Na
obra já não devidamente prestigiada de Paul
Newman como
diretor, há um filme em particular, The
Shadow Box
(1980), que
é menos
prestigiado ainda, porque feito diretamente para a TV, cujos meios e
cuja linguagem pouco carregados de “artisticidade”
não
costumam atrair a atenção e o respeito dos
amantes de
cinema (tampouco dos especialistas: basta pensar na generalizada
ignorância quanto às obras de teleastas como
Claude
Santelli e Marcel Bluwal). Em geral, quando se pensa em
telefilme, vem à mente um subproduto folhetinesco recheado
de
clichês, de atores ruins, de mise en
scène pobre, de trama romanesca vagabunda, de
temas herdados dos
gêneros
menores do cinema, de cenários reaproveitados, personagens
pouco complexos, interpretação limitada,
predominância
de primeiros planos, ausência de profundidade de campo,
imagem
plena de legibilidade mas carente de expressão
artística
individual. Embora seja válida para uma grande parte do
universo dos telefilmes, essa lista de características
não
só se mostra inadequada para abordar as incursões
televisivas de um Rossellini, de um Renoir ou de um Welles como
também esquece de fazer justiça a algumas das
vantagens
e dos proveitos que um bom diretor pode tirar de tal modelo de
produção.
Menos
embriagada de orgulho artístico que o cinema, a
televisão
pode induzir uma abordagem bastante direta do conteúdo
dramático, permitindo que o interesse de uma cena
não
se julgue pela precisão de um raccord,
pela plasticidade de uma composição, pelo luxo de
um
cenário nem pela nobreza de um diálogo, mas pela
verdade de uma atuação e pela justeza de um
olhar. Foi
isso, aliás, que nos anos 80 levou Éric Rohmer a
sair
em defesa do telefilme, primeiramente elogiando algumas das
qualidades que nele enxergava, posteriormente fazendo um filme para
ser exibido na televisão antes de chegar aos cinemas. E
não
se trataria de um filme qualquer, mas de O Raio
Verde.
Joël Magny comenta esse encontro de Rohmer com o telefilme num
trecho de seu livro sobre o cineasta:
“Os
atores, em
geral pouco conhecidos, revelam [no telefilme] uma naturalidade e uma
originalidade que buscamos em vão na média da
produção
francesa. A televisão parece ter melhor retido a
lição
da Nouvelle Vague que o cinema profissional, onde se manifesta cada
vez mais um retorno com força da
tradição da
qualidade. O Raio Verde tem o
porte de um telefilme de pequeno orçamento, onde tudo
é
centrado sobre os atores e posto em obra para fazer passar a
história, o diálogo e o jogo dos corpos, dos
rostos e
das vozes.” (Éric Rohmer,
Éd. Rivages/Cinéma, 1986, p. 190)
O
que está em
causa é um
retorno ao ator,
uma possibilidade de trabalhar sobre a duração e
o
improviso, tornar a continuidade
dramática uma
realidade sensível, suscitar uma dramaturgia que
não
elimine todas as vacilações da cena ou os
“erros”
do diálogo. A força expressiva da
interpretação
é privilegiada em detrimento da retórica do
roteiro ou
do “filmar bonito”. A mise en
scène abandona o que é
acessório para ir direto ao
essencial:
a matéria humana do filme. Foi com essa técnica
simplificada que Rohmer chegou a uma de suas obras-primas.
Seis
anos antes, em The Shadow Box,
Paul Newman já demonstra conhecer o caminho: preconizar a
cena
mais que o plano, a variação do ponto de vista
mais que
o efeito do corte, a força da atuação
mais que a
da iluminação e do quadro. A complexidade deve
estar no
personagem, e não nos enquadramentos ou na
movimentação
da câmera (o que não impede estes de serem
belíssimos,
diga-se). Newman não fez um uso sistemático do
plano-sequência, como faria Rohmer nas cenas de
refeição
de O Raio Verde no
intuito de garantir aquela apreensão total do trabalho da
atriz Marie Rivière. A impressão que temos ao ver Shadow Box, mesmo assim, é a de uma duração completa da cena,
um bloco dramático que não parece ter sido forjado na
montagem,
mas sim vivido no set, sem interrupções
– como no
teatro.
