplitude espacial
corresponde a uma expansão de expressão.
De fato, todos os seis filmes dirigidos por Newman se passam em
ambientes restritos, habitados por um grupo familiar cujos membros entram em
conflito por impulsos internos mal resolvidos com o mundo exterior. Mesmo em Uma Lição Para Não Esquecer, em que boa parte da ação se passa ao ar livre, a sensação
de que estamos diante de um universo fechado está presente. Este universo
fechado é precisamente o que sufoca os personagens, o cerco que se forma em seu
entorno, que os impede de serem “livres e soltos”. Os personagens de Newman são
seres ancorados numa determinada realidade, amarrados por laços familiares e
confrontados com a necessidade de suprir sua subsistência (seja ela material ou
espiritual). E a origem do conflito está no fato de que embora esta realidade na
qual se encontram imersos pareça seu habitat natural, eles anseiam por algo
além, que talvez nem eles mesmos saibam nomear.
De alguma forma, podemos dizer que Newman retoma o melodrama familiar
clássico para retrabalhá-lo sob outro viés. Embora conectados a estruturas
estabelecidas e expectativas relacionadas a posturas morais razoavelmente
inflexíveis, seus personagens são habitantes de um mundo moderno, com o qual
guardam uma relação confusa, entre a inadequação e o desejo profundo de lançar-se
em direção à incerteza. Seu trabalho de mise-en-scène “teatral”,
portanto, revela não apenas uma proposição estético-conceitual, como um impulso
de rarefação do drama, alinhado com a renovação de Hollywood nas décadas de 60
e 70.
Sua câmera é “complacente” com o desenrolar dos fatos, seja em momentos
de grande alegria e emoção, seja em picos de conflito e dor. Disto resulta uma
certa “platitude” dramática que trabalha para igualar em importância os
pequenos e os grandes acontecimentos, as venturas e desventuras, transformando
tudo no fluxo da vida que corre, ignorante da classificação dos momentos em
bons ou ruins. O afogamento de Joe Ben em Uma Lição Para Não Esquecer talvez seja o mais belo exemplo disto. O risco de vida e a mais bela
demonstração de afeto caminhando juntos para construir um clímax mais do que
memorável; mas Newman registra calmamente as tentativas do primo de salvá-lo, e
o crescendo de um suspense realista demais atinge o insuportável, até que o
inevitável acontece. É ao entregar-se à duração em uma cena supostamente de
ação como esta, que Newman afirma em definitivo a presença de uma dimensão
reflexiva que paira sobre seus personagens, fazendo-os espelhos de questões
sócio-econômico-existenciais muito mais amplas do que suas pequenas vidas.
Há, claro, uma grande violência neste processo, cuja transfiguração não
é apenas a da morte, como na cena citada acima. A tensão entre o plano da
interioridade (caracterizada sobretudo como sonhadora e idealista) e as
imposições do mundo material traduz-se numa brutalidade generalizada, ainda que
um quê dissimulada. Brutalidade presente na queda agressiva das árvores em Uma Lição Para Não Esquecer, na qual a natureza parece anunciar sua pequena vingança
particular por vir; na demolição dos prédios e no descontrole da máquina de
montar caixas de papelão em Meu Pai, Eterno Amigo, nos quais a mecanicidade
transforma-se num monstro que ameaça voltar-se contra seus criadores. Ou ainda,
de forma ligeiramente deslocada, no assassinato do coelho de estimação de
Matilda por sua mãe em O Preço da Solidão.
Este filme, aliás, é todo ele pautado por um sentido de brutalidade avassalador.
Não se trata apenas de uma mãe desajustada que tenta criar suas filhas sozinha,
mas de uma mulher que extrapola seus impulsos auto-destrutivos para sua
descendência. Sua falta de rumos, sua chafurdação numa realidade morosa se
manifesta numa tentativa expressa de paralisação de seus dois “braços” estendidos
para o mundo exterior, as duas meninas. Da mesma forma, em Rachel, Rachel,
Rachel se sente aprisionada pela mãe, privada de vida e de sociedade, e Tom, em À Margem da Vida, acorrentado pelos grilhões de um conjunto de
expectativas maternais que se revelam sem sentido para sua realidade palpável e
seus anseios particulares.
