“Ora,
hoje em dia, a Realidade, é a realidade mais sua refração midiática. Pode-se
excluir essa refração: o que fazem Bresson, Straub, Oliveira. Pode-se incluir
essa refração: o que todos fazem ao considerar essa refração como natural e
axiomática. Godard a inclui, mas ele é único ao não percebê-la como natural, e
sobretudo ao não restituí-la como natural.”
Jean-Claude
Biette 1
“O
que é o cinema? A expressão de bons sentimentos.”
Jean-Luc
Godard
1895. L'Arroseur
arrosé,
Louis Lumière. Um acidente feliz, comumente chamado de “cinema” e ainda hoje
reconhecido em todos os lados por esse nome, surge com efeito naquele jardim
onde a ficção – apenas outro nome para o teatro moderno do séc. XX - ascende à
sua condição de espetáculo popular, subseqüentemente mundial, e isso através da
câmera criada pelos irmãos Louis e Auguste Lumière. Para tanto, o documento
bruto de Débarquement du congrès des photographes à Lyon precisa passar
por algum tipo de transformação - um acesso, um transbordamento, uma
precipitação. Um homem rega algumas flores; um menino atrevido pisa sobre a
mangueira com a qual o homem molha as plantas; naturalmente um acidente haverá
de ocorrer.
E
se nesta cena pudéssemos distinguir, no gesto do homem que rega as plantas, a vocação natural da câmera dos Lumière? Isso nos permitira, entre outras coisas,
entrever na ousadia do garoto o ímpeto para essa aventura insolente, que
posteriormente constituirá a própria modernidade do séc. XX - essa que, por
hábito, obstinação ou acomodamento, ainda insistimos em chamar de “cinema” -, da
qual ainda não conseguimos nos desembaraçar e com a qual ainda precisamos nos
debater.
“Há,
sem dúvida, um tipo de fatalidade a que se reportar, uma harmonia secreta
pré-estabelecida entre uma disciplina visual de recito impessoal e o ato de
encenar, visto que Maupassant já escrevia num memorável estudo sobre Flaubert:
'Ele nunca anuncia os acontecimentos; pode-se dizer ao lê-lo que os fatos vêm
falar por si só, tanto que ele associa de importância à aparição visível dos
homens e das coisas. É esta rara qualidade de metteur en scène...' Não
sou eu quem sublinha, é Maupassant, em 1884. O cinema deveria exaltar tal
harmonia, e vivê-la.”
(Jacques Lourcelles, por sinal um dos admiradores
de Newman, no seu estudo seminal sobre Samuel Fuller, Tema do Traidor e do
Herói.)
Mas
que tipo de harmonia pôde ter sido essa que teve seu início justamente com uma peripécia,
esse jato que atinge em cheio o rosto do regador pouco após o garoto liberar a
corrente de água antes obstruída por um de seus pés? Que harmonia terá sido
essa que encarnou tão completamente em si a petulância de toda uma época? Essa
harmonia, Lourcelles tem toda a razão em confundi-la com o próprio cinema. A
questão é que não é apenas essa harmonia que está implicada nas origens do
cinematógrafo. Ela não terá sido mais que uma de suas conseqüências, uma das
etapas dessa invenção.
1980. A
Caixa de Surpresas,
Paul Newman. Um homem, ator famoso, conhecido mundialmente, descobre - ou
melhor, dá-se conta - que o destino do cinematógrafo não terá sido o cinema,
mas sim a televisão. Ele não estará sozinho. Pouco antes ou pouco depois
outros homens - igualmente solitários, igualmente destemidos - terão percebido,
com discrição e pudor, na surdina e de preferência da forma mais anônima
possível, as implicações iniciais, e portanto essenciais, da maquinaria com a
qual os operadores de câmera enviados pelos Lumière para todas as partes do
globo fotografaram, pela primeira vez, o movimento do mundo. Ora, é evidente
que tanto L'Arroseur arrosé quanto Inauguration de l'exposition
universelle, tanto Sob o Signo de Capricórnio quanto Stromboli já se encontravam implicados nos primeiros fotogramas rodados pelos Lumière em
frente à usina cujo testemunho e registro os tornará célebres, e com eles sua
criação. O devir-cinema destes filmes se vê acompanhado igualmente de um
devir-televisão - e não à toa Hitchcock e Rossellini foram dois dos primeiros
cineastas a infringir as fronteiras que inicialmente se impuseram e distanciaram
o cinema da experiência televisiva.
