Apesar da estréia, digamos,
oficial, ter se dado em O Cálice Sagrado (1954), Paul Newman passa a
existir de fato como ator de cinema dois anos depois com Marcado Pela Sarjeta (1955) de Robert Wise, seu segundo longa. A biografia
romanceada do campeão de boxe Rocky Graziano traz à tela um ator de traços
bonitos e formação que inclui o então valorizado “método” do Actor’s Studio. Se
Marlon Brando nessa época já dominava o espaço entre os jovens atores no cinema
americano, a chegada de Newman parece vir a preencher uma lacuna surgida no ano
anterior com a morte precoce de James Dean. O retrato do lutador ítalo-americano
desde sua juventude delinqüente (ou transviada?) até a consagração já traz
consigo todas as características do trabalho que Newman apresentará ao longo de
sua carreira que se prolongou por cinco décadas: o vigor incessante que
transmite a seus personagens, um de seus maiores méritos, mas também o fato de
demonstrar um certo desconforto em personagens que requeiram uma composição ou
caracterização mais histriônica. Aos 31 anos e representando um adolescente no
início do filme, Newman soa estranho num sotaque italiano e artificial,
tornando-se mais convincente à medida que Graziano torna-se adulto e confiante.
Felizmente, tanto o ator como
a indústria cinematográfica que o empregava souberam reconhecer de imediato o
espaço indicado para que ele viesse a desenvolver o seu melhor. Atuações
discretas e interiorizadas, distantes de um histrionismo – terreno por onde
Marlon Brando já iniciava a transitar na época – nas quais os tipos mais marcantes
eram jovens adultos cuja passagem à maturidade se dá por algum processo
traumático ou até mesmo brutal. Incluindo o torturado Brick de Gata em Teto
de Zinco Quente (1958) e um Billy The Kid que é quase
uma figura “jamesdeaneana” em Um de Nós Morrerá (1958),
o primeiro longa de Arthur Penn que transpõe ao western os
questionamentos característicos da juventude no final da década de 50.
O início da década de 60 traz
dois grandes filmes que serviriam definitivamente para concretizar o espaço de
Newman tanto como um ator respeitado, quanto um astro e potente chamariz de
bilheteria, seja para o público masculino, que se identificava com seus tipos
viris e sedutores, como para o público feminino, seduzido por sua reconhecida
beleza clássica e seus olhos azuis. O primeiro deles é obra-prima Desafio à Corrupção (1961), de Robert Rossen. Filme extremamente desencantado, mesmo
para os dias de hoje, ele antecipa uma série de elementos autorais que
desaguariam no cinema americano da década de 70. Newman é o vigarista jogador
de sinuca Eddie Felson, que passa aqui pelo mais brutal processo de
amadurecimento dentre os vivenciados pelos seus personagens. Se no início
Felson é todo vigor e impulsividade, as sucessivas porradas que toma ao longo
do filme parecem empurrá-lo a um pragmatismo que ele insiste em rejeitar até a
seqüência final. Mais do que em qualquer momento anterior em sua carreira,
temos Paul Newman sedimentado como um ator de olhares discretos, voz quase
sempre baixa e silêncios expressivos, reforçando uma angústia que a câmera de
Rossen e seu fotógrafo Eugene Shuftan captam no doloroso preto e branco de seus
salões de sinuca e quartos claustrofóbicos.
O outro filme essencial da
época é O Indomado (1963) que marca o ponto alto de uma parceria de
cinco filmes entre Newman e o cineasta Martin Ritt. Trata-se de um western contemporâneo
que, entre outras coisas, retrata a decadência econômica dos outrora prósperos
proprietários de terras do Texas. O personagem-título é filho de um desses
velhos rancheiros. Hud é um egocêntrico cujo trabalho na criação de gado
paterna só serve para alimentar dois objetivos: beber cerveja e fazer sexo
descompromissado com as mulheres da cidade. É o eterno “outcast”, rejeitado
pelo pai e idolatrado pelo sobrinho. Já não tão jovem (sua idade citada no
filme é de 34 anos), Hud se vê afinal afastado e afastando todos que o cercam.
Permanece como uma figura que nada aprende com as agruras da vida, carregando,
porém, consigo o preço de insistir em ser algo de novo num mundo arcaico. Além
de uma das atuações mais poderosas de Newman, O Indomado é o melhor
filme de Martin Ritt, e tem uma fotografia impressionante de James Wong Howe,
que destaca num preto e branco árido a desolação das paisagens rurais e do
universo de Hud.
Se o no início da década de
60 temos Newman como um astro na constelação de Hollywood, seu término o traz
como o maior entre eles, principalmente graças a um enorme sucesso de
bilheteria e que parece encerrar o ciclo no qual Newman interpreta figuras
jovens (ou ao menos joviais) de dramática complexidade. Já com 42 anos, Newman
faz um presidiário em Rebeldia Indomável (1967), que pode
ser considerado a quintessência dos filmes de prisão. O temperamento libertário
do personagem título, sempre desafiando o sistema, é influência vital para os
seus companheiros de cativeiro e se encaixa plenamente no discurso
contestatório da contra-cultura que então despontava. Luke torna-se um mito
para os colegas, assim como Rebeldia Indomável carrega entre seus
entusiastas o status de filme mítico, que pode ser resumido na cena em
que Luke come 50 ovos cozidos, apenas pelo desafio de fazê-lo.