Se
no começo dos
anos 60 a eventual parceria estética entre
televisão e
cinema se dava menos em termos dramáticos do que na
potência
do registro direto e das emissões a céu aberto,
que
representavam um contraponto radical ao huis-clos
teatral dos
dramas de estúdio, na virada dos anos 70/80 o processo se
inverte e a televisão será para alguns cineastas
o
lugar de um retorno ao teatro. É
o que possuem em comum telefilmes tão distintos como The
Shadow Box e O
Milho
Está Verde (George
Cukor,
1978). O cinema, ao mobilizar sua herança
teatral,
evidenciava aquilo que o separava dela, e o teatro ficava
lá,
atuante, porém misturado ao fundo de nitrato, impedido de
chegar à superfície da cena/tela e se fazer
tão
presente quanto a pulsação da luz e o
espetáculo
do movimento. Na TV, por algum acordo tácito, as marcas
teatrais não precisam ser tão
disfarçadas,
recalcadas, invisibilizadas. O teatro aflora, a
caixa televisiva reencontra o cubo cênico quase intacto.
Em
The Shadow Box, o
drama adaptado da peça de Michael Cristofer emerge com a
força
de um ciclone (mas com o silêncio de uma brisa) e abre uma
fenda entre o cinema e a televisão, permitindo que surja
entre
eles uma coisa chamada vida. O lirismo por vezes irrompe dos
diálogos
com uma liberdade teatral quase intolerável, para depois se
ajustar na cena através da arte sutil de Newman, realizador
completamente consciente dos excessos e das faltas inerentes a um
cinema que se destina a abordar frontalmente os mais complicados
sentimentos. O enxuto desenho dramático do filme consiste
nas
visitas de parentes e amigos a pacientes terminais de uma
clínica
alternativa localizada no meio de um bosque. Todos estão com
a
sensibilidade à flor da pele, pois sabem, no fundo, que
aquele
pode ser o último abraço. As cenas mais intensas
do
filme são justamente aquelas em que os personagens
não
têm mais para onde ir, o assunto não têm
mais como
se esconder por trás de conversas banais, e vem à
tona
a doença, motivo pelo qual, para o mal e para o bem, eles
estão reunidos naquele momento. Lá onde nove
entre dez
dos cineastas contemporâneos badalados em festivais e salas
de
arte arrumariam uma desculpa e fugiriam (pela elipse e pelo mutismo,
mas também pela fabulação over,
pela criação de um estranhamento anti-realista),
Newman
finca os pés no chão e chega ainda mais perto do
coração do problema.
A
encenação desse núcleo pulsante do
drama,
contudo, não é eloquente. Há uma
delicadeza no
trato, uma aproximação cuidadosa dos personagens
mesmo
em suas explosões à beira da histeria. Newman
também
não busca, por outro lado, o minimalismo (que já
se
tornou, convenhamos, uma das formas de eloquência da
contemporaneidade). Ele quer apenas a paciência e a entrega
necessárias para ouvir os personagens durante
longuíssimos
diálogos, confiando na existência deles,
ampliando-a por
meio de focalizações discretas. Os closes
são
bem menos numerosos que os planos gerais e planos médios que
colocam os personagens convivendo em duo ou em trio, até o
momento inescapável em que o corte chega para marcar aquilo
que, profundamente, separa uma experiência da outra (a de
quem
tem a doença e a de quem não tem). A
sequência
que culmina no acting out
de Christopher Plummer, diante de uma Joanne Woodward e um Ben
Masters absolutamente perplexos, é um exemplo de como essa
cisão se impõe.
Em
face da morte
Examinar
a natureza da morte de uma posição em que
não
sejamos atingidos senão esteticamente, e de onde possamos
perscrutar, desse modo, suas forças e seus movimentos:
é
a isso que nos capacita a arte, ou melhor, alguns artistas especiais.
Paul Newman é um deles. Numa cena de Uma
Lição
para Não Esquecer (Sometimes
a Great Notion,
1970), ele chega
a essa contemplação aguda da morte, que somente
os
grandes (quer da literatura, do teatro, da pintura, do cinema...)
conseguiram, e mesmo assim em momentos raros, às vezes numa
única vez.