Assim
como alguns outros nomes - Hitchcock e Rossellini evidentemente, mas também
Vittorio Cottafavi, que como eterno e incansável experimentalista foi o grande
precursor de todos os procedimentos, dos mais rústicos aos mais sofisticados, da
teledramaturgia e do teatro televisivo, e posteriormente Claude Santelli, Jean-Marie
Drot, Jean Renoir, Eric Rohmer, Maurice Pialat, Marcel Bluwal, Stellio Lorenzi,
Claude Barma, Jacques Krier, André Voisin, Jean Prat, Rainer Werner Fassbinder -,
assim como eles o que Newman compreendeu foi que essa disciplina teatral, da
qual o cinema foi a aventura e que conduziu o que alguns chamam de “classicismo”,
na realidade a modernidade elementar do cinema (e da televisão), a uma
depuração minuciosa rumo à proximidade mais perscrutante, à investigação mais completa
da intimidade do ator; o que Newman compreendeu, enfim, foi que essa disciplina
só teria como prosseguir na televisão. Com seus meios reduzidos, que
permitem um maior controle sobre o material de base - a câmera precisamente, o “cinematógrafo”
dos Lumière -, além de uma subordinação invejável a métodos semelhantes aos da
reportagem, que em menor ou maior medida foi sempre utilizada pelo grande
cinema, a televisão é esse celeiro que, contentando-se com receitas mais
modestas, menos dependentes de números mirabolantes e bilheterias miraculosas, vem
nos últimos 40 anos auxiliando os cineastas que ainda procuram acalentar, a
partir da verdade íntima dos seres, uma revolução dos sentimentos. Compreendendo
finalmente que a modernidade do século XX foi essa aventura e o cinematógrafo
seu principal instrumento, não detectamos então diferença alguma entre o
que fizeram, no domínio da ficção-reportagem, Raoul Walsh e os Straub, Allan
Dwan e Pedro Costa, Preminger e Rivette ou Jacques Tourneur e Paul Newman.
A
Caixa de Surpresas
“Ninguém
filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumière inventa as
imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois
chega. Bom
dia, Madame Televisão.”
(Louis Skorecki, “Quelqu’un a dit l’autre
jour quelque chose d’amusant: Une fleur qui se cueille toute seule commet un
suicide”, Caméra/stylo n°6, maio de 1986.)
Nas
nossas vidas vivemos uma emoção até que ela se vá. Atentos a essa verdade, os
grandes cineastas desenvolveram uma técnica - que alguns ainda nomeiam
inconseqüente e inconscientemente de “clássica”, apesar de ser exatamente a mesma que utilizam cineastas tão notoriamente modernos como Manoel de Oliveira, Hou
Hsiao-hsien e Marguerite Duras de um lado, e do outro Ida Lupino, Kenji
Mizoguchi, John Ford e Fritz Lang -, uma técnica do plano longo que tende ao
esquecimento ou esgotamento de si mesma, à supressão de qualquer resquício de
um gesto criador, uma técnica que rechaça do seu interior tudo o que pode se
assemelhar ao culto de uma potência romântica da criação (como vista, por
exemplo, nas obras de Jean-Luc Godard e Orson Welles).
Entre
um momento e outro encontramos cineastas como Monte Hellman e Paul Newman, situados
na encruzilhada de um cinema de modulação que somente avança na medida em que
apaga os seus próprios vestígios e um outro cinema, também de modulação, capaz
de dar o devido prosseguimento à tradição que o funda - um prosseguimento não
regressista, de forma alguma saudosista ou nostálgico -, mas que diferentemente
da tradição tem por ponto de partida um enorme esforço de consciência do método
por ela imposto: um dispositivo da figuração de uma ação num espaço através de
uma duração. Se diferença há entre tradição e a sua decorrente transmissão hereditária
é que na primeira encontramos a lógica de utilização da técnica descrita
no parágrafo acima enquanto à segunda fica reservada a liberdade desta propensão
natural, o seu lado lúdico e jubilatório, comum àqueles que herdam.
