Realizado em 1972, O
Preço da Solidão é o terceiro longa-metragem de Paul Newman como diretor.
Antes disso, ele havia feito Rachel, Rachel, relativo êxito de
bilheteria que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor filme em 1969, e Uma
Lição Para Não Esquecer, adaptação de um romance de Ken Kesey que
representa um caso curioso para sua carreira. Inicialmente escalado apenas como
ator, Newman acaba assumindo a direção por acaso, após a saída do outro
diretor. Longe de representar um fracasso, no entanto, a experiência com a
história dos Stamper, família de madeireiros de extrema direita (vale lembrar
que Newman era militante das causas de esquerda), significou para Newman, em
seu distanciamento, uma espécie de marco de maturação de seu olhar como
diretor. Pois se em Rachel, Rachel ficava claro um formalismo mais
ansioso típico de um primeiro filme, pelo despojamento com que a direção captura
certos aspectos da psicologia personagem principal, em Uma Lição Para Não
Esquecer é onde ele melhor exercita uma certa simplicidade de olhar no
registro do drama familiar impregnado por aspectos culturais típicos do
subúrbio e do interior americanos. Já em O Preço da Solidão, ele dá
continuidade a essa marca ao mesmo tempo em que antecipa certos traços de uma concepção
cênica, voltada para uma presença mais livre do ator, que ganharia cada vez
mais força dali em diante em seu cinema.
Adaptado da peça The
Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds, do escritor americano Paul
Zindel, o filme nos traz a agitada Beatrice (Joanne Woodward), uma mãe solteira
que vive ao lado das duas filhas, Ruth e Matilda. Ruth é a típica adolescente
cujos interesses vão de garotos às coreografias de cheerleader, enquanto
Matilda, a mais nova, é tímida e freak, fascinada por ciências. Vivendo
entre as duas, Beatrice faz de sua solidão a principal matéria para sua
histeria compulsiva: reclama e fala o tempo todo, sem parar – da sujeira, da
casa, de si mesma, dos outros. Pura performance. Muito semelhante às
personagens emocionalmente transtornadas que seriam recorrentes na carreira de
Cassavetes ao lado Gena Rowlands (para falar de um diretor que também se
dedicou a trabalhar a sociedade americana sob um prisma bastante intenso e
pessoal), Beatrice está sempre acima ou além do tom normal, como quem
interpreta pequenas esquetes cômicas de si própria. Tomada pela fragilidade,
ela encontra em seus trejeitos e sua encenação, sua maneira, ao mesmo tempo, de
se esconder e se expressar.
A metáfora de
laboratório do título original não é por acaso, portanto. O filme terá como
motor as idas e vindas comportamentais de Beatrice, e Newman trabalha aqui com
um espaço destacado. Ele parte de uma configuração tipicamente teatral dos
elementos, em que boa parte da ação se passa em um mesmo ambiente, a casa de
Beatrice, e onde tudo possui seu peso cênico: a bagunça, as paredes amarronzadas
ou até mesmo a anciã Annie, abandonada na casa pela filha aos cuidados das três
como locatária de um dos quartos e que, sem falar ou escutar nada, é como um
peso figurativo no ambiente, causando arrepios em Ruth. A partir disso, traça
as linhas de um microcosmo familiar fechado em seu isolamento, ao mesmo tempo
que consegue extrair uma intimidade notável daquele espaço. Como em Uma
Lição Para Não Esquecer, é a simplicidade da câmera, sua retidão em relação
aos eventos e sua disposição a deixar-se impregnar pelo meio, o que confere
vida àquele espaço e àquelas figuras. O meio se imprime na câmera. Do espaço
bruto que irrompe com as atividades dos madeireiros à delicadeza da câmera que
se instala na casa de O Preço da Solidão, pouco muda: praticamente não
há diferença entre os planos em que os Stamper trabalham nas árvores e aqueles
em que Ruth, por exemplo, ensaia as coreografias de cheerleader: o meio toma
parte nos personagens, e é a própria verdade deles depende daquilo.