Antes
de descrever a cena, é preciso situá-la no filme:
Uma
Lição para Não Esquecer mostra
uma família de madeireiros do interior do Oregon liderada
por
Hank Stamper (Newman), seu pai Henry (Henry Fonda) e o primo Joe
Ben (Richard Jaeckel). Eles se opõem aos sindicalistas
locais e resistem hostilmente a uma greve que se anuncia (a primeira
cena consiste neles expulsando um grevista à base de
dinamite). “Never give an inch”, que virou o
título
do filme na Inglaterra, é o lema gravado numa placa (de
madeira, naturalmente) pendurada na sala. Os Stampers formam uma
espécie de família ciclópica ou
“horda
primeva” que não tolera a ameaça
externa sob
nenhuma circunstância. Quem tentar impedi-los de seguir seu
curso, será repelido com brutalidade. No fim de semana eles
se
embebedam, jogam futebol na praia, brigam, continuam convertendo
energia psíquica em ação exterior.
Leland
(Michael Sarrazin), que volta à casa depois de muito tempo
fora por conta da universidade, em princípio contrasta aos
demais membros da família Stamper uma sensibilidade mais
delicada, um porte físico mais frágil, uma
cultura de
cidade grande. Apesar das provocações de Hank e
Henry,
aos poucos ele se integra no trabalho de madeireiro e participa, a
seu modo, do ciclo familiar.
Mesmo
quando a greve aperta, os Stampers decidem continuar cortando e
transportando madeira. Eles precisam acordar todo dia antes do sol
raiar e executar um trabalho que é puro enfrentamento da
natureza. É questão existencial. O filme vai numa
tradição bem fordiana, que inscreve as
necessidades do
homem nas entranhas da terra. As cenas deles cortando
árvores
gigantescas são impressionantes, inenarráveis. A
greve
e o sindicato lhes causam repulsa por constituírem aspectos
pseudo-avançados da civilização,
quando na
verdade nada mais fazem, na visão deles, além de
ferir
a ordem natural das coisas. Numa cena em que Viv (Lee Ramick) tenta
impedir seu marido Hank de ir trabalhar, alegando que não
há
por que insistir em peitar a greve, e perguntando qual o motivo de
fazê-lo, o velho Henry
intercede e
diz: “Para seguir em frente. Para trabalhar, e dormir, e trepar, e comer, e beber, e seguir em frente”.
“E isso é tudo?”, Viv ainda questiona.
“Querida, isso é tudo o que há”.
A
cena que terminará com a morte de Joe Ben ocorre logo
após
esse diálogo. Eles estão trabalhando na encosta
de um
rio. Árvores despencam de alturas incalculáveis
(a
opção pelo cinemascope se revela incontroversa),
uma
atrás da outra, ao som das motosserras e de um solo de
guitarra distorcida bem diferente da trilha sonora country até
então utilizada. Aquela violência
das árvores
tombando estrondosamente prenuncia algo, instala uma atmosfera tensa.
Uma árvore fende ao meio enquanto é cortada,
caindo de
forma incontrolável. O velho Henry se fere no
braço.
Joe Ben fica preso sob um tronco, com metade do corpo debaixo
d'água.
Hank tenta mover o tronco, sem sucesso. Faz
respiração
boca-a-boca no primo quando ele é encoberto pela
água,
mas de nada adianta. Delineia-se o inevitável.
Não é
um trágico galopante, schilleriano, mas um
trágico que
vai se avolumando aos poucos. Não é uma represa
que
arrebenta, mas a lenta elevação das
águas de um
rio, descambando numa morte sem derrota, sem entrega à dor.
Newman filma tudo em tempo “real”, nada de elipses.
A decupagem é irretocável. Num momento em que Hank está
insistindo inutilmente em fazer sua motosserra funcionar sem
combustível, ocorre de repente um grande plano geral que o mostra bem de
longe. Quem pensaria aquele plano ali naquela situação?
Somente um cineasta...