Ora,
o que vemos no cinema de Paul Newman, e no que realizou a partir de A Caixa
de Surpresas em particular, não é qualquer coisa da ordem da filiação, mas,
ao contrário, de um processo de maturação, um rito de passagem, uma
transformação. O filme de Newman não aspira à maturidade e longevidade que
vemos por exemplo na arte consumada de um Eric Rohmer à altura de A Inglesa
e o Duque, uma inteligência capaz de abrigar, cobrir e sintetizar uma
história, uma técnica, uma mecânica e uma tecnologia; a história de um país, um
momento da civilização, a culminância de uma arte (em cento e vinte e oito
minutos vemos cinema alquimizado em TV, o teatro em teleteatro, o telecinema em
pintura, todos em perfeita comunhão e ao mesmo tempo em contínuo processo).
Esta grandeza, Newman a aspira - e a atinge - somente em seu último filme, À
Margem da Vida, enquanto que em A Caixa de Surpresas estamos ainda acompanhando
a vida de uma emoção que se esvai - e isso já é muito.
Somos
tomados, desde os primeiros planos, por um sentimento inédito, na realidade já
conhecido mas que sempre nos arrebata no momento em que nos atinge, um
sentimento de renovação. Um filme que areja não apenas a mente como o
espírito, que abriga em todos os seus poros essa sensação de uma arte na mais
tenra infância; um filme que nos obriga ver, da forma mais delicada e elegante
possível, aquilo a que já nos acostumamos e que por isso acreditamos que não
precisa mais ser visto, quando na realidade são essas as coisas mais
importantes, as essenciais, as que vivem: o sol, a natureza, uma atmosfera
entre a primavera e o outono, o reflexo da luz sobre a superfície de um lago, um
ar que se espalha entre os galhos das árvores, as vozes, os timbres, a
respiração, os diferentes padrões de discurso, a gentileza, nossos reflexos
mais violentos e incontroláveis, o cuidado que tomamos com o outro no decorrer
de uma situação delicada, o momento em que nos detemos e nos machucamos para
não machucarmos a quem amamos. A impressão que se tem é a de um filme de Blake
Edwards dissolvendo-se na luz de um kammerspiel filmado por Hou
Hsiao-hsien, uma luz que por alguns momentos deixa escapar, em alguns feixes dispersos,
aquilo que poderia ter sido, nos impossíveis termos de uma conciliação, o
encontro de Jacques Tourneur com a telerealidade, e mesmo o prolongamento do
cinema de Tourneur nesse teleteatro que Newman filma com uma insolente e
estimável falta de esforço, sem o menor resquício de qualquer vontade de
aplicação ou demonstração, como outrora com os grandes hollywoodianos.
Meu
Pai, Eterno Amigo
Mas
não devemos tomar o cinema de Newman por algum tipo de espécime tardio do velho
profissionalismo de usina. Se Newman é de fato um profissional, isso
apenas o distancia mais daquilo que sua profissão exige por volta de 1983, ano
em que realiza aquele que talvez seja o mais belo registro de uma performance
sua, Meu Pai, Eterno Amigo. Que uma atuação dessas venha a conhecer a
luz do dia - como também é o caso com as de Christopher Plummer e todo o elenco
de A Caixa de Surpresas, Lee Remick e Richard Jaeckel em Uma Lição
Para Não Esquecer, Joanne Woodward em Rachel, Rachel e O Preço da
Solidão - apenas mostra com que grau Newman cineasta havia se afastado das expectativas
das platéias, portanto da indústria e do mercado, nos anos 80.