Esse forro cultural,
a forma como Newman filma indivíduos atravessados por aspectos de uma cultura
que os molda (o trabalho, a high school, as expectativas), é, aliás, uma
das principais chaves para compreendermos seu cinema, ao menos nestes primeiros
trabalhos. Beatrice, na realidade, é como todas as outras personagens femininas
intensamente presentes nos filmes do diretor, de Rachel, Rachel a À
Margem da Vida – mulheres que ainda não superaram os dramas da high
school, e cuja fragilidade se converte ora em histeria, ora em afogamento
melancólico num mundo interior. Faz parte do olhar dos filmes de Newman como
que um ponto-de-vista implícito, que faz com que aspectos de uma certa cultura
norte-americana ganhem traços de uma prisão para os indivíduos. Não no sentido
de uma prisão formalista, plástica, mas como um corpo do qual não é possível se
desvencilhar, uma lógica partilhada. Não é possível, aos personagens de
Newman, olhar sua própria vida com outros olhos ou valores que não os que
aprenderam em sociedade, na escola ou em família, algo que se torna ainda mais
trágico dentro de um contexto de asfixia e isolamento das células familiares.
Beatrice se debate,
exasperada, enquanto reproduz sua insatisfação por não alcançar as benesses do American
dream: sua casa não possui jardim e está sempre suja, a televisão não pega
o canal seis e ela incapaz de montar seu próprio negócio, ao contrário do que
prega a cultura do self-made man – “apenas 29% dos negócios sobrevivem
após três anos e meio”, diz o gerente do banco, por telefone, ao lhe negar o
empréstimo. Enquanto isso, ela segue rememorando sua época de ouro do colegial,
incapaz de conter sua infantilidade ao saber das risadas que uma experiência de
Matilda provocou em seus colegas de escola: “Não gosto da idéia que os outros
riam de você, Matilda. Quando eles riem de você, quer dizer que eles riem de
mim também, e da sua irmã”. Da mesma forma, em Uma Lição Para Não Esquecer,
é a idéia de uma crença (política, individual) que será levada até as últimas
conseqüências: mesmo envoltos em um espiral de tragédias, os personagens não
sucumbem em relação àquilo em que acreditam; é preciso morrer em nome de algo
que se elegeu como um sentido, um ideal de vida (“trabalhar, dormir, comer,
fazer sexo e seguir em frente”). Ou, como no caso da personagem de Rachel,
Rachel, fugir – em busca do amor, que é o que buscam boa parte das
personagens femininas de Newman.
Em uma das melhores
cenas de Rachel, Rachel, a solitária personagem principal do título vai
a um culto religioso acompanhada de uma amiga. Envolta na atmosfera de entrega
e transe que toma conta da cerimônia a partir de determinado momento, ela
abraça e beija os que estão à sua volta, dando finalmente vazão a um amor
aprisionado ao longo de seus trinta anos de vida. “Love me”, ela diz com uma
força e intensidade que até então só havíamos visto nos planos mentais da
personagem que pontuam o filme. O caso de Rachel é semelhante ao de Beatrice:
ela é como um autômato para quem a repetição performática e o tom ranzinza foram
as formas encontradas para lidar com a falta de amor. O momento decisivo de O
Preço da Solidão, seu clímax, será então justamente quando Beatrice precisa
saber como se portar ao lado de Matilda na apresentação de um projeto na feira
de ciências da escola. Ela não contém a ansiedade e um certo desespero diante
da situação – não sabe o que vestir, como se portar, que palavras de carinho
dirá à filha caso seu projeto saia vencedor.
“My heart is full”
“Direi a você ‘My heart is full’ ['Meu
coração está pleno'], Matilda, para que todos vejam o quanto estou orgulhosa”,
Beatrice decide ainda alguns dias antes da apresentação. Chegado o grande dia,
por uma série de motivos Beatrice chega atrasada, no final da apresentação, mas
a tempo de pronunciar as tão esperadas palavras: “my heart is full”, repete ela
cinco, seis vezes, sete vezes, como uma frase que se agarra com todas as forças
para que ela não se perca, embora não se saiba exatamente a forma certa de
dizê-la. É sua tentativa de pôr um fim à repetição aprisionadora e encontrar o
tom correto que dê vazão a seu amor pela filha. Eis sua aventura: driblar a loucura
da performance e encontrar o amor.
Calac Nogueira
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