Uma
análise freudiana do filme não apenas seria
viável
como poderia se prolongar indefinidamente, até o
delírio
(interpretar a cena da morte de Joe Ben como a de um homem
pertencente a uma família de machões sendo
esmagado por
um falo-tronco gigante, por exemplo). Das bananas de dinamite do
início do filme ao dedo de Henry em riste na cena final,
passando evidentemente pela figura de castração
em
escala macroscópica das cenas de derrubada, há
todo um
trajeto fálico a se mapear. Há também
o conflito
entre os impulsos de liberdade do indivíduo e as
premências
da comunidade, a inclusão do trabalho num fluxo libidinal da
vida do homem (“trabalhar, dormir, comer, beber,
trepar...”),
a fragilidade do corpo humano diante da aparição
colossal – quase vingativa – do poder superior da
natureza, o quadro de frustração da esposa de
Hank, a
função de Henry como um superego de todos os
membros da
família etc. Mas tal análise pediria outra
ocasião/disposição.
O
exílio interior
No
filme seguinte, O
Preço da Solidão (The
Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds,
1972), Newman volta a trabalhar com a esposa Joanne Woodward, que
já
havia protagonizado o belo Rachel, Rachel,
de 1968, a estréia dele na direção.
Situando O
Preço da Solidão no
contexto do cinema americano dos anos 70, Michel Sineux destaca os
seguintes aspectos:
“Esquematizando,
trata-se globalmente de uma inversão do mito da conquista
–
ligado historicamente à formação dos
Estados
Unidos, à sua expansão, mas também a
seu
isolacionismo egocêntrico – em um mito da fuga,
fruto de
um requestionamento dos valores tradicionais sobre os quais estava
edificada essa sociedade, requestionamento ativado pela
urgência
de problemas sócio-políticos, alguns mais
específicos
da América que outros, mas em todos os casos de uma acuidade
pouco comum. A partir dos anos cinquenta, o cinema americano
[refletiu melhor] que qualquer outro meio de expressão essa
evolução sociológica, substituindo
progressivamente ao otimismo satisfeito de um 'american way of life'
de tipo rooseveltiano o Apocalipse, à esperança a
desesperança. […] O elã que
aí se exprime
não é mais orientado rumo a alguma 'fronteira',
concreta ou mítica, mas simples movimento browniano, sem
meta,
fechado sobre si mesmo. Sem escapatória, a fuga
para
se torna fuga
em,
quer dizer exílio, exílio interior, nos limites
de
fronteiras doravante fixas e infrangíveis.” (Positif
nº 152-153, julho de 1973, pp. 99-101)
A
expressão “exílio interior”
é
excelente. Ela resume a personagem de Woodward e
aponta uma
figura dramática que perpassa todos os filmes de Newman: a
de
um autoconfronto, luta íntima que Rachel, Rachel
(quase
Rachel vs. Rachel) traz já no título e no plano
de
abertura (panorâmica circular da personagem em
direção
a ela mesma, à sua sombra) e que atingirá sua
forma
limítrofe em À Margem da Vida (The
Glass
Menagerie, 1987), último filme de Newman como
diretor,
adaptado de um texto de Tennessee Williams.
A
personagem de Woodward em À Margem da Vida mora
com
dois filhos já adultos (Karen Allen e John Malkovich). O pai
se foi, só restou dele uma foto. O filme inteiro,
construído
em flash-backs que já constam na
peça original
de Williams, se passa dentro da casa, onde os afrontamentos dos
três
personagens se intercalam com monólogos de Tom (Malkovich).
O
clímax é a visita de um amigo de trabalho de Tom,
convidado para jantar depois que a mãe insiste que eles
devem
arrumar um namorado para a tímida Laura (Allen), que
é
manca e quase nunca sai de casa. A forma mais comum de cinematizar um
huis-clos teatral
é fazer um pouco de ar
e de paisagem
atravessar a cena. Newman, entretanto, faz exatamente o
contrário,
fechando o filme em compartimentos irredutíveis: cada
personagem é em si um huis-clos. Michael
Ballhaus, em
sua melhor fotografia desde os tempos em que trabalhava com
Fassbinder, capta uma luz que parece ter percorrido um longo caminho
antes de chegar ao filme, uma luz vinda do mofo da memória,
o
único espaço visual disponível para os
personagens. A narrativa de À Margem da Vida é
a
própria cronologia de eventos que leva Tom àquela
fuga
em, sem meta, que termina por se invaginar na
consciência e
configurar um exílio interior.