Falar
de Meu Pai, Eterno Amigo é acabar se enternecendo por um sentimento de fragilidade,
fragilidade eminentemente física porque sensível à beleza do mundo, incapaz, portanto,
de não se sensibilizar diante dos perigos e das catástrofes que rondam essa
beleza. A tragédia de uma vida que sofre com a violência que foi num momento
anterior sua própria força é completamente encarnada pela atuação de
Newman, em todo o absurdo e obstinação desse personagem que é nada mais que uma
força nos seus últimos momentos, uma força que morre, uma força em morte - como já vimos antes em A Caixa de Surpresas e Uma Lição Para Não
Esquecer, como mais tarde veremos em À Margem da Vida. Na história
de um pai que segue protelando o momento de sua morte para poder ver o filho
encaminhado, longe de um destino que se assemelhe ao que teve, vemos a expressão
mais nítida de todas essas narrativas nas quais ao excesso de uma brutalidade perspicaz
opõe-se uma fusão da ternura à inteligência (sentimentos que se combinam e se
renovam prodigiosamente em todas as cenas do filme). A beleza discreta, sobriamente
desconcertante do cinema de Newman nasce precisamente desse paradoxo: vemos um
gesto de intensa brutalidade se completando num gesto de brutalidade afetuosa.
E a riqueza, a variedade não acabam excluídas desse registro tão modesto centrado
em diferentes polaridades de uma mesmo ação: da comicidade - a cena com a caixa
de papelão em Meu Pai, Eterno Amigo, a irreverência generalizada que
persevera mesmo diante das tragédias que acometem os personagens de Uma
Lição Para Não Esquecer e A Caixa de Surpresas - ao drama - a renúncia
intermitente do momento que se vive e uma única forma sempre violenta, brusca e
truncada de se retornar ao presente insatisfatório, do qual tanto Rachel quanto
a pequena Matilda em O Preço da Solidão desejam escapar - chegando
finalmente ao trágico - o momento em que dos olhos de Harry escapa uma lágrima,
consciência aguda de que com o filho encaminhado pode agora deixar que a morte lhe
venha.
À
Margem da Vida
Falamos
até aqui de vida e morte, de ternura e brutalidade, de teatro e cinema, de
cinema e televisão. Em À Margem da Vida assistimos a um espetáculo (o
filme é baseado na peça homônima de Tennessee Williams) de telerealidade (a
peça foi adaptada anteriormente, para a televisão, por Vittorio
Cottafavi) no qual a pura contemplação do drama nos devolve a experiência de duração do real, como entendida, por exemplo, por Henri Bergson: aquela dos intervalos dos
batimentos de um coração (cf. Michel Mourlet, Eva). O arranjo
delicadíssimo que Newman faz de todos esses elementos, a disposição deles em planos que perseguem as emoções até que estas se vão, finalmente
liberadas dos corpos que as detinham até então: é desta altura, e somente dela,
que devemos nos precipitar para acompanharmos o que de mais importante se
produziu em cinema nos últimos 20 anos. Através de uma espécie de perfeição da
peça de câmara (quatro personagens, um único cenário), Newman pratica - como
outrora Murnau, Dreyer, Bresson e Tourneur, como hoje em dia Oliveira, Hou, Costa e Brisseau - uma forma de ascese na qual o cinema libera-se
de sua matéria para desvelar-se em sua própria essência.
Em À Margem da Vida, contrariamente aos dois filmes anteriores, a morte não
se constitui em momento algum como assunto. A teatralidade declarada e a
qualidade literária das interpretações, o expressionismo atenuado do estilo
visual do filme, uma espécie de halo que esses rostos e esses corpos deixam em
seus percursos e que de pouco em pouco preenche o espaço de um velho
apartamento repleto de mobílias antigas, a evocação de um universo que sabemos
desde o início pertencer ao passado: estaríamos diante de um verdadeiro desfile
de cadáveres, destes que atualmente conquistam todas as ovações em festivais,
se Newman fosse incapaz de enxergar vida mesmo aonde menos se espera - num zôo
de cristal, por exemplo. Ao nos darmos conta de que o olhar de Karen Allen no
momento de sua desilusão é completamente destituído de qualquer traço de
amargura e rancor, de qualquer tipo de mácula ou ressentimento, deparamo-nos
finalmente com essa verdade simples que de fato constitui toda a beleza do
cinema: a perenidade dos bons sentimentos.
Bruno Andrade
1. "Répertoire incomplet du cynisme", Cahiers du Cinéma nº 377,
novembro 1985.
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