Se, como já dissemos, Luke é
um mito, Newman sai da década de 60 já como um mito ele próprio, para abandonar
de vez a figura do jovem e trafegar outros caminhos. E o caminho que mais lhe
interessa nesse momento é abraçar a direção. Seu esforço é reconhecido em Rachel,
Rachel (1967) e, durante a década que se segue, todo o trabalho mais
pessoal de Newman se direciona ao seu rumo como cineasta. E o ator de
composições sutis cede definitivamente vez ao astro. Mesmo trabalhando em
filmes menores de alguns mestres como John Huston e Robert Altman, o que se
instala na memória são grandes sucessos de bilheteria como Butch Cassidy
& Sundance Kid (1969), Golpe de Mestre (1973) ou Inferno
na Torre (1974).
O ator de composições sutis
só ressurge nos anos 80. Se em Ausência de Malícia (1981)
ainda vemos Newman apresentar-se como um galã maduro, o ano seguinte traz
Newman, à beira dos 60 anos, fazendo uma rara e corajosa virada para quem fora
considerado um dos homens mais bonitos do seu tempo: ele não renega a idade e
passa a interpretar velhos. A bagagem do tempo passa a ser uma característica
essencial para seus personagens a partir de então. O Veredito (1982)
traz duas obras primas: o filme em si, um dos melhores se não o melhor de
Sydney Lumet, e a composição de Paul Newman. A redenção de cunho quase
religioso pela qual passa Frank Galvin, um desacreditado e alcoólatra advogado de
porta de cemitério, é mais que comovente. Ressuscita Paul Newman como um dos grandes
atores americanos.
Esse espírito de ressurreição
perpassa a associação entre Newman e Martin Scorsese em A Cor do Dinheiro (1986). E quem ressurge é o Eddie Felson de Desafio
á Corrupção. Se o filme de Rossen era sobre desilusão, o de Scorsese é
sobre redescoberta e renascimento. Após 25 anos de vida medíocre, Felson
resolve voltar ao mundo do “hustling” depois de encontrar o espírito do que
fora no jovem jogador vivido por Tom Cruise. Os tempos são outros, assim como
os valores, e Felson tem que se recriar para ser um novo jogador, da mesma
forma como Newman havia se recriado alguns anos antes, anunciando-se em O Veredito com frase que encerra A Cor do Dinheiro: “I’m back!”.
Voltou e permaneceu com força
por mais 20 anos, marcando o enobrecer de seu envelhecimento, sempre com seu
estilo de atuação contido, fosse como um político gagá – Blaze, o Escândalo (1989) –, um rigoroso pai de família – Mr & Mrs Bridge (1990) –,
detetive noir fora de seu tempo – Fugindo do Passado (1998)
–, ou chefão mafioso – Estrada para Perdição (2002). Mais
que esses todos, satirizou irônica e carinhosamente os que perseguem uma eterna
juventude em Indomado, Assim é Minha Vida (1994), como um
septuagenário que insiste em não amadurecer, apesar da passagem do tempo, ao
contrário do ator que o interpreta. Até se despedir na TV com o protótipo do
velho ranzinza na minissérie Empire Falls (2005), Paul Newman ministrou
quase sempre ao longo de sua carreira uma lição como um tipo único de ator que
soube na juventude encarnar o espírito de seu tempo e na maturidade envelhecer
como ninguém numa tela de cinema.
Gilberto Silva Jr.
FILMOGRAFIA CITADA:
- O Cálice Sagrado (The Silver Chalice, Victor Saville, 1954)
- Marcado Pela Sarjeta (Somebody Up There Likes Me, Robert Wise, 1955)
- Gata em Teto de Zinco Quente (Cat On a Hot Tin Roof, Richard Brooks, 1958)
-
Um de Nós Morrerá (The Left Handed Gun, Arthur Penn, 1958)
- Desafio à Corrupção (The Hustler, Robert Rossen, 1961)
- O Indomado (Hud, Martin Ritt, 1963)
- Rebeldia Indomável (Cool Hand Luke, Stuart Rosenberg, 1967)
- Butch Cassidy (Butch Cassidy & Sundance Kid,
George Roy Hill, 1969)
- Golpe de Mestre (The Sting, George Roy Hill, 1973)
- Inferno na Torre (The Towering Inferno, John
Guillermin, Irvin Allen, 1974).
- Ausência de Malícia (Absence of Malice, Sydney Pollack,
1981)
- O Veredito (The Verdict, Sidney Lumet, 1982)
- A Cor do Dinheiro (The Color of Money, Martin
Scorsese, 1986)
- Blaze, o Escândalo (Blaze, Ron Shelton, 1989)
- Mr & Mrs Bridge –
Cenas de uma Família (Mr & Mrs Bridge, James Ivory, 1990)
- Indomado, Assim é Minha Vida (Nobody’s Fool, Robert Benton, 1994)
- Fugindo do Passado (Twilight, Robert Benton, 1998)
- Estrada para Perdição (Road to Perdition, Sam Mendes, 2002)
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