O
átomo
“Você não entende? Eu só quero nos manter unidas”, diz
Beatrice
(Woodward) à sua filha Matilda em O
Preço da
Solidão. Ela diz portanto que quer agregar a
família,
ainda que não pareça ter a menor
vocação
para manter as pessoas a seu redor. Beatrice cuida sozinha de suas
duas filhas, uma vivendo o limiar entre a infância e a
puberdade (Matilda) e a outra já adolescente (Ruth).
Matilda
se torna
finalista na feira de ciências da escola ao fazer um
experimento com sementes de margarida submetidas a raios gama.
“Quando entendermos melhor a radiação,
chegará
o dia em que a humanidade agradecerá a Deus por essa
estranha
e bela energia do átomo”, ela diz no discurso da
noite
de premiação, que retornará em voz off
na cena final: “Todos os meus átomos, e os de todo
mundo, vieram do sol e de lugares que estão além
dos
nossos sonhos. Os átomos de nossas mãos, os
átomos
de nossos corações. Átomo, que palavra
bonita”.
Mais ou menos como o
professor de
ciências de Matilda havia explicado no começo do
filme,
todos os átomos encontrados no Universo derivam de uma mesma
explosão originária, de onde saíram os
tijolos
fundamentais da matéria. Estes, desde então,
circulam
de um ser para outro, de uma coisa para outra. Nós mesmos
trocamos partículas com os outros e com o mundo, de modo que
o
nariz de uma menina de doze anos pode trazer átomos que um
dia
já foram de Lincoln, ou quem sabe de Moisés.
Traduzindo
isso em termos estéticos, o filme efetua uma
atomização
do drama: cada uma das três mulheres da casa, mais a velhinha
que a elas se junta, representa uma fase diferente da vida, e
está
unida à outra por laços afetivos e familiares,
mas ao
mesmo tempo irremediavelmente solitária, desconectada,
fechada
em sua errância mental. Sem precisar apelar para filosofia de
botequim, Newman compõe uma visão simultaneamente
íntima e cosmológica da vida.
O
tema da morte retorna
em O Preço da Solidão em
registro diferente
daquele de Uma Lição Para
Não Esquecer. A
progressão em direção à
morte começa
na cena em que a menina que se apresenta antes de Matilda na feira
de ciências explica, detalhadamente, os requintes de
crueldade
necessários para que matasse um gato e tirasse toda sua
pele,
toda sua carne, deixando só o esqueleto e fabricando assim
um
objeto de futuros estudos anatômicos. “Fervi o gato
numa
solução de hidróxido de
sódio, a maior
parte da pele saiu, mas tive que retirar com uma faca algumas partes
presas nas juntas. Vocês não têm
idéia de
como é difícil chegar até os
ossos”. A
menina conta isso com um sorriso no rosto. O esqueleto do gato
está
ali ao lado dela, como um troféu em
exposição.
Para completar, ela diz: “Se ano que vem tiver feira de
ciências novamente, eu talvez faça isso com um
cachorro”. A cena é puro terror.
Quando
Matilda chega
em casa da cerimônia de premiação,
descobre que
seu coelho de estimação foi morto por Beatrice. Um
círculo
se fecha. Matilda leva o corpo do animal até o quintal e o coloca no
chão, encarando a mãe de frente. Beatrice, naquele
momento, toda vestida de preto, rodeada de sombra, portando o estigma
da morte, é a própria "matéria escura" do cosmo, que
não produz luz ou radiação de qualquer
espécie, aquela matéria que ninguém sabe ao certo
o que é.
Morte e vida – o personagem de Plummer em Shadow Box
bem o sabia – nada mais são que a condição
uma da outra. Essa é também a lição da
radiação. O filme se
encerra com um plano congelado de Matilda e com uma frase dela em
voz off deslocada temporalmente: “Não
mãe, eu não
odeio o mundo”. Por que odiar um mundo em que o mais
devastador
excesso é o da própria vida?
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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