O que é, então, que está em jogo em todas estas famílias filmadas por
Newman? Uma crise entre o modelo tradicional e conservador (em que os papéis
designados devem ser desempenhados sem contestação) e o irromper das liberdades
individuais e das rebeldias, que levaria, em última instância, ao implodir do
núcleo familiar fechado? O embate entre a pequena célula familiar e o organismo
sócio-econômico que a contém, em curso de uma transformação veloz que ameaça
dinamitá-la como entidade significativa? Ou ainda: uma espécie de “MacGuffin temático”
pra abordar dilemas existenciais de um Sujeito que, dividido entre suas funções
ativas e seus ensejos pessoais, busca definir sua nova configuração? Eu diria:
um pouco de tudo isso.
É fascinante perceber como as relações pai-e-filho e mãe-e-filha se entrecruzam
com as questões de futuro profissional e trabalho efetivo nos filmes do
diretor. Os filhos são os prolongamentos de seus pais no tempo, a continuidade
de sua herança. Mas o que fazer quando uma ruptura profunda no “funcionamento
automático” da engrenagem faz uma peça parar de responder da mesma forma? De
alguma maneira, o que Newman filma é o enferrujar de uma sociedade fundada no
trabalho (sobretudo não-intelectual) como edificação do sujeito livre e
soberano, e o processo de transição para um sentido de liberdade derivado de
outros princípios. Em vez de um casamento, uma paixão, em vez de um emprego,
uma profissão de fé, em vez do gesto apropriado, o gesto correto. Por isso,
talvez, a predominância de personagens femininas: símbolo da fragilidade e relegada
a um papel secundário na lógica social patriarcal, a mulher é aquela que
precisa buscar forças para se erguer, para encontrar seu lugar próprio e “sair
do casulo”. Ponto reforçado pela própria caracterização das personagens de
Newman: tímidas, desajeitadas, fora dos padrões.
Podemos dizer, pois, que o cinema de Paul Newman como diretor dedicou-se
a encenar ritos de passagem íntimos e cinematográficos ao mesmo tempo.
Processos que descrevem de forma lenta e suave a transformação de um registro
de funcionamento a outro. De um plot delineado por princípios morais à
captura de modulações comportamentais dentro da cena; de uma composição
familiar tradicional à implosão do sentido cristalizado dos laços familiares;
da edificação pelo trabalho massivo à emancipação através do desenvolvimento
intelectual; da timidez e submissão às pressões do entorno à conquista de um
lugar único no mundo. E, como toda a passagem implica numa morte, todos os seus
filmes apresentam também, de uma forma ou de outra, falecimentos. Sejam eles
literais, como o de Henry e de Joe Ben em Uma Lição Para Não Esquecer, ou os
dos três personagens de A Caixa de Surpresas, que atravessam seus últimos dias
como um enfrentamento de tudo o que são ou foram, ou ainda o de Harry em Harry
and Son; sejam figurados, como o da Rachel subjugada à mãe em Rachel,
Rachel, ou o da Laura presa em si mesmo em À Margem da Vida. Tudo
se passa como se, sem perceberem, os personagens fossem ameaçados pelo
corrompimento de uma cena, e precisassem se desvencilhar dele para afirmar a vida
que segue apesar de tudo. Apesar, sobretudo, das rupturas que a fazem
contemplar abismos de tempos em tempos.
Tatiana Monassa
FILMOGRAFIA DE PAUL NEWMAN COMO DIRETOR:
- Rachel, Rachel, 1968
- Uma Lição Para Não Esquecer (Sometimes a
Great Notion, 1970)
- O Preço da Solidão (The Effect of Gamma Rays
in Man-in-the-Moon Marigolds, 1972)
- A Caixa de Surpresas (The Shadow Box, 1980 - TV)
- Meu Pai, Eterno Amigo (Harry & Son, 1984)
- À Margem da Vida (The Glass Menagerie, 1